Interesse Público

Judicialização de políticas públicas pode opor interesses individuais e coletivos

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28 de maio de 2015, 8h01

Spacca

O tema das políticas públicas, no âmbito do Direito brasileiro, passou a chamar a atenção dos juristas nos últimos 10 anos. As políticas públicas são metas e instrumentos de ação que o poder público define para a consecução de interesses públicos que lhe incumbe proteger. O tema  relaciona-se com o da discricionariedade, seja na escolha do interesse público a atender, dentre os vários agasalhados pelo ordenamento jurídico, seja na escolha das prioridades e dos meios de execução. E aqui não se fala apenas da discricionariedade da Administração Pública. Fala-se, muitas vezes, até com maior razão, na própria discricionariedade do legislador ao definir políticas públicas com base em metas maiores postas pela Constituição.

Com efeito, a partir da ideia de que a definição de políticas públicas implica opções a serem feitas pelo poder público e que essas opções são externadas por variados instrumentos (Constituição, Emendas à Constituição, atos normativos do Poder Legislativo, do Poder Executivo e de órgãos e entidades da Administração Pública), poder-se-ia fazer uma gradação levando em conta a própria hierarquia dos atos estatais. Existem metas fixadas pela própria Constituição, dirigidas a todos os entes da federação e aos três Poderes do Estado.

Em muitos casos, a Constituição já indica os instrumentos hábeis para a consecução das metas. É o caso, por exemplo, do artigo 182, parágrafo 4º, que prevê os instrumentos hábeis para garantir a função social da propriedade urbana. Outras vezes, a Constituição distribui entre as três esferas de Governo a competência para definir as políticas públicas, como se verifica pelo artigo 21, que outorga à União, entre outras, a competência para elaborar e executar planos nacionais e regionais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social (inciso IX), planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações (inciso XVIII) etc.

Postas as metas, em termos genéricos, pela Constituição, cabe ao legislador, em segundo plano, discipliná-las de modo a garantir o seu atendimento, por meio dos atos legislativos previstos no artigo 59. Muitas leis deixam ao Poder Executivo e a órgãos e entidades da administração direta e indireta a implementação das políticas públicas nelas postas.

Seria simples afirmar que as políticas públicas são definidas pelo Legislador e executadas pelo Executivo, sendo vedado ao Judiciário exercer o controle sobre as opções feitas, porque isto afrontaria o princípio da separação de poderes. E, na realidade, as grandes metas governamentais são traçadas pela própria Constituição e respectivas Emendas. O legislador disciplina as matérias postas na Constituição. O Executivo, por meio dos entes da administração direta e indireta, as executa.

No entanto, o modo como o tema vem sendo posto por parte da doutrina coloca em xeque essa forma de aplicação do princípio tradicional da separação de poderes. O Judiciário vem interferindo nas políticas públicas, na tentativa de suprir as lacunas deixadas pela inércia dos demais poderes. Mas o faz a partir do exame de casos concretos, que, somados, correspondem à definição de políticas públicas, feita sem qualquer planejamento (que o Judiciário, pela justiça do caso concreto, não tem condições de fazer) e sem atentar para as deficiências orçamentárias que somente se ampliam em decorrência de sua atuação, desprovida que é da visão de conjunto que seria necessária para a definição de qualquer política pública que se pretenda venha em benefício de todos e não de uma minoria privilegiada pelo acesso à Justiça.

Isto ocorre porque as políticas públicas são vistas como o instrumento adequado para concretizar os direitos fundamentais previstos na Constituição, especialmente na área social. Como o modelo do Estado Social é pródigo na proteção dos direitos fundamentais e na previsão de inúmeros serviços sociais como deveres do Estado, a consequência inevitável é a de que acabam por se colocar em confronto, de um lado, o dever constitucional de atender às imposições constitucionais, que correspondem a direitos do cidadão, e, de outro lado, a escassez dos recursos públicos para atender a todos esses direitos. Daí o princípio da reserva do possível, oriundo do direito alemão: os deveres estatais, impostos pelo ordenamento jurídico, devem ser cumpridos na medida em que o permitam os recursos públicos disponíveis.

Surge então o difícil problema de tentar estabelecer critérios para a definição de políticas públicas: quais as prioridades a serem atendidas? Quais as escolhas que melhor atendem às metas constitucionais? Pode o Poder Judiciário interferir nas escolhas feitas pelo legislador ao definir as metas no plano plurianual e distribuir recursos nas leis orçamentárias? Pode o Poder Judiciário interferir nas escolhas feitas pela Administração Pública?

