Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo português (Parte 6)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

4 de março de 2015, 8h00

Spacca
Na coluna anterior, começamos a estudar o modelo de ensino jurídico português. A formação de um quadro de “professores mandarins” e o papel dos docentes universitários na república, ao longo do século XX, mereceram especial atenção. Portugal e Alemanha aproximam-se nesse percurso histórico, em muito favorecido pela mudança de matriz universitária iniciada em 1904, com abandono da França e escolha da Alemanha como referencial.

Nesta coluna, veremos as faculdades de Direito, a carreira docente e o currículo em Portugal.

As faculdades de Direito portuguesas
Os cursos jurídicos portugueses tradicionalmente limitaram-se aos núcleos de Coimbra e de Lisboa. Ao longo do século XX, deu-se um sensível deslocamento da centralidade na área jurídica de Coimbra para Lisboa. Tal se refletiu no número de cargos de catedrático. Veja-se que as duas maiores faculdades de Direito públicas em Portugal possuem os seguintes números de (a) catedráticos em atividade, (b) associados com agregação, (c) associados sem agregação, (d) auxiliares e (e) assistentes:  

1) Universidade de Coimbra: (a) 11; (b) 3; (c) 8; (d) 37 e (e) 27 (excluídos os assistentes convidados).[1]

2) Universidade de Lisboa: (a) 22; (b) 3; (c) 17; (d) 56 (excluídos os auxiliares convidados) e (e) 33.

Nos anos 1990, quando se radicalizou a europeização de Portugal, o número de faculdades de Direito passou a crescer acentuadamente. Em 1993, são criadas a Escola de Direito do Minho e Faculdade de Direito da Universidade do Porto. No ano de 1996, fundou-se a Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. Os cursos privados também se ampliaram desde então.  Mesmo assim, o número de faculdades de Direito em Portugal é relativamente pequeno:

a) Instituições públicas – 1) Escola de Direito da Universidade do Minho; 2) Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra; 3) Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa; 4) Faculdade de Direito da Universidade do Porto.

b) Instituições privadas: 1) Curso de Direito da Universidade Autônoma Portuguesa; 2) Universidade Lusíada de Lisboa; 3) Faculdade de Direito da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (Lisboa); 4) Escola de Direito da Universidade Católica de Lisboa; 5) Escola de Direito da Universidade Católica do Porto; 6) Universidade Lusófona do Porto; 7) Faculdade de Direito da Universidade Lusíada do Porto.

As estruturas físicas, de docência e de investigação são bastante variáveis. Em Coimbra, os investimentos na assinatura de periódicos internacionais são constantes. A biblioteca, uma das mais antigas da Europa, segue um estilo comum a algumas instituições italianas. Os livros ficam em armários fechados e o acesso dá-se por meio de consulta ao catálogo eletrônico e posterior solicitação à bibliotecária. Projeta-se a construção de uma nova e moderna biblioteca para a Faculdade de Direito. Na faculdade de Lisboa, na gestão do catedrático Jorge Miranda, ergueu-se um novo anexo ao prédio principal, ocupado por uma nova biblioteca e por gabinetes dos docentes. A biblioteca é muito completa, com periódicos internacionais, embora já se comecem a sentir os efeitos das restrições orçamentárias advindas da crise econômica pela qual o país atravessa desde 2008.

Há críticas sobre a qualidade dos egressos dos cursos particulares não confessionais. Essa circunstância levou a Ordem dos Advogados portuguesa a sugerir a criação de uma espécie de exame de Ordem, no que foi rechaçada pelos professores de Lisboa e Coimbra.[2]

A carreira docente universitária em Portugal
A norma central sobre a carreira de professor universitário é o Decreto-lei 448, de 13 de novembro de 1979, com sucessivas modificações e republicado pelo Decreto-lei 205, de 31 de agosto de 2009.[3] A estrutura compõe-se de professor catedrático, professor associado e professor auxiliar. A figura do professor assistente foi extinta, embora permaneçam a existir nas universidades até que seus ocupantes se promovam, exonerem-se ou se aposentem.

