Voo livre

Drones geram debates jurídicos ainda não enfrentados pela lei brasileira

Autor

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

29 de maio de 2015, 7h16

A imagem de um drone com um “fantasma da série B” circulando pelo estádio La Bombonera pareceu uma grande “brincadeira” entre torcedores. E, convenhamos, teve lá a sua graça. Agora circula na internet um vídeo de um suposto aparelho nas imediações da Arena Corinthians.

Os drones são dispositivos impressionantes. Eles podem pairar no ar, girar, fazer manobras ousadas; podem se movimentar com suavidade e precisão; podem voar por pequenos espaços; transportar os mais diversos objetos, desde câmeras a uma infinidade de outras tecnologias[1].

O potencial é tão grande que a gigante do comércio eletrônico Amazon.com Inc. anunciou que em breve poderá efetuar entregas de encomendas adquiridas por meio de seu portal eletrônico em aproximadamente meia hora pelo uso do aparelho[2].

Todavia, a popularização do uso de aeronaves não tripuladas gera uma série de debates jurídicos ainda não enfrentados pela legislação brasileira. Talvez, com a presença dos drones nos estádios, o Brasil, finalmente, se insira no debate que outros países já vêm tratando a respeito da regulamentação do uso civil dos aparelhos.

A discussão não é banal. Em que pese os benefícios, diversos problemas podem decorrer da utilização civil dessas aeronaves[3]. A primeira discussão diz respeito à nomenclatura.       

A expressão drone é um termo genérico, amplamente difundido na comunidade internacional, para caracterizar todo e qualquer objeto voador não tripulado, independentemente do propósito ou utilização.

Vant é o termo utilizado pela Circular de Informações Aéreas AIC 21/10 para os Veículos Aéreos Não Tripulados caracterizados por possuir carga útil embarcada, utilizada para fins não recreativos e controláveis nos três eixos. Tal definição exclui os balões e os aeromodelos[4]. Com isso, tem-se que nem todo drone se enquadra no conceito de Vant e que o escopo da utilização é fundamental para a análise o enquadramento do aparelho na circular normativa.

A mesma circular divide ainda os Vants em duas espécies de acordo com o modo de pilotagem.  A primeira é chamada de “aeronave remotamente pilotada”. Nesta modalidade, o “piloto” controla o aparelho por meio de uma interface (controle remoto, computador etc.). A segunda é chamada de “aeronave autônoma”. Nessa modalidade, o voo é programado e não permite a intervenção externa. Essa última categoria é proibida na legislação brasileira[5].

O problema é que essa regulamentação teve, e nem poderia ser de outra forma, foco bastante específico. Preocupa-se com a segurança em diversos aspectos como o aumento dos riscos para as pessoas e para as propriedades em geral; a observância das regras de segurança das aeronaves tripuladas; proibição de voo sobre cidades, lugares habitados ou grupo de pessoas ao ar livre; proibição de compartilhamento de espaço aéreo com aeronaves tripuladas, entre outros[6].

Ademais, em relação aos drones que não se enquadram no conceito de Vants, tem-se a regulamentação por meio dos aeromodelos (Portaria DAC 207/99). Contudo, mais uma vez a preocupação é com a segurança[7].

Em 2014, a Agência Nacional de Aviação Civil anunciou que permitiria voos de Vants de até 25Kg em locais públicos a até uma altitude de 400 pés (aproximadamente 120 metros).  A proposta pretende dividir os Vants em três categorias de peso (25Kg, mais 25Kg até 150 Kg e mais de 150Kg).  Todavia, a preocupação ainda é a segurança.

O problema é que a regulamentação e o debate sobre a utilização dos drones, de um modo geral, devem ser mais aprofundados..

A utilização civil de aeronaves não tripuladas gera pelo menos dois problemas de ordem prática: a segurança e a privacidade[8]. Isso não significa a inexistência de outros.

O principal problema no direito brasileiro diz respeito ao fato de que a discussão e regulamentação dos drones se restringir aos órgãos de controle de tráfego aéreo, que, naturalmente, tem como foco a questão da segurança.            

