Justiça sem Rosto

Persiste a situação de desdém legislativo dos assessores judiciais

Autores

  • Lúcio Delfino

    é advogado pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).

  • Eduardo José da Fonseca Costa

    é juiz federal mestre e doutor em Direito (PUC-SP) pós-doutorando pela Unisinos e presidente da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Diretor da RBDpro. Membro do IBDP do IPDP do IIDP e do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

12 de março de 2015, 8h42

O transplante ao âmbito judicial de topoi social-liberais (como individualidade, liberdade positiva, cooperação, regulação, eficiência) faz nascer o “gerencialismo processual”. Aqui: i) desconfia-se do sistema adversarial paleoliberal da common law, que conduz o desfecho da causa a morosidade inaceitável, ferindo exigências atuais de celeridade [right delayed is right denied]; ii) o ardil e a astúcia são combatidos pelo juiz (que se baseia em sistema de repressão à má-fé fundado na responsabilidade objetiva do improbus litigator); iii) o juiz se torna “agente regulador”, que deixa de aguardar soluções legislativas milagrosas, assume a responsabilidade pela boa gestão dos feitos e passa a intervir extra legem para eliminar travas que geram “congestionamento processual” e para um desfecho da causa em “tempo razoável”. O processo é trabalhado como “micro-empresa gerenciável pela macro-empresa judiciária”, que atua sob planejamento estratégico, produz decisões em larga escala e é composta por juízes dotados de inteligência organizativa, capacidade mobilizadora e liderança motivacional.

Segundo tal perspectiva, o protagonista do processo não é mais o juiz ou as partes, mas a administração judiciária e seu caudaloso staff assessorial, que sofrem forte pressão por performance institucional satisfatória (medida por indicadores estatísticos e monitorização do alcance de metas objetivas). Instala-se um nexo de complementação entre o processo [case management] e as políticas judiciárias [court management], ambos permeados pela filosofia do just in time. O juiz (visto como fornecedor) e as partes (vistas como consumidoras) operam em regime de colaboração para a produção trium personarum das provas necessárias à maior proximidade possível entre as realidades intraprocessual e extraprocessual [princípio da cooperação probatória]. Medidas podem ser concedidas, tanto de oficio quanto a pedido das partes, com vistas ao gerenciamento eficiente do processo. Os ônus da prova são adaptativamente definidos pelo juiz à luz da teoria das cargas probatórias dinâmicas. Tanto o juiz (oficiosamente) quanto as partes (por meio de acordos) podem imprimir flexibilizações sumarizantes ad hoc ao procedimento-padrão, inclusive mediante fixação de cronogramas [schedules] ou calendarizações [timing of procedural steps] capazes de suprimir os “tempos neutros” ou “buracos negros” [blackholes] do trâmite processual, adaptando-o criativamente ao direito material aplicado e às exigências do caso. A forma mais eficiente de estancar o fluxo de processos intermináveis e, com isso, dar à atividade jurisdicional maior rendimento de produção, são a conciliação e os meios alternativos de solução de conflitos [publicismo gerencial]. O objeto litigioso é um constructum colaborativo entre juiz e partes; o “processo legal devido” é o processo eficiente, maleável, efetivo e ágil, tramitando em autos virtuais e calcado em legislação aberta; o juiz, sem assumir posição hierárquica, recebe poderes discricionários [judicial case management powers] para a fixação de balizas de atuação às partes [ativismo regulatório]; dá-se extrema ênfase ao procedimento e, em especial, à “engenharia procedimental inventiva e particularizante” (que é um dos saberes arcanos da good judicial governance); o juiz-símbolo do liberalismo social é o “juiz manager, produtivo, plástico, pragmático e informal”, que, advertido do colapso do adversarismo mandevilliano e manietado pelos postulados da proporcionalidade e razoabilidade, fixa marcos regulatórios de atuação para as partes para que não façam uso irracional do tempo processual e este tenha desfecho abreviado (em suma, dentro de uma espécie de “pós-keynesianismo processual”, o managerial judge não suprime o exercício do contraditório pelas partes, mas imprime-lhe planejamento calculado e “bitolas corretivas”). Não é difícil concluir que, numa lei processual social-liberal, o slogan de inspiração deve ser flexibilidade (obtida por meio de textos normativos concisos e redigidos sob termos vagos, conceitos indeterminados e standards jurídicos, que permitam ao juiz um raciocínio sobresuntivo). Tudo bem ao gosto do “fetiche business” e de suas reengenharias laboratoriais corporativas.