Rigorosamente, não pode o Judiciário interferir em políticas públicas, naquilo que a sua definição envolver aspectos de discricionariedade legislativa ou administrativa. O cumprimento das metas constitucionais exige planejamento e exige destinação orçamentária de recursos públicos. Estes são finitos. Não existem em quantidade suficiente para atender a todos os direitos nas áreas social e econômica. Essa definição está fora das atribuições constitucionais do Poder Judiciário. Este pode corrigir ilegalidades e inconstitucionalidades, quando acionado pelas medidas judiciais previstas no ordenamento jurídico, mas não pode substituir as escolhas feitas pelos Poderes competentes.

No entanto, o que se verifica é que, por diferentes formas, o Judiciário vem interferindo, direta ou indiretamente, na formulação de políticas públicas. Existem diferentes fatores que vêm contribuindo para isso. Dois deles saltam aos olhos: de um lado, a inércia do poder público, a sua ineficiência, a ausência ou deficiência no planejamento, a corrupção, os desvios de finalidade na definição de prioridades, os interesses subalternos protegidos, em detrimento de outros, especialmente relevantes para a garantia dos direitos fundamentais. É doloroso assistir-se aos gastos do dinheiro público com publicidade, mordomia, corrupção, em detrimento da saúde, educação, moradia e outros objetivos de interesse social.

De outro lado, há a atuação do Ministério Público que, na missão de proteger os interesses difusos e coletivos, especialmente nos pequenos municípios, utiliza os termos de ajustamento de conduta para interferir nas decisões das autoridades públicas e as ações civis públicas para obter do Poder Judiciário prestações positivas dirigidas às autoridades, para obrigá-las a prestar determinado serviço público ou a construir determinada obra pública. O Ministério Público impulsiona o Judiciário a interferir nas políticas públicas, nem sempre com sucesso.

A interferência do Judiciário vai ganhando adeptos, sob o argumento de que, ao interferir em políticas públicas, ele não está invadindo matéria de competência dos outros Poderes do Estado, nem a discricionariedade que lhes é própria, porque está fazendo o seu papel de intérprete da Constituição. Ele está garantindo o núcleo essencial dos direitos fundamentais ou o mínimo existencial indispensável para a dignidade da pessoa humana. Em resumo, o Judiciário não estaria analisando aspectos de discricionariedade, mas fazendo cumprir a Constituição.

Tratando-se do mínimo existencial, alega-se que as normas constitucionais que o garantem têm eficácia imediata, não dependendo de medidas legislativas ou executivas para a sua implementação. Em decorrência disso, a omissão do poder público, afrontando metas constitucionais, pode ser corrigida pelo Poder Judiciário, quando provocado pelos próprios interessados ou por órgãos de defesa de interesses coletivos, de que constituem exemplo o Ministério Público, os sindicatos, os partidos políticos. Invoca-se a necessidade de ponderação, de equilíbrio, de razoabilidade, de proporcionalidade na atuação do Poder Judiciário.

O fato é que, a partir de tais ideias, aqui expostas de forma muito resumida, vem ganhando força, embora com muitas contestações, a tese que defende o controle das políticas públicas pelo Poder Judiciário. E vem crescendo o número de ações em que se pleiteia judicialmente a imposição de prestações positivas para o Estado, com o objetivo de garantir o atendimento de direitos sociais. É difícil dizer se é a doutrina que vem inspirando decisões judiciais ou se estas é que vêm inspirando a doutrina.

O fenômeno tem sido chamado de judicialização das políticas públicas ou de politização do Judiciário, provocando o chamado ativismo judicial. Diferentes tipos de ações vêm sendo propostas, como as individuais, principalmente nas áreas da saúde e da educação, e as coletivas, para obtenção de prestações positivas a toda uma coletividade de pessoas que estão na mesma situação.

Trata-se de hipóteses variadas em que o Judiciário não se limita a decretar a invalidade de um ato da Administração Pública ou a inconstitucionalidade de uma lei, mas a impor prestações positivas, diante da omissão do Legislativo ou do Executivo.

