Justiça social

Ações afirmativas raciais constroem uma sociedade justa

Autor

  • Cleucio Santos Nunes

    é doutor em Direito do Estado pela UnB (Universidade de Brasília) mestre em Direito Ambiental pela UniSantos professor do Programa de Mestrado em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da graduação no Centro Universitário de Brasília (Ceub) Ex-Conselheiro do Carf e advogado.

27 de maio de 2015, 6h47

O presente artigo encerra a série de textos que me comprometi a redigir à Revista Eletrônica Consultor Jurídico sobre ações afirmativas raciais. Com este, somam-se cinco artigos abordando o tema da igualdade, tão seminal para as relações humanas. Não me refiro, evidentemente, à igualdade abstrata e formal, isto é, a afirmação de que “todos devem ser iguais perante a lei”. Salvo algumas manifestações patológicas é difícil encontrar alguém que, ao menos publicamente, sustente nos dias de hoje que a lei deverá dispor a exclusão de direitos de alguém por motivos biológicos, regionais ou sociais. Graças à evolução civilizatória, em boa parte dos países, a discriminação de pessoas pelo direito está superada no século XXI. Portanto, a série de artigos em nenhum instante quis alegar que no Brasil a legislação, da Constituição Federal até atos normativos específicos, oponha as pessoas em segmentos separados de direitos.

Remanesce, no entanto, a discriminação material — que embora possa não ser sempre de caso pensado — revela ainda a face mais cruel da conduta humana frente aos dilemas morais, que é a indiferença diante do problema.

Há poucos dias foi publicado estudo sobre o mapa da violência no Brasil e apontou que o negro morre mais vitimado pela violência do que outras etnias. De acordo com o estudo, “entre os brancos, no conjunto da população, o número de vítimas diminui de 19.846 em 2002 para 14.928 em 2012, o que representa uma queda de 24,8%. Entre os negros, as vítimas aumentam de 29.656 para 41.127 nessas mesmas datas: crescimento de 38,7%”. Ainda sobre o tema violência contra a população negra, o levantamento informa que, “em 2002, o índice de vitimização negra foi de 73: morreram proporcionalmente 73% mais negros que brancos. Em 2012, esse índice sobe para 146,5. A vitimização negra, no período de 2002 a 2012, cresceu significativamente: 100,7%, mais que duplicou” (Mapa da Violência 2014, p. 150).

Os dados acima corroboram com o terceiