Cobrança de veto

Ao obrigar fundamento para decisões judiciais, novo CPC não criará caos

Autor

  • Bruno Torrano

    é assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça mestre em Direito e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

15 de março de 2015, 9h19

Fatos são como grandes cofres epistêmicos: se você se debruça sobre eles, decifra seus segredos e decanta analiticamente os conceitos em esquemas claros e coerentes, eles lhe revelam tesouros e conexões até então ignorados ou inconcebíveis, capazes de expandir o entendimento global daquilo que acontece no mundo.

Surge, por exemplo, uma ótima oportunidade de diagnosticar a altura dos tempos e de tirar conclusões valiosas para o futuro quando se vê, na ConJur, a notícia de que a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) solicitaram à presidente Dilma Rousseff que vete, dentre outros, os arts. 489, §§ 1º, 2º e 3º; e 927, §1º, do Novo Código de Processo Civil, ambos referentes ao dever de fundamentação das decisões judiciais.

Argumentam as entidades, em síntese, que tais artigos “terão impactos severos, de forma negativa, na gestão do acervo de processos, na independência pessoal e funcional dos juízes e na própria produção de decisões judiciais em todas as esferas do país, com repercussão deletéria na razoável duração dos feitos”.

Pode haver diversas coisas surpreendentes na notícia, mas certamente não o fato de os referidos artigos terem sido questionados justamente por associações de magistrados, isto é, exatamente por aqueles atores jurídicos a quem as regras se direcionam. É verdade que, em um mundo ideal, juízes jamais ousariam objetar a criação das referidas disposições: elas não só se prestam a concretizar aquilo que já se encontra no art. 93, inciso IX, da Constituição da República, como ratificam a noção democrática de que magistrados possuem responsabilidade política e não estão em seus cargos para “fazer justiça”, mas sim para dar sequência ao planejamento constitucional a partir de interpretações juridicamente razoáveis.

Aqui nestas nada paradisíacas terras brasileiras, todavia, por vezes entidades de classe afastam-se do interesse coletivo em favor da preservação daquilo que é mais proveitoso a seus pares. Não que, obviamente, magistrados não possam questionar as direções para as quais apontam os ares de lege ferenda. Não que, evidentemente, seja possível negar as dificuldades diárias pelas quais passam os referidos — e relevantíssimos — agentes jurídicos, a começar pelo exagerado número de processos que abarrotam as mesas e os “escaninhos”. Não que, enfim, não existam diversos magistrados que não concordam com o veto sugerido pelas respeitosas entidades.

A questão, aqui, é outra: a leitura do texto do novo CPC não leva ao cenário catastrófico que se pretende construir. O só-fato de, na imaginação de muitos juízes, os incisos e parágrafos do art. 489 significarem a ruína da razoável duração do processo denota muito claramente que existe na cultura judicial uma confusão inconcebível entre motivação concreta e motivação prolixa: não há no Novo Código de Processo Civil nenhum dispositivo que demande do magistrado argumentações exaustivas, citações intermináveis de doutrinadores ou páginas e páginas de precedentes, mas simplesmente um mandamento, de todo já contido na própria Constituição da República, de adequação dos fatos às normas, de respeito aos limites semânticos dos textos, de coerência e cautela na indicação dos precedentes e de atenção às teses pertinentes suscitadas pelas partes.

Os incisos do art. 489, por exemplo, somente tornam explícito aquilo que já se sabe, mas nem sempre se aplica: o ordenamento jurídico não admite decisões abstratas (incisos I, II e III); a sentença é um documento jurídico construído em contraditório e deve, necessariamente, levar em consideração os diálogos e as teses das partes (inciso IV); a aplicação de precedentes e súmulas sempre deve ser realizada de forma a demonstrar que o caso concreto se enquadra naquilo que outrora foi decidido (incisos V e VI).

Se a isso se dá o nome de “caos”, então podemos concluir duas coisas. Primeiro, que já estamos nele. Não há nada no art. 489 do CPC que não derive da intencionalidade normativa da Constituição da República e de um longo debate doutrinário sobre como os juízes devem decidir. Se se entende que a superveniência dessa norma infraconstitucional demandará respeito às leis, às alegações das partes e à história institucionalizada do direito a ponto de culminar em uma violação contundente à razoável duração do processo e à independência funcional dos magistrados, isso significa que, hoje, em sua ausência, o dever constitucional de fundamentação não está sendo levado tão a sério como deveria.

Segundo, que, na provável hipótese de a presidente não vetar os dispositivos correspondentes, possivelmente muitos artifícios retóricos serão utilizados para contornar ou “salvar” decisões nitidamente incapazes de preencher os requisitos elencados no art. 489, de modo a criar mais um dispositivo processual meramente simbólico, incapaz de descer do plano da eficácia jurídica para o plano da eficácia sociológica.

Deixando de lado algumas impropriedades terminológicas, pode-se dizer que, ao elaborar regra pormenorizada acerca da motivação das decisões jurídicas, o legislador seguiu intuição democrática que deve ser sucedida por longos e sonoros aplausos da comunidade jurídica. Mas, a rigor, o momento correto de se celebrar uma “vitória legislativa” não é o da publicação de uma lei, mas sim os dias, meses e anos em que essa mesma lei é empiricamente respeitada e aplicada.

A condição de possibilidade para esse último ponto é o compromisso, objetivamente aferível, dos magistrados com a Constituição e com o texto do novo código. O otimismo, por si só, nunca foi e nunca será capaz de preservar a normatividade do direito.

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