As atribuições dos catedráticos lembram e muito as equivalentes alemãs: “Ao professor catedrático são atribuídas funções de coordenação da orientação pedagógica e científica de uma disciplina, de um grupo de disciplinas ou de um departamento, consoante a estrutura orgânica da respectiva instituição de ensino superior (…)”.[4]  Ao professor associado compete “coadjuvar” os catedráticos, além de reger disciplinas, orientar trabalhos de pesquisa e colaborar com aqueles nas funções administrativas (item 2 do artigo 5o). O professor auxiliar tem por função lecionar aulas, “podendo ser -lhe igualmente distribuído serviço idêntico ao dos professores associados, caso conte cinco anos de efetivo serviço como docente universitário e as condições de serviço o permitam” (item 3 do artigo 5o). Nos cursos de Direito das universidades públicas portuguesas, especialmente em Lisboa e Coimbra, são bem marcadas essas posições hierárquicas, tal como ocorre na Alemanha.

Vamos à forma de recrutamento desses quadros docentes.

Só se admite o ingresso dos docentes das três categorias por concurso (artigos 9º c/c 11º). Há, no entanto, uma diferença: o catedrático e o associado contratam-se por tempo indeterminado (artigo 19º). Na prática, isso quer dizer que eles são estáveis. A legislação portuguesa usa de um termo comum no serviço docente norte-americano, a tenure, ao declarar que eles gozam de um “estatuto reforçado de estabilidade no emprego (tenure) que se traduz na garantia da manutenção do posto de trabalho, na mesma categoria e carreira ainda que em instituição diferente”.

Os professores auxiliares são contratados inicialmente por um período experimental de cinco anos. Após esse lapso, eles serão avaliados, segundo os critérios da universidade, após o que será apresentada proposta ao órgão colegiado competente para: a) mantê-lo na instituição com um contrato por tempo indeterminado; b) alternativamente, fazer com que o docente volte à situação anterior, o que, na prática, implica não prosseguir na carreira em regime de prazo indeterminado. Essa proposta, lastreada em um parecer administrativo, deverá ser aprovada por dois terços do colegiado competente (artigo 25o).

Nos concursos para catedrático é necessário que o candidato seja doutor e tenha a chamada agregação há mais de cinco anos (artigo 40o). Para associado, é necessário que o postulante seja doutor há mais de 5 anos (artigo 41o).  O cargo de auxiliar só pode ser disputado por quem detenha o título de doutor. Os antigos assistentes podiam prescindir do doutorado.

E termos bem genéricos, poder-se-iam fazer as seguintes equiparações com o modelo brasileiro: a) titular equivale a catedrático; b) associado equivale a professor associado (na carreira da Universidade de São Paulo); c) auxiliar tem correspondência com o cargo de professor doutor (na USP) ou de professor adjunto (nas universidades federais). E o assistente português equiparava-se ao professor assistente das universidades federais. 

As bancas de concurso (denominadas de “júris dos concursos”) deverão ter um mínimo de cinco e um máximo de nove membros, com maioria de examinadores externos à instituição e com titulação superior à dos candidatos, salvo, por óbvio, nas seleções para catedrático (artigo 46o).

A avaliação faz-se pelo currículo apresentado, levando-se em conta o “desempenho científico” do postulante e “sua contribuição para o desenvolvimento e evolução da área disciplinar”. A capacidade pedagógica é também apreciada, “tendo designadamente em consideração, quando aplicável, a análise da sua prática pedagógica anterior”. Por último, o júri considerará “outras atividades relevantes para a missão da instituição de ensino superior que hajam sido desenvolvidas pelo candidato” (artigo 50o). Diferentemente do que se dá nos concursos para professor titular no Brasil, em Portugal inexiste a obrigação de se apresentar uma tese de cátedra, a espelho do modelo alemão.

