Tirania judicial

STF precisa definir súmula vinculante sobre regime semiaberto

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11 de março de 2015, 15h40

Réu com direito legítimo ao regime semiaberto não pode ficar no regime fechado. Nada contribui mais para a descrença na legalidade — e, em consequência, para o desmoronamento do Estado de Direito — que o descumprimento da lei por ato intencional e caprichoso do juiz. Barbárie é nome do fenômeno. O artigo 185 da Lei de Execução Penal é muito claro: “Haverá excesso ou desvio de execução sempre que algum ato for praticado além dos limites fixados na sentença, em normas legais ou regulamentares”. A regra é cristalina. Só não a vê o juiz tirânico, aculturado consoante a forma mentis inquisitiva, que não a quer enxergar. Montesquieu (secundado por Beccaria — veja nosso livro Beccaria, 250 anos) já dizia que toda pena desnecessária ou excessiva é despótica. Há ilegalidade gritante e berrante, passível de Habeas Corpus e indenização civil, quando o réu, com direito ao semiaberto, continua recolhido no regime fechado, por falta de vaga ou inexistência do estabelecimento penal adequado.

Só em países periféricos e atrasados (como o Brasil) alguns juízes ainda não perceberam que em matéria de cobrança de impostos, de respeito à propriedade com sua função social e de liberdade das pessoas, tanto o Estado como o Estado-juiz só pode agir dentro da legalidade absolutamente estrita. Com os excessos do poder estatal não se brinca. Isso é assim, nos países avançados, desde 1215, quando os nobres impuseram a Magna Charta ao Rei João Sem Terra. As leis estabelecidas, sobretudo nessas áreas, valem irrestrita e igualmente para todos; não podem jamais ter aplicação classista, racista ou preconceituosa. Direito conquistado legitimamente é direito, que o juiz tem obrigação constitucional e moral de reconhecer, pouco importando se o seu titular é branco ou negro, pobre ou rico. O mais deplorável dos vícios de um Estado democrático consiste na existência de juízes tomados pela cegueira deliberada do preconceito (racista ou classista).   

A barbaridade e excentricidade de não respeitar a lei que fundamenta o direito ao regime semiaberto está sendo convalidada por incontáveis juízes convicta ou incidentalmente torquemadas (Torquemada foi o Procurador Geral da Inquisição na Espanha, no final do século XV). Essa grave e repugnante anomalia, que significaria a imediata suspensão do juiz em países civilizados, está ocorrendo em duas situações: (a) milhares de réus estão no regime fechado mesmo depois de terem cumprido o tempo legal necessário bem como outros requisitos legais para a progressão ao regime semiaberto; (b) outras centenas de réus já são condenados inicialmente ao regime semiaberto e continuam aguardando vaga no regime fechado.

Quando os réus da Ação Penal 470, o processo mensalão (gente com status), com direito ao regime semiaberto, foram parar no regime fechado, por decisão de Joaquim Barbosa, o ministro do STF, Marco Aurélio, afirmou: “Isso é impensável; trata-se de decisão desfavorável para o condenado, que não pode arcar com a ineficiência do Estado, por falta de aparelhamento”. Solução sensata aventada pelo ministro: o paciente deverá cumprir pena no regime aberto até que sobrevenha estabelecimento penal adequado ou a vaga. É disso que o STF vai cuidar nesta semana, visto que na sua pauta está a edição de mais uma Súmula Vinculante (57), por proposta da Defensoria Pública Geral da União, apoiada pela Conectas e várias outras entidades, que teria o seguinte teor: “O princípio constitucional da individualização da pena impõe seja esta cumprida pelo condenado em regime mais benéfico, aberto ou domiciliar, inexistindo vaga em estabelecimento adequado, no local da execução”.

Quando o Estado brasileiro não cumpre sua parte (construção de presídios adequados), superlotando os presídios de forma aloprada (507% de aumento na população carcerária de 1990 a 2013, contra 36% de aumento nos habitantes do país), é evidente que o réu não pode arcar com sua liberdade por essa negligência estatal. O “contrato social” (Locke, Hobbes, Rousseau) foi concebido para o Estado garantir a segurança de todos, não para se transformar em algoz despótico da liberdade do cidadão. Em junho de 2013 contávamos com 77.488 presos no regime semiaberto (13,4% do total de presos), para 50.671 vagas (1,5 presos para cada vaga). O déficit, inteiramente de responsabilidade do Estado, é de 26.817 vagas. Por essa incúria do poder público não pode pagar o réu que conquista legalmente o direito ao regime semiaberto. Não havendo vaga, deve-se deferir a progressão per saltum (saindo o preso do regime fechado para o aberto, em virtude do desleixo estatal). Forte jurisprudência do STJ (HC 227.960-MG; HC 196.438) e do STF (HC 94.526/SP, HC 94.829/SP, HC 96.169/SP, HC 77.399/SP) ampara esse entendimento.

O Estado que prende muito tem o dever de cumprir esmeradamente todas as leis relacionadas com a prisão, cabendo a ele arcar com o ônus (inclusive popular) da sua desídia. O que não pode é o Estado-juiz assumir o papel de carimbador das violações dos direitos fundamentais praticadas a céu aberto pelo poder público, que está negando vigência à Constituição Federal (artigo 5º, incisos XLVI, XLVIII e XXXVI), a todos os tratados internacionais que cuidam da dignidade de todos os humanos, ao Código Penal (artigos 33 e 35) e à Lei de Execuções Penais (artigo 110 e seguintes, destacando-se o art. 185).

O tema, agora, constitui objeto do RE 641320, que tramita no STF, com caráter de repercussão geral. Várias audiências públicas foram realizadas e é cada vez mais crescente o número de habeas corpus para discuti-lo. Gilmar Mendes (relator do caso) ponderou que “Não se cuida de um problema pontual. Somente em São Paulo, por exemplo, há cerca de 6 mil presos que teriam direito à progressão de regime para o semiaberto e nele não encontram por falta de estrutura adequada”.

As condições prisionais no Brasil são inaceitáveis e aberrantes, mas tudo se agrava quando se sabe que, segundo dados apresentados pela ONG Contas Abertas, relativos ao Funpen (Fundo Penitenciário Nacional), somente metade dos recursos do fundo foi utilizada na construção ou melhoria de presídios. Há verba e mesmo assim o Poder Executivo não cumpre seu dever que proporcionar o número de vagas necessário para o cumprimento da lei. Com a maior urgência possível compete ao STF assumir sua responsabilidade constitucional para regulamentar o assunto numa Súmula Vinculante, garantindo a segurança jurídica, a não multiplicação de processos assim como a certeza de que a pena seja cumprida nos termos da lei vigente, porque é assim que se faz respeitar a dignidade humana. É inadmissível que o réu arque com as consequências das brutais falhas estatais.

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    é mestre em direito penal pela Faculdade de Direito da USP, professor doutor em direito penal pela Universidade Complutense de Madri (Espanha) e diretor-presidente da Rede de Ensino LFG.

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