Processo Familiar

Tributo a Nelson Carneiro: a luta
e a batalha do divórcio (parte 3)

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

26 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Os embates entre Nelson Carneiro e monsenhor Arruda Câmara não se restringiram aos argumentos contrários e aos favoráveis ao divórcio à luz do texto constitucional ou dados estatísticos e de ordem moral. Em memoráveis passagens, o debate passou por questões de História e de direito canônico. Dois momentos históricos profundamente importantes para a questão divorcista voltam à baila, na Sessão da Câmara dos Deputados de 1951.

O primeiro foi o casamento de Henrique VIII com Catarina de Aragão[1] e o pedido de divórcio endereçado aos papas Clemente VII e Paulo III. O rei inglês, filho de Henrique VII, casou-se em primeiras núpcias, com a esposa de seu falecido irmão Arthur, a princesa espanhola Catarina de Aragão. Após várias tentativas de concepção de um herdeiro do sexo masculino, e dos diversos insucessos, o rei inglês decide se divorciar da esposa, o que era absolutamente impossível de acordo com as regras da Igreja Católica. A alegação fora que Catarina já havia mantido relação sexual com Arthur, o que macularia de maneira absoluta as segundas núpcias.

A complicação era ainda maior levando-se em conta que o sobrinho de Catarina, Carlos V, era Imperador do Sacro-império Romano-germânico. De repente, o papa viu-se diante de duas grandes forças da cristandade que se antagonizavam. O final da história é conhecido de todos: Henrique VIII funda a Igreja Anglicana (Church of England), rompe com a Católica, é excomungado por Clemente VII (1533) e pelo Ato de Supremacia de 1534 (Act of Supremacy) declara que o rei é o Chefe Supremo da Igreja.

Sobre a cisma, afirma monsenhor Arruda Câmara[2] que a Igreja preferiu ver com lágrimas nos olhos, separar-se o Império Inglês, do rebanho católico, a transigir na dissolução do vínculo conjugal de Henrique VIII porque lhe era presente o preceito divino: “não separe o homem o que Deus uniu”.

Nelson Carneiro rebate: “A História diz outra coisa”. E monsenhor Arruda Câmara insiste: “Só se for a História da fantasia de Vossa Excelência”. E fala Nelson Carneiro: “Então o nobre colega não conhece a História da Inglaterra. Não sabe por que Henrique VIII se separou da Igreja?”. Então, o golpe de misericórdia, Nelson Carneiro lembra que Carlos V era tio de Catarina, sobrinho do papa e seu preferido, “pois Henrique VIII morava numa ilha deserta, do outro lado da mancha”.

monsenhor Arruda Câmara ataca de maneira veemente os argumentos históricos: “Isso é o que V. Exa. afirma erroneamente para desmentir a Igreja. E o monarca britânico, que havia merecido de Leão X o título de Defensor Fidei, que ainda hoje a dinastia conserva, pelo livro Assertio Septem Sacramentorum contra M. Lutherum, ao receber o Non Possumus de Roma, proclamou-se Chefe Supremo da Igreja Inglesa ou Anglicana. O Pontífice excomungou-o. Henrique VIII divorciou-se de Catarina, para casar-se com Ana Bolena, desta para consorciar-se com Joana Seymour e sucessivamente com Ana de Cleves, Catarina Howard e Catarina Parr. Executou várias de suas esposas, acusando-as de adultério, bem como católicos que repeliram a revolta contra Roma.”

Na realidade, dos seis casamentos de Henrique VIII dois terminaram por divórcio (Catarina de Aragão, a primeira esposa e Ana de Cleves, a quarta), dois por execução das esposas (Ana Bolena, a segunda, e Catarina Howard, a quinta), um pela morte da esposa (Jane ou Joana Seymour, a terceira esposa e aquela que lhe deu o filho homem e sucessor Eduardo VI) e, o último, pela morte do próprio Monarca (Catarina Parr).

O segundo fato histórico foi o relativo ao divórcio de Jerônimo Bonaparte (casado com Elizabeth Patterson)[3] e a pressão de Napoleão I (seu irmão) sobre o papa Pio VII. Diante da resistência do pontífice na anulação do casamento, o próprio Napoleão I o anulou.

Sobre o tema, enfatiza monsenhor Arruda Câmara: “Napoleão oprimiu Pio VII. Exigiu dele o divórcio de Jerônimo Bonaparte e impôs que entrasse na Liga contra a Inglaterra. O Papa negou duas vezes o divórcio de Jerônimo e respondeu que ‘sendo o Pai de todos não podia ser inimigo de nenhum.’ Napoleão invadiu os Estados Pontifícios e suas tropas chegaram a Roma. O Papa não cedeu. Napoleão fez prender Pio VII e o depôs. Escreveu ao Rei de Nápoles queixando-se da resistência do Pontífice dizendo: ‘que fará o Papa? Há de querer me excomungar-me. Mas fará a excomunhão cair as armas das mãos dos meus soldados? E que falta então? Cortar-me o cabelo e mandar encerrar-me num mosteiro?’”.