O professor associado não apresenta uma tese como nossa livre-docência. Ele submete-se ao procedimento de agregação, que são provas nas quais se avaliam o currículo do candidato (um associado sem agregação), levando-se em conta sua produção acadêmica, suas atividades de formação de discípulos, seus projetos de pesquisa e pela prestação de serviços de interesse comunitário. Há, no entanto, a obrigatoriedade de se apresentar um relatório sobre uma disciplina ou grupo de disciplinas, no qual o autor examina problemas epistemológicos da área onde deseja se agregar. Esse relatório tem sido objeto de muitas críticas, sendo bastante comum encontrar-se um parágrafo de estilo no qual o candidato faz uma censura a esse critério de seleção. Finalmente, pode-se exigir do postulante a apresentação de um seminário ou de uma aula sobre um tema da área de conhecimento ou da especialidade vinculada às provas.[5]   

A estrutura da carreira e a ausência de teses de livre-docência e de titularidade faz com que ocorra em Portugal algo bem diverso do que ocorreu no Brasil. Aqui o título de doutor em Direito converteu-se em um brevê, a partir do qual o novo doutor pode almejar algum tipo de acesso à carreira docente em universidades de médio ou grande porte.  Em Portugal, o doutorado é ainda o opus magnum da carreira de um jurista. Não é sem causa que as teses portuguesas impressionam por sua extensão, profundidade e pela originalidade dos temas ali traçados. Além disso, teses mais antigas, como a de Menezes Cordeiro, sobre a boa-fé, ou de Pinto Monteiro, sobre a cláusula penal, ambas dos anos 1980, foram tão avançadas para a época que ainda hoje são obras fundamentais no Direito Privado. 

O regime de dedicação exclusiva (ou regime de dedicação integral à docência e à pesquisa, na USP) existe em Portugal, o qual “implica a renúncia ao exercício de qualquer função ou actividade remunerada, pública ou privada, incluindo o exercício de profissão liberal” (artigo 70o).  No entanto, admite-se que o docente exerça funções como presidente da República, membro do Governo, procurador-geral da República, juiz do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional, deputado à Assembleia da República, presidente ou membro de Câmara Municipal, assessor jurídico e várias outras. Nesses casos, o docente não sofre qualquer prejuízo em sua carreira.

Na prática, a maior parte dos catedráticos e associados das faculdades de Direito em Portugal são docentes em regime de tempo parcial. Tal se deve, em larga medida, a um aspecto muito peculiar: não há uma Advocacia-Geral da União ou equivalente em Portugal. Muitos ministérios contratam escritórios privados para emissão de parecer ou para ações judiciais e os docentes das faculdades de Direito mais respeitadas terminam por ser os escolhidos para tais funções. Outras funções importantes como membros de conselhos de administração ou fiscal de empresas públicas e privadas também são exercidas por professores de Direito. A título de exemplo, veja-se que Menezes Cordeiro, Pinto Monteiro, Jorge Miranda, José Joaquim Gomes Canotilho, Avelãs Nunes, Dário Moura Vicente, Pedro Pais de Vasconcelos, Carneiro da Frada, José de Oliveira Ascensão, e outros grandes juristas portugueses contemporâneos, não são professores em regime de dedicação exclusiva.   

Finalmente, a remuneração dos professores portugueses, conforme dados de 2009, é a seguinte: 1) catedrático (último nível): a) dedicação exclusiva – €4.664,97; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima:  €3.109,98; 2) associado com agregação (último nível): a) com dedicação exclusiva: €4.010,23; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima: €2.673,49; 3) auxiliar: a) com dedicação exclusiva: €3.191,82; b) sem dedicação exclusiva, com carga horária máxima: €2.127,88.[6]

O currículo nas Faculdades de Direito
As universidades possuem enorme autonomia para fixação de seus currículos. Diferentemente do que se tem afirmado em alguns fóruns, não há preponderância de disciplinas optativas nos currículos das duas maiores faculdades de Direito de Portugal, Lisboa e Coimbra.