Estreitando-se o foco sobre a estruturação burocrática e o desempenho das funções jurisdicionais por essa mesma estrutura organizacional, pode-se afirmar que, na Justiça contemporânea: i) o protagonista é a equipe do juiz [= gabinete + secretaria]; ii) a principal tarefa do juiz é o gerenciamento de sua equipe (o que faz do juiz-substituto um anacronismo, que gera riscos contraproducentes de bicefalia); iii) o ritmo de produção das decisões é fordista; iv) os julgamentos são padronizados e simultâneos; v) há precedentes vinculativos, pois a preocupação maior está na segurança do sistema, não na justiça para o caso; vi) a habilidade mais esperada do juiz é a produção rápida de decisões; vii) a parte mais importante da sentença é o dispositivo; viii) a fundamentação é sintética; ix) o raciocínio decisório é retórico-pragmático; x) Constituição e Tratados Internacionais são a principal fonte de direito e as soluções partem fundamentalmente de princípios; xi) a argumentação está modelada antes da chegada do caso; xii) o direito positivo é interpretado em função de diretrizes político-judiciárias; xiii) os juízes são avaliados por produtividade; xiv) o juiz serve seus funcionários sob lógica de coordenação multifuncional; xv) a administração de varas e tribunais é compartilhada e baseada em técnicas de motivação; xvi) as escolas de magistratura capacitam o neófito à carreira.

E a efetivação desse novo modelo acaba exigindo: (i) que a administração judiciária seja mais eficiente, pois a sociedade impõe pressão sobre custos, desempenho, legitimidade e metas (o que obriga as Cortes a adotarem técnicas de monitoração típicas da governança privada e a inspirarem-se na cartilha de recomendações do New Public Management); (ii) que os juízes assumam responsabilidade [accountability] pela eficiência de sua vara e se valham de boas práticas experimentadas por outros colegas (mediante utilização de meios audiovisuais, “despachos inteligentes”, delegação de atos ordinatórios, gestão computacional, calendarização de fases processuais, técnicas de conciliação, flexibilização procedimental, despachos-mandado etc.); (iii) managerial judges habilitados a informalidade, motivação de pessoas, liderança, comunicação, liquidez, leveza, cultura organizacional, rapidez, transparência de gestão, novas tecnologias, etc.; (iv) que o CPC tenha textualidade aberta, pois a dinâmica da vida pós-moderna tem imposto sucessivas reformas setoriais às legislações processuais de todo o mundo (o que tem causado incoerências, fragmentações, confusões, complexidades e incompletudes); (v) que a trilogia estruturalista ação-jurisdição-processo ceda à trilogia funcionalista eficiência-organização-celeridade; (vi) maior intercâmbio de discussão entre os países, pois todos enfrentam o problema da celeridade na prestação jurisdicional (o que haverá de ensejar uma “mundialização judiciária” ou “globalização dogmática”, a partir da qual se superará a visão nacionalista no trato das questões processuais e se chegará a um corpus transnacional de princípios comuns).

Não é difícil notar que a realidade da Justiça atual não imprime modificações apenas na política administrativo-judiciária, mas também — e principalmente — no processo civil. A partir dessa premissa, os articulistas propuseram junto à Câmara dos Deputados a inclusão do assessor entre os auxiliares da justiça no Projeto do novo CPC. Decerto é a figura mais representativa da justiça quantitativa. Trata-se de servidor que coadjuva os juízes na elaboração de minutas de decisões, na pesquisa de legislação, doutrina e jurisprudência e na preparação das agendas de julgamento, não raro praticando também — mormente no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis — atos cuja execução tradicionalmente se espera de juízes (por exemplo, presidência de audiências de conciliação). É sem dúvida figura polêmica: redige decisões sob a supervisão judicial, mas sua identidade, sua imparcialidade e seu nível de formação não são controlados por advogados e partes. Aparece no processo como um “juiz sem rosto”.

Daí a ratio da proposta: suprir a necessidade pragmática de enfrentar-se essa realidade e normatizá-la para evitarem-se excessos e abusos. Enfim, regular a figura do assessor no próprio CPC projetado, atribuindo-lhe funções, imputando-lhe deveres e incompatibilidades e desenhando-lhe os contornos mínimos para a nomeação. A ideia era, afinal, tirá-lo do desdém legislativo em que hoje se encontra e realçar-lhe a importância e a necessidade atuais.

Tratava-se, é bem verdade, de proposta singela: evitaram-se questões polêmicas que pudessem suscitar controvérsias e atravancar seu trâmite e aprovação. Por isso, privilegiou-se a regência de situações que hoje já são exercidas pelo assessor e de outras não desprezíveis ligadas diretamente ao exercício da função. Evidenciou-se que o juiz poderia ser coadjuvado (auxiliado, assistido, acudido) pela atuação dos assessores, sem necessidade de ato formal de delegação: i) na elaboração de minutas de decisões; ii) na pesquisa de doutrina, legislação e jurisprudência necessárias à elaboração de minutas; iii) na preparação das agendas de julgamento e outros serviços a realizarem-se (artigo 153-A). Também se permitiu aos assessores, mediante ato formal de delegação, que pudessem: i) presidir audiências de conciliação, dês que preenchidos os requisitos exigidos pelo tribunal ao exercício da função de conciliador (por exemplo: capacitação mínima, por meio de curso realizado por entidade credenciada, devidamente comprovado pelo respectivo certificado); ii) proferir sentenças homologatórias de conciliação e transação; iii) proferir despachos de mero expediente (artigo 153-B). Conforme a proposta original, os assessores deveriam ser bacharéis em Direito e servidores de carreira do Judiciário. A lei específica caberia regular os pressupostos para o exercício da função (artigo 153-C). Ademais, os assessores sujeitar-se-iam a idêntico regime de deveres e incompatibilidades previsto aos juízes (artigo 153-D). E finalmente — para evitar problemas relacionados a corrupção e outros crimes e sublinhar sua subordinação hierárquica aos juízes — os assessores estariam impedidos de receber partes e advogados para oitiva de postulação.