Em que pese a veracidade dos argumentos de monsenhor Arruda Câmara, evidentemente toda a questão não passava apenas pela possibilidade ou não de divórcio de Jerônimo Bonaparte. Havia, na época, uma grande luta entre os revolucionários franceses que se afastavam dos preceitos da Igreja Católica e Roma, que não queria ver os franceses apartados de seus rebanhos. Mais que a questão de um divórcio, pós o Terror decorrente da Revolução de 1789, temia o Papa Pio VII nova cisma, tal qual a ocorrida dois séculos antes na Inglaterra.

Mas não foi só a história de outros países que foi debatida na longa discussão a respeito do divórcio. Nelson Carneiro, profundo conhecedor da História pátria, após provocação do monsenhor Arruda Câmara[4], afirma: “Entro agora, Sr. Presidente, naquilo que monsenhor Arruda deseja, na realidade brasileira. S. Exa. tem contado o que acontece nos Estados Unidos, na Alemanha, na França. Vou, agora, contar o que acontece no Brasil desde a descoberta”.

Na obra “Cartas do Brasil”, da lavra do Padre jesuíta Manoel da Nóbrega, consta que os clérigos que ao Brasil vieram, encontravam-se amancebados com suas escravas, e com elas, sempre as melhores e de maior preço, logo começaram a fazer filhos. Conclui o jesuíta que se contarmos as casas “desta terra”, todas se acharão cheias de pecados mortais, cheias de adultérios e fornicações, incestos e abominações[5].

À citação, reage com veemência monsenhor Arruda Câmara: “Só não sabia que o Padre Manoel da Nóbrega é autoridade em Direito Civil…”; “isso era no início do Brasil”; “V. Exa. está remontando a coisa da época em que o Brasil estava na confusão dos tempos coloniais” e “essa história é muito velha”.

Nelson Carneiro, não diminui o ritmo dos argumentos divorcistas e retruca: “para depor sobre os acontecimentos em 1559, há de ser aquele missionário muito mais autoridade que todos nós”; “começamos mal. Exatamente isso”; “se V. Exa. vai buscar argumentos no Velho Testamento, muito mais antigo, porque não posso ir aos primados do Brasil?”

Note-se que além dos argumentos jurídicos, a luta pelo divórcio se viu permeada de História e histórias.

Direito canônico
Ainda na Sessão de 4 de setembro de 1951, monsenhor Arruda Câmara traz argumentos referentes ao direito canônico para repelir o divórcio[6]. Segundo ele, o Concílio Tridentino[7] definiu em poucos cânones a doutrina obrigatória para os católicos que desejam continuar católicos. Diante dela, quaisquer controvérsias porventura antes existentes, tinham seu ponto fina: Roma locuta, causa finita. Eis os cânones: Cânon 1º) Se alguém disser que o matrimônio não é a verdadeira e propriamente um dos sete sacramentos da lei evangélica, instituído por Jesus Cristo, mas inventado pelos homens na Igreja ou que não confere a graça, seja anátema; Cânon 2º) Se alguém disser que é lícito aos cristãos ter, simultaneamente, várias mulheres e que isso não é proibido pela lei divina, seja anátema; Cânon 5º) Se alguém disser que, por causa de heresia, ou dos aborrecimentos da vida em comum (isto é sevícias, maus tratos, etc.), ou do afastamento de um cônjuge, o casamento pode ser dissolvido, seja anátema; Cânon 7º) Se alguém disser que a Igreja erra quando ensinou o que ensina que, segundo a evangélica e apostólica doutrina, não pode ser dissolvido o matrimônio, por causa de adultério de um dos cônjuges e que nenhum dos cônjuges, nem mesmo o inocente, pode contrair novo casamento, vivendo ainda o outro cônjuge, que comete adultério o que abandonando a adúltera, casa com outra, e aquela que abandonando o adúltero, casar com outro, seja anátema[8]”.

E sobre as exceções à indissolubilidade, citando a Encíclica Casti Connubi[9] de Pio XI conclui: “Se esta indissolubilidade parece sofrer alguma exceção, embora raríssima, como em certos matrimônios naturais, contraídos somente entre os infiéis, ou entre fiéis em matrimônios ratos[10] mas não consumados, tal exceção não depende da vontade dos homens, mas sim, do direito divino, de que é a guarda única e intérprete a Igreja de Cristo. Mas essa faculdade nunca poderá se aplicar por nenhum motivo ao matrimônio cristão rato e consumado. Neste, efetivamente, do mesmo modo que o vínculo conjugal obtém a plena perfeição, também resplandece por vontade de Deus a máxima estabilidade e indissolubilidade, que nenhuma autoridade poderá abalar”.

Quando apresentou em 1960, o Projeto 1.568, ampliando as causas de anulação de casamento, Nelson Carneiro aprofunda o debate de direito canônico. Diz o proponente que: “seria injusto não acentuar que o presente projeto, integralmente inspirado na legislação canônica, deverá encontrar facilidade no seio do Parlamento, para se transformar em lei. Sobretudo, ninguém dirá que se trata de divórcio a vínculo. Aumenta-se apenas o quadro das nulidades, constantes da legislação civil. Nenhuma suspeita de ofensa à Constituição encontrará o mais intransigente dos antidivorcistas em textos trasladados ipsis verbis do Codex Juris Canonici[11].

