Restrição de garantias

Mudança no regimento interno do Superior Tribunal de Justiça viola regras do CPP

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10 de março de 2015, 8h36

No retorno aos trabalhos no início do ano judiciário os advogados se confrontam com uma norma que alterou o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça nos últimos dias do ano de 2014. Publicada dias antes do recesso, a Emenda Regimental 16 alterou diversos dispositivos do Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça.

A referida Emenda 16 amplia substancialmente os poderes do ministro–relator e atinge de forma quase mortal garantias constitucionais como o Habeas Corpus e o Mandado de Segurança.

O artigo 202 do Regimento do Superior Tribunal de Justiça que dispõe sobre o Habeas Corpus ficou com a seguinte redação:

Art.202. Instruído o processo e ouvido o Ministério Público em dois dias, o relator o colocará em mesa para julgamento, na primeira sessão da Turma, da Seção ou da Corte Especial, ou se a matéria for objeto de jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal , poderá decidir monocraticamente.( grifos nossos)

A norma atribui poderes ao relator para decidir de forma monocrática em Habeas Corpus se a matéria for objeto de jurisprudência consolidada. E é exatamente sobre essa ampliação da competência do relator que algumas reflexões se fazem imprescindíveis.

Nessa perspectiva, antes de mais nada, cabe saber se o Regimento Interno dos tribunais superiores pode fixar regras procedimentais para o Habeas Corpus.

Com efeito, a análise sistemática dos dispositivos que regem o Habeas Corpus — na Constituição Federal artigo 5º, incisos LXVIII, LXXVII , artigo 105, inciso I, alínea “a” e inciso II, alínea “a”, na Lei 8.038/90 e no Código de Processo Penal — nos leva a algumas conclusões.

Em primeiro lugar, constata-se que com relação ao Habeas Corpus aplicam-se as normas previstas no Código de Processo Penal, conforme o disposto no artigo 23 da Lei 8.038/90 que regula o trâmite dos processos perante o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça.

Por seu turno, o artigo 667 do Código de Processo Penal dispõe “no processo e julgamento do habeas corpus de competência originária, bem como nos recursos das decisões de última ou única instância, denegatórias de habeas corpus observar-se-á, no que lhes for aplicável, o disposto nos artigos anteriores, devendo o regimento interno do tribunal estabelecer as regras complementares.” ( grifo nosso)

Nesse sentido, fica evidenciado que o Habeas Corpus de competência originária ou com trâmite nos tribunais superiores deve obedecer as regras contidas no artigo 661 e seguintes do Código de Processo Penal, sendo autorizado ao Regimento Interno do Tribunal a dispor apenas de forma complementar. Ou seja, não pode o Regimento Interno de um tribunal alterar as normas já estipuladas pelo Código de Processo Penal. 

Como parâmetro dos limites do que pode ser regulado pelo Regimento Interno do Tribunal deve-se observar quais são as regras já previstas nos artigos 661 e seguintes do Código de Processo Penal para os requerimentos de Habeas Corpus com trâmite nos tribunais.

A leitura daqueles dispositivos nos leva, de plano, à constatação que, nos casos de falta de observância de requisito objetivo (parágrafo 1º do artigo 654) o juiz deverá mandar “preenchê-lo logo que apresentada a petição” — artigo 662 do CPP.

É exigido ainda que o exame do Habeas Corpus, em curso nos tribunais, seja referendado por um órgão colegiado — “a petição de Habeas Corpus será apresentada ao secretario, que a enviará imediatamente ao presidente do Tribunal, ou da câmara criminal , ou da turma , que estiver reunida , ou primeiro tiver de reunir-se.” (artigo 661) (grifos nossos).

Também em caso de indeferimento liminar da ordem, a lei processual exige expressamente que o presidente leve a petição ao tribunal, câmara ou turma, para que delibere a respeito (artigo 663).

Nesse sentido, está absolutamente claro que em casos de indeferimento liminar da ordem de Habeas Corpus é imprescindível que o colegiado se pronuncie.

Havendo, ainda, omissão de algum requisito objetivo na impetração, a lei permite a possibilidade de supri-la.

Isso significa que o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça ao dispor que o relator poderá decidir monocraticamente (em desfavor) do paciente viola o já disposto no Código de Processo Penal, seja pela sua forma seja por seu conteúdo.

Ademais, o artigo 202 do regimento interno mostra-se em total descompasso com a própria Constituição Federal, pois estabelece restrição à garantia constitucional do Habeas Corpus que é uma das mais importantes garantias individuais já alcançadas pelo Estado Democrático de Direito.

Antes mesmo de ser içado à condição de garantia constitucional pela primeira Constituição Federal datada de 1891, teve sua previsão legal no Código de Procedimento Criminal datado de 1830, que representou um avanço para a época. Tal era sua importância, que foi tipificado como crime a recusa, a demora, e a omissão por parte de autoridades- tais como juízes e funcionários de Estado, o total descumprimento dos Habeas Corpus, sendo a punição de prisão e perda do cargo (artigos 183, 184, 185, 186, 187 e 188 do Código de Procedimento Criminal).

Assinala-se que somente no período mais duro da História do Brasil, o Habeas Corpus foi suspenso — artigo 10 do Ato Institucional 5, de 13 de dezembro de 1968.

Mais plausível seria, por conseguinte, que o Superior Tribunal de Justiça, ao invés de implementar normas que restrinjam garantias constitucionais fizesse estudo circunstancial sobre a proporcionalidade de impetrações e os respectivos abusos cometidos. E, que traçasse, ainda, diretrizes e critérios para coibir não as ordens de Habeas Corpus, mas sim, aqueles atos arbitrários que dão ensejo às impetrações.

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