Depois de examinada pela comissão especial destinada a proferir parecer sobre os projetos de lei 6.025/2005 e 8.046/2010, a proposta foi incorporada ao CPC projetado[1]. E encontrou ali fortes defensores, entre eles Fredie Didier Jr. e Alexandre Câmara, ambos integrantes da referida comissão; afinal, pela própria atuação profissional que desempenham, sabem que a assessoria é realidade antiga e praticamente inapagável, que grassa em todas as instâncias.

É tão antiga que o Joaquim José Caetano Pereira e Sousa, no seu Primeiras linhas sobre o processo civil, do início do séc. XIX, dividia no § V as “pessoas que constitúem o juízo” em (1) “principáes” (“juiz”, “autôr” e “réo”) e (2) “secundarias” (“assessôr”, “advogado”, “procurador”, “defensôr”, “escusadôr”, “assistente”, “oppoente” e “escrivão”). No § XLIV, o “assessôr” é definido como “a pessôa do Juízo, que, por seus conhecimentos de Jurisprudencia, instrúe o Juiz no exercício de súas funcções”. Na nota 93 a essa obra, Teixeira de Freitas já advertia em 1877 que “para soccorrêr a insufficiencia jurisprudenciál das partes temos os Advogados, e para auxiliar a dos Juizes tenhamos Assessôres. Súa conveniência não póde ser negada, e só resta (já que nenhuma lêi os-prohibe) harmonisár o uso com a nova organisação judiciária”. Na mesma nota, o jurista baiano acresce que “o Alv. de 28 de Janêiro de 1785 falla dos Assessôres, excluindo-os por excepção em certa hypóthese, e assim firmando a régra da súa admissão”. Por volta de 1870, o mesmo alvará foi aludido por Cândido Mendes de Almeida em nota lançada no livro 1 das Ordenações Filipinas (Título LXV), que tratava sobre assessoria de magistrados: “Os Juízes Ordinários podiam ter Assessores; a prática autorizava este estilo, que depois ainda mais ficou fortalecido com o Alvará de 28 de Janeiro de 1785, e de 30 do mesmo mês de 1802 (título 1 § 13), como por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Setembro de 1841 foi declarado quanto aos Juízes Leigos (Jornal do Comércio n. 255 desse ano)”. Como se vê, há tempos grandes juristas apontam o fosso abissal entre a realidade do foro e as leis processuais.

Hoje, sem os assessores, a Justiça brasileira fecharia as portas. Tampouco seriam atingidas as metas do CNJ. Contudo, infelizmente, em seu retorno ao Senado Federal, a proposta foi derrubada. Com isso, a figura prossegue em limbo absolutamente incompatível com os ditames do direito e da moralidade pública. O inistro do TCU Bruno Dantas, que integrou a comissão de juristas no Senado, desmereceu a sugestão alegando que o papel dos assessores se cinge à emissão de “opiniões”, acatáveis ou não pelo juiz (leia aqui). Data venia, não são meros “opinadores”. Como bem disse Teixeira de Freitas há mais de um século (!), o advogado está para a parte assim como o assessor está para o juiz: advogado não se limita a opinar; assessor também não. Basta rápido passeio pelos bem equipados gabinetes dos Tribunais Superiores para a realidade dar seu próprio desmentido. Neles estão anonimamente os verdadeiros executores materiais da atividade jurisdicional. É preciso dizer-se sem eufemismos: vive-se sob uma Justiça de assessores. Pena que a dogmática brasileira não seja muito dada a “sujar-se” com a vida prática e a teorizar a partir dela…


[1] Assim se manifestou em seu voto o Relator-Geral, deputado Sérgio Barradas Carneiro: “Acrescenta-se nova seção, a dispor sobre o “assessor judicial”. A necessidade de produção de decisões em larga escala, muitas vezes em processos repetitivos, levou à consagração, na prática forense, da figura do servidor assessor judicial. O juiz passou a ser, em grande medida, o gestor de uma equipe, formada pelos integrantes do gabinete e da secretaria. Daí a necessidade de se regular a figura, já consagrada na prática forense, do assessor judicial, a quem cabe assessorar o juiz na elaboração de minutas de decisões e votos, na realização de pesquisas e na preparação de agendas e outros serviços. O assessor deve, também, ser autorizado, por delegação do juiz, a proferir despachos. (…) Acolhe-se, em parte, proposta de Lúcio Delfino e Eduardo José da Fonseca Costa. (…)”

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