Ademais, a regulamentação existente deixa a disciplina dos drones que não se enquadram no conceito de Vants sob a tutela dos aeromodelos[9] e basta para o não enquadramento como Vant a inexistência de um dos três requisitos: “carga útil embarcada, utilizada para fins não recreativos e controláveis nos três eixos”. Isso significa que bastaria o uso recreativo de aeronave não tripulada para o não enquadramento como Vant.

Evidentemente, ainda que se argumente que exista regulamentação para aeromodelos no Brasil, a disciplina não é suficiente sequer para a finalidade a que se propõe que é trazer segurança.

No que se refere à privacidade, a questão é ainda mais tormentosa. Os países que já enfrentam uma discussão mais aprofundada sobre a utilização de aeronaves não tripuladas hoje se questionam sobre como garantir a privacidade das pessoas em seus mais diversos aspectos, mas, principalmente, na utilização recreativa dos aparelhos.

Essa discussão não encontra ressonância no cenário regulatório brasileiro e não parece ser da alçada da Anac tal tratamento.

Antes de avançar no debate, é preciso se ter em mente que o termo privacidade nos países tradicionalmente enquadrados como Common Law é mais amplo e representa tanto a privacidade como a intimidade do direito brasileiro.

Os avanços tecnológicos fazem com que as concepções de invasão de privacidade, em sentido amplo, assumam novos contornos. Tanto a privacidade como a intimidade pressupõem uma situação de isolamento. Saber em que medida um drone, mesmo que utilizado para uso recreativo, viola essa esfera de proteção jurídica é algo extremamente relevante. A perspectiva de alteração do potencial de vigilância deve ser levada em conta[10].

Outro ponto importante, sob o aspecto da pessoa que se encontra em um ambiente social restrito ou de amplo isolamento, é estabelecer a razoabilidade da tolerância de utilização dessa nova tecnologia[11]. Nesse panorama, o conceito do tolerável e do razoável, ainda que possa observar características específicas da pessoa em situação de isolamento, deve também se ater ao local em que a pessoa se encontra. Não se pode, por exemplo, enfrentar, sob a mesma perspectiva, a privacidade em relação aos drones em um local vizinho ao de um espaço destinado ao desenvolvimento dessa atividade e em outro em que a utilização é extremamente restringida[12].

No caso dos estádios de futebol, por exemplo, prepondera o fator segurança, mas, ainda assim, a questão precisa ser melhor trabalhada. O caso do “fantasminha” da Bombonera, se ocorresse no Brasil, poderia ter a AIC 21/10 afastada pela argumentação de que a utilização do aparelho tinha finalidade recreativa. Ainda que se questione o fato de que a portaria dos aeromodelos poderia ter sido violada pela aglomeração de pessoas no estádio, não se trata de uma questão de simples verificação.

No caso da Arena Corinthians, a questão, embora pareça ter oferecido menos risco à segurança, demonstra como o problema da privacidade é algo real. O aparelho captura imagens de imóvel privado ultrapassando obstáculos que garantiriam, em tese, a condição de isolamento.

Ambas as situações demonstram um fato, a legislação brasileira é insuficiente no que se refere aos drones. Mais do que isso, as perspectivas de alteração ainda são insipientes por restringirem a discussão unicamente à questão da segurança.


[1] Research Group of the Office of the Privacy Commissioner of Canada, Drones in Canada: Will the proliferation of domestic drone use in Canada raise new concerns for privacy? In:  OPC Research Reports, Ottawa: Office of the Privacy Commissioner of Canada, 2013, p. 1.

[2] AKKAD, Omar el; CRYDERMAN, Kelly. Technology: rise of the drones; From Ontario's farmland to Alberta's oil sands, companies are taking advantage of a regulatory quirk that has given Canada a multiyear headstart in the industry. In: The Globe and Mail (Canada), Reportagem de 07 de abril de 2014 na Seção Report on Business.

[3] Não se pretende aqui discutir qualquer utilização de aparelhos não tripulados com finalidade militar.

[4] AIC nº 21/10. 2.2.22 Vant É um veículo aéreo projetado para operar sem piloto a bordo, que possua uma carga útil embarcada e que não seja utilizado para fins meramente recreativos. Nesta definição incluem-se todos os aviões, helicópteros e dirigíveis controláveis nos três eixos, excluindo-se, portanto, os balões tradicionais e aeromodelos.

