Segunda Leitura

Poder Judiciário não deve
ignorar a governança pública

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

1 de março de 2015, 8h00

Spacca
O Direito tem recebido nos últimos anos forte influência de áreas interdisciplinares. A globalização dos negócios, a comunicação virtual, a mudança de costumes e outros fatores, fazem com que, cada vez mais, ocorra um entrelaçamento entre o Direito e a Economia, a Administração Pública, a Sociologia e a Antropologia.

Do profissional do Direito exige-se que tenha não apenas conhecimentos jurídicos, mas também de áreas afins. Neste quadro, a especialização acaba sendo uma imposição, já que ninguém consegue ter, simultaneamente, conhecimentos tão amplos e profundos.

Da Ciência da Administração recebemos, há alguns anos, as Políticas Públicas. Os operadores jurídicos viram-se obrigados a estudá-las, uma vez que elas passaram a ser discutidas judicialmente. A sociedade e os órgãos legitimados passaram a provocar o Poder Judiciário, por exemplo, com a reivindicação de remédios, e daí passou-se a estudar a matéria, hoje presente nos currículos do Direito Administrativo.

Mais recentemente, a Governança Pública entrou na pauta de discussões. Dela pouco se sabe no mundo jurídico. Os índices de obras clássicas do Direito Administrativo não a incluem na letra G. Cita-se, a título de exemplo, Direito Administrativo Moderno (17ª edição), de Odete Medauar, e Curso de Direito Administrativo (9ª edição), de Marçal Justen Filho, ambos de 2013 pela Revista dos Tribunais. Portanto, quem quiser introduzir-se na matéria terá que recorrer ao mundo digital.  Colocadas as duas palavras no Google, surgem nada menos do que aproximadamente 549.00 resultados.[1]

A Governança Pública é consequência direta da existência da Governança Corporativa, instituída pelas empresas para regular suas atividades, objetivos pelos quais se orienta a forma de administração, envolvendo todos os atores interessados, ou seja, não só o Poder Público como fornecedores, clientes, credores e instituições financeiras.

O Instituto Brasileiro de Governança Pública (IBGP), analisa em seu site a “Governança do Setor Público” e, após fornecer o conceito dado pelos  principais estudos sobre a matéria, registra que “Quanto aos resultados esperados, observa-se que, comparativamente à Governança Corporativa geral — em que se busca a agregação de valor e melhores taxas de retorno do capital investido pelos acionistas — na Governança Pública o resultado a ser obtido é a melhoria dos serviços prestados à sociedade e dos benefícios auferidos pela população”.

A Governança Pública reflete uma tendência mundial da sociedade interferir na administração do Estado. Evidentemente, ela só será possível em regime democrático e com forte consciência social. Em regimes autoritários, a administração é centralizada e os dados internos são preservados com rigor. Óbvio que a transparência administrativa, neles, nem sequer é cogitada.

Induvidosamente, tudo isto ocorre por fatores múltiplos. Mas é possível afirmar que contribui para esta nova situação a descrença da população no sistema de governo (e nos dirigentes) e a comunicação através das redes sociais, que permite mobilizar milhares de pessoas em pequeno espaço de tempo.

Os professores alemães Leo Kissler e Francisco G. Heidemann adotam o conceito de Loffer, para afirmar que consiste em  “uma nova geração de reformas administrativas e de Estado, que têm como objeto a ação conjunta, levada a efeito de forma eficaz, transparente e compartilhada, pelo Estado, pelas empresas e pela sociedade civil, visando uma solução inovadora dos problemas sociais e criando possibilidades e chances de um desenvolvimento futuro sustentável para todos os participantes”.[2]

Em poucas palavras, significa modernizar a administração pública, torná-la menos onerosa, utilizar as técnicas de administração das empresas, diminuir a distância entre a administração pública e a sociedade. Sintetizando, procurar fazer com que a democracia seja participativa.

É óbvio que isto não é nada fácil. Mas no Brasil já há tentativas  nesta direção. Por exemplo, a Universidade Tecnológica Federal do Paraná introduziu no curso de bacharelado em Administração a matéria “Governança Pública e Corporativa”[3].

Segundo Maria da Conceição C. Marques, “Em Portugal, o sector público tem vindo a instituir práticas de governança corporativa, sendo o sector universitário um exemplo disso. Entre outras práticas, a realização de auditorias regulares nas universidades mostra-se como uma boa experiência, pois as instituições que as têm realizado têm daí colhido os seus frutos”[4].

Porém, como poderia o Judiciário envolver-se nesse sistema? O mais conservador dos Poderes de Estado aceitaria dividir com terceiros uma parcela da administração da Justiça? A resposta é sim e não. O não será analisado primeiro.

Todas as alterações encontram resistências e esta não seria exceção. Pelo contrário, a resistência seria forte, porque estranhos iriam opinar sobre o que há séculos é feito por magistrados e servidores públicos. Sim, porque na medida em que não se modifica, o Judiciário mais se afasta da sociedade e perde credibilidade. Por exemplo, a cada escândalo envolvendo juízes, a solução tradicional de instaurar-se uma sindicância não responde ao anseio social. Se o fato for incontroverso, o afastamento das funções é a única resposta certa, não só porque é exigida pela sociedade, como por intimidar os que tenham tendência de transgredir a regra.

Supondo-se que um Tribunal esteja disposto a aceitar a Governança Pública, resta analisar com ela seria feita. Óbvio que não há nenhum marco legal ou uma apostila orientando o gestor judiciário. Mas, libertando o pensamento com ideais sobre o assunto, poderíamos vislumbrar algumas hipóteses:

a) Criação de um Comitê de Ética para atender consultas de magistrados sobre como proceder em determinadas situações, nele incluindo membros do Tribunal e também externos, que poderiam ser acadêmicos, agentes do MP ou da advocacia;

b) Abertura ao mundo empresarial, para que sugerissem práticas de sucesso corporativo com possibilidade de serem adotadas no Poder Judiciário;

c) Prestação de serviço voluntário  na área administrativa e judiciária, como feito pelo TRF da 4ª. Região com sucesso;

d) Parceria com Conselhos de Arquitetura, para colheita de sugestões  na construção de Fóruns;

e) Parceria com Conselhos de Administração, para colheita de sugestões na gestão pública;

f) Partilha de espaços públicos, permitindo exposições de fotos, pinturas, formas de arte.

Em suma, trazer a sociedade para dentro do tribunal evitará o distanciamento e permitirá que as relações sejam mais francas e de mútua confiança. Tudo isto, evidentemente, com as cautelas devidas. Ninguém imagina que em um setor estratégico (como uma uma Vara de Lavagem de Dinheiro) abra-se a secretaria para acesso a terceiros. Melhorar os serviços judiciários não é algo simples, mas é preciso sempre tentar, tentar e tentar. Qual tribunal dará o primeiro passo?

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente eleito da "International Association for Courts Administration - IACA", com sede em Louisville (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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