O que preocupa, no momento, pela dimensão que vem tomando, é a quantidade de ações individuais em que se pleiteiam medicamentos, exames ou tratamentos médicos, vagas em creches ou escolas. Embora não haja interferência direta com as políticas públicas, na prática se verifica uma interferência indireta, provocada pela grande quantidade de ações desse tipo. O custo global das prestações positivas assim obtidas é de tal ordem que acaba por praticamente obrigar o administrador público a destinar, para esse fim, verbas que estariam previstas no orçamento para atender a outros objetivos. Por exemplo, a construção de hospitais ou postos de saúde (que atendem ao mínimo existencial de toda uma coletividade) pode ficar frustrada pela necessidade de dar cumprimento às decisões judiciais proferidas em casos concretos.

Como se verifica, corrige-se, parcialmente, uma omissão do poder público, beneficiando o cidadão que recorre ao Judiciário, mas se produz um mal maior para a coletividade que fica privada da implementação de determinada política pública que viria em benefício de todos. O mérito desse tipo de ação talvez seja o de pressionar o poder público na adoção de medidas corretivas de sua omissão. Por outras palavras, garante-se o direito a uma pequena parcela da população, porém afronta-se o princípio da isonomia, além de prejudicar (e não favorecer) o cumprimento de políticas públicas. Não há dúvida de que as consequências negativas da multiplicação desse tipo de ação recomendam o máximo de cautela no reconhecimento do direito.

Em situações como essas, a Administração Pública, na qualidade de ré, costuma invocar o princípio da reserva do possível, nem sempre aceito pelo Poder Judiciário, já que se trata de atender a direito fundamental, analisado no caso concreto, para cujo cumprimento se torna necessária, muitas vezes, a alocação de verba orçamentária de uma dotação para outra.

  É relevante observar que, quando o Judiciário concede benefícios individuais — que acabam por interferir em políticas públicas fixadas e implementadas pelos demais Poderes — ele caminha em areias movediças. Todos os fundamentos em que se baseiam os defensores do controle judicial decorrem de conceitos jurídicos indeterminados, como dignidade da pessoa humana, núcleo essencial dos direitos fundamentais, mínimo existencial, razoabilidade, proporcionalidade. Não há critérios objetivos que permitam definir, com precisão, o que é essencial para que se garanta a dignidade da pessoa humana, ou em que consiste o núcleo essencial dos direitos fundamentais ou o mínimo existencial. E mesmo esse mínimo pode estar fora do alcance do poder público, pela limitação dos recursos financeiros. Não é por outra razão que o cumprimento das metas constitucionais exige planejamento. Também não é por outra razão que não se pode fugir inteiramente ao caráter programático das normas constitucionais inseridas no capítulo da ordem social e econômica.

Por isso mesmo, o tratamento da matéria deve ser o mesmo que se adota com relação aos conceitos jurídicos indeterminados: o Judiciário somente pode atuar em zonas de certeza positiva ou negativa. E deve analisar com muita cautela os pedidos formulados, seja quanto à matéria de fato em que se fundamentam, seja quanto à razoabilidade em relação ao fim que se pretende alcançar. A observância do princípio da razoabilidade, inclusive quanto ao aspecto da proporcionalidade, é obrigatória e impõe os seguintes questionamentos pelo magistrado: a medida solicitada é realmente necessária para o fim pretendido? Ela é adequada? Ela é proporcional? Não existem outros meios menos onerosos para os cofres públicos? A matéria de fato em que se fundamenta o pedido está devidamente comprovada? É possível atender aos pedidos liminarmente, sem maior exame da matéria de fato?

Em contato com juízes em aula ministrada na Escola Paulista da Magistratura, foram-me relatados alguns casos que justificam a cautela e maior pesquisa sobre a matéria de fato: um juiz, para dar cumprimento a uma receita médica, determinou a compra de medicação que, depois, ele veio a saber que se tratava de remédio para queda de cabelo. Outro estava preocupado porque soube que, a cada vez que se determinava a abertura de vaga em creche, uma criança que estava há longo tempo na fila de espera, era preterida para dar lugar àquela que foi beneficiada por ordem judicial.

O grande risco da concessão judicial indiscriminada na área dos direitos sociais é que o summum jus (concessão de um direito individual mal investigado) se transforme em summa injuria (interesse coletivo desprotegido). Isto sem falar que o juiz se substitui ao Legislativo e ao Executivo na implementação de políticas públicas, concentrando em suas mãos uma parcela de cada um dos três Poderes do Estado, com sérios riscos para o Estado de Direito e para a segurança jurídica. 

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