Veja-se que, em Coimbra, há 37 disciplinas obrigatórias e 12 optativas, sendo que a regra de distribuição entre umas e outras é muito objetiva: “No segundo semestre de cada ano, o estudante deverá inscrever-se numa unidade curricular optativa de entre as oferecidas para cada ano curricular em concreto”. Na prática, isso significa que o aluno poder-se-á matricular, ao longo do curso, em 1 disciplina por ano, o que perfaz uma mobilidade de quase 5% do total de cadeiras.[7]

Outra afirmação que se tem reproduzido equivocadamente sobre os currículos portugueses está na prevalência de disciplinas não jurídicas (Psicologia, Antropologia, por exemplo). Na Universidade de Coimbra, das 37 disciplinas obrigatórias, as únicas não jurídicas são: a) Economia Política 1 e 2 (matéria já lecionada por António de Oliveira Salazar); b) Medicina Legal (que não é bem um exemplo de uma disciplina não jurídica). Nas optativas, encontram-se Alemão Jurídico, Inglês Jurídico, Direito do Trabalho 2, Introdução ao Pensamento Jurídico Contemporâneo. Por sua vez, Direito Romano, História do Direito Português e Direito da União Europeia são obrigatórias.

Essa correlação entre matérias obrigatórias e optativas ou entre disciplinas jurídicas e não jurídicas é conservada, com ligeiras variações, na matriz curricular da Universidade de Lisboa. No primeiro semestre, os alunos têm aulas de Introdução ao Estudo do Direito 1, Teoria Geral do Direito Civil 1, Direito Romano, Direito Constitucional 1 e Economia 1. No segundo semestre, as disciplinas são Introdução ao Estado do Direito II, Teoria Geral do Direito Civil 2, Direito Constitucional 2 e História do Direito Português. No segundo semestre, o aluno escolhe uma optativa de entre estas: Economia 2, Filosofia do Direito, História das Ideias Políticas e Sociologia do Direito. Como não jurídicas, têm-se apenas Economia e História das Ideias Políticas.[8]

Conclusões
Nesta coluna, três pontos essenciais podem ser destacados. O primeiro está na aproximação da estrutura de carreira docente portuguesa e alemã. Estabilidade e exclusividade no topo associadas à precariedade e multiplicidade na base. O segundo está na conservação do doutorado como eixo fundamental da formação do professor português. Nesse aspecto, há diferença do modelo alemão, cujo opus magnum da carreira universitária é a tese de habilitação, equivalente a nossa livre-docência. O terceiro ponto está na rigidez curricular e na prevalência das disciplinas jurídicas. Há aqui um termo médio entre o modelo alemão e o brasileiro. Os portugueses também valorizam disciplinas jurídicas não dogmáticas, o que se percebe por uma maior abertura para estudos de Filosofia do Direito e História do Direito. O currículo mantém-se fechado, com baixa quantidade de optativas e, mais que isso, um número restrito de matérias não obrigatórias elegíveis ao longo do curso. Nem por essa razão é admissível dizer que o ensino jurídico público em Portugal seja de má qualidade.

Na próxima semana, examinar-se-á a formação discente, os concursos públicos, a literatura jurídica e a internacionalização no ensino jurídico português.  


[1] Informações extraídas de: http://www.uc.pt/fduc/corpo_docente. Acesso em 17-2-2015.

[2] Diário de Notícias, Lisboa, 2010. Disponível em: http://www.dn.pt/inicio/portugal/interior.aspx?content_id=1596295. Acesso em 20-2-2015.

[4] Art. 5o, item 1, Decreto-lei no 448, de 13.11.1979.

[5] Informações extraídas do Decreto-lei no 239, de 19 de junho de 2007, que regula a agregação em Portugal.  Disponível em: https://dre.pt/application/dir/pdf1sdip/2007/06/11600/39003903.pdf. Acesso em 22-2-2015.

[6] Tabela salarial dos professores universitários portugueses de 2009, disponível em: http://sigarra.up.pt/fpceup/pt/legislacao_geral.legislacao_ver_ficheiro?pct_gdoc_id=2190. Acesso em 22-2-2015. Podem ter ocorrido reduções em razão das contribuições extraordinárias instituídas pelo Governo português para atender aos controles da  União Europeia, após a crise econômica iniciada em 2008.

[7] Confira-se a matriz curricular da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra aqui: https://apps.uc.pt/courses/PT/programme/1556/2012-2013?id_branch=2361). Acesso em 22-2-2015.

[8] Informações extraídas do sítio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, no campo Plano de Estudos. Disponível em: http://www.fd.ulisboa.pt/CursosAlunos/Licenciatura.aspx. Acesso em 22-2-2015. 

Autores

  • Brave

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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