Explicou Nelson Carneiro que eram as hipóteses de nulidade vigentes no Direito Canônico que o Projeto 1568/60 pretendia incluir na legislação civil brasileira. Não se tratava de rompimento de vínculo existente, mas sim de nulidade de vínculo que na realidade inexiste. Assim, a proposição não cuida do Privilégio Paulino (exceção de direito divino quando se trata de casamento e não de sacramento entre infiéis a favor da fé do que se converte) e nem do Privilégio Petrino (concedido aos infiéis de ambos os sexos procedentes de África, Brasil e Índias, pelo qual depois do batismo, vivendo o cônjuge infiel, sem pedir seu consentimento ou sem esperar sua resposta, pode contrair matrimônio com qualquer fiel e solenizá-lo em face da Igreja).

O autor tem o cuidado de transcrever cada um dos cânones que inspirou a proposição legislativa. Assim, o art. 1º corresponde ao cânon 1.118[12], o 2º é o cânon 1013, par. 1º, o art. 4º corresponde ao cânon 1084, o artigo 5º ao cânon 1085 e o artigo 6º, de maior interesse ao debate, corresponde ao cânon 1086, parágrafo 1º. Já o parágrafo único deste dispositivo corresponde ao cânon 1086, parágrafo 2º.

No projeto, a redação do parágrafo é a seguinte: “se uma das partes, ou as duas, por ato positivo de sua vontade, excluem o casamento mesmo, ou todo o direito ao ato conjugal, ou alguma propriedade essencial do casamento, contraem-no invalidamente.”[13]

Tratar-se-ia de casamento em que haveria uma simulação quer seja por intenção de não contrair o casamento, por exclusão da obrigação do débito conjugal ou por exclusão de alguma propriedade essencial ao matrimônio. Nelson Carneiro dá como exemplo o caso da vedete Elvira Pagã, cujo casamento foi declarado nulo pelos juízes canônicos porque – como demonstrara seu ex-marido – a festejada ‘estrela’ contraíra núpcias sem que alimentasse no seu coração o propósito de torná-lo indissolúvel. Apesar das críticas que recebeu da Cúria Metropolitana, conclui o autor que é tempo de se acolher o secular ensinamento canônico e dar à simulação , quando exclui o casamento mesmo, ou todo direito ao ato conjugal, ou alguma propriedade essencial do casamento, o destaque reclamado, como causa de invalidade de união conjugal[14]. Fica evidente o profundo estudo e preparo de Nelson Carneiro para lutar com o “inimigo” em seu próprio território e com as armas que aquele sugeria.


[1] Para se ter noção da importância de Catarina, ela era uma das filhas do casal real responsável pela final unificação de todos os reinos da Espanha: Isabel de Castela e Fernando de Aragão. Foram eels que derrotaram o Sultão Boabdil no ano de 1492, tomaram o Alhambra, e unificaram toda a Espanha sob a fé católica.
[2] Os trechos que se transcrevem estão na obra “A batalha do divórcio”, p. 106/107.
[3] http://es.wikipedia.org/wiki/Jer%C3%B3nimo_Bonaparte – em 4 de outubro de 2010.
[4] Em 24 de abril de 1962, a luta…,p. 148. Todos os debates que se seguem estão na obra em questão nas pgs. 149/151.
[5] A luta…p, p. 149.
[6] A batalha…, p. 109.
[7] O Concílio de Trento foi convocado pelo Papa Paulo III, a  fim de estreitar a união da Igreja e reprimir os abusos, isso em 1546, na cidade de Trento, no Tirol italiano. No Concílio tridentino os teólogos mais famosos  da época elaboraram os decretos, que depois foram discutidos pelos bispos em sessões privadas. Interrompido várias vezes, o concílio durou 18 anos e seu trabalho somente terminou em 1562, quando suas decisões foram solenemente promulgadas em sessão pública. http://www.paginaoriente.com/catecismo/conciliodetrento.htm – em 4 de outubro de 2010.
[8] É a sentença que expulsa do seio da Igreja, excomunhão: “lançava a excomunhão, punia o réu blasfemo, no sal, no pão, caindo o anátema supremo” (Grande e novíssimo dicionário da Língua Portuguesa, Laudelino Freire, v. 1, 3ª edição, José Olympio, Rio de Janeiro, 1957, p. 527).
[9] A Encíclica sobre o casamento data de dezembro de 1930.
[10] Casamentos ratos são os casamentos cristãos válidos.
[11] A luta…, p. 120/121.
[12] Os cânones se referem ao Código Canônico de 1917. Em 25 de janeiro de 1983, João Paulo II promulgou um novo Código Canônico.
[13] Segundo transcreve Nelson Carneiro, a redação do parágrafo segundo do cânon 1086 é “At si alterutra vel utraque pars positivo voluntatis actu excludat matrimonium ipsum, aut omne ius ad conjugalem actum, vel essentialem aliquam matrimonii proprietatem, invalide contrahit”. A luta…p, 128.
[14] A luta…,p .129.

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