[5] AIC nº 21/10. 3.2 O Vant é, reconhecidamente, uma categoria de aeronave e, como tal, tem que ser pilotado. O controle desse tipo de aeronave pode ser exercido diretamente por um piloto localizado em uma estação remota de pilotagem-ERP (aeronave remotamente pilotada) ou indiretamente através de programação (aeronave autônoma). Tendo em vista as restrições tecnológicas ainda existentes, bem como a maior facilidade de adaptação às regras em vigor, preliminarmente, apenas as ARP terão acesso ao espaço aéreo brasileiro.

[6] AIC nº 21/10. 3.7 Com a finalidade de proporcionar um acesso ordenado e seguro dos Vant ao Espaço Aéreo Brasileiro, levando-se em conta a ausência de publicações da OACI a respeito, as solicitações para voos de Vant serão analisadas caso a caso, em função das particularidades do pedido e levando-se em conta todos os aspectos concernentes à segurança dos usuários do SISCEAB, entre eles: a) a operação de qualquer tipo de Vant não deverá aumentar o risco para pessoas e propriedades (no ar ou no solo); b) a garantia de manter, pelo menos, o mesmo padrão de segurança exigido para as aeronaves tripuladas; c) a proibição do voo sobre cidades, povoados, lugares habitados ou sobre grupo de pessoas ao ar livre; d) os Vant deverão se adequar às regras e sistemas existentes, e não receberão nenhum tratamento especial por parte dos Órgãos de Controle de Tráfego Aéreo; e) o voo somente poderá ocorrer em espaço aéreo segregado, definido por NOTAM, ficando proibida a operação em espaço aéreo compartilhado com aeronaves tripuladas; e f) quando for utilizado aeródromo compartilhado para a operação do Vant, as operações devem ser paralisadas a partir do início do táxi ou procedimento equivalente até o abandono do circuito de tráfego, na sua saída, e da entrada no circuito de tráfego até o estacionamento total, na sua chegada.

[7] Art. 1º da Portaria DAC nº 207/99 – Estabelecer as Regras para a Operação do Aeromodelismo no Brasil, como segue:

(a) A operação de aeromodelos deve ser realizada em locais suficientemente distantes de áreas densamente povoadas. Deve ser evitada a operação de aeromodelos motorizados nas proximidades de áreas ou instalações urbanas sensíveis ao ruído, como hospitais, templos religiosos, escolas e asilos.

(b) Deve ser evitada a operação de aeromodelos na presença de público até que o aeromodelo seja testado em voo, com êxito, e comprove segurança na sua operação.

(c) A menos que autorizado, nenhum aeromodelo deve ser operado a mais de 400(quatrocentos) pés acima da superfície terrestre. A operação de aeromodelos nas proximidades de aeródromos somente poderá ser executada após autorização do responsável pela operação do aeródromo.

(d) É proibida a operação de aeromodelos nas zonas de aproximação e decolagem dos aeródromos.

(e) As operações com equipamentos rádio-controlados distintas de esporte e lazer deverão ser submetidas ao Departamento de Aviação Civil.

(f) Em caso de dúvidas, procure o Departamento de Aviação Civil ou o Serviço Regional de Aviação Civil.

[8] VARONE, Curt. So You Want To Fly a Drone: Drones and the Law. In: Firehouse, Vol.39(7), Jul 2014, pp.46,48-49.

[9] Vide http://www.decea.gov.br/autorizacoes-para-voos-de-vant-entenda-melhor/  (acesso em 20/05/15)

[10] STANLEY, Jay; CRUMP, Catherine. Protecting privacy from aerial surveillance: Recommendations for government use of drone aircraft. In: American Civil Liberties Union (ACLU), 2011 (acesso por https://www.aclu.org/files/assets/protectingprivacyfromaerialsurveillance.pdf  em 18/05/15)

[11] VARONE, Curt. So You …, pp.46,48-49.

[12] THOMPSON II, Richard M.. Drones in Domestic Surveillance Operations: Fourth Amendment Implications and Legislative Responses. In: Congressional Research Service (CRS) Report, April 3, 2013 (acesso por http://www.fas.org/sgp/crs/natsec/R42701.pdf em 19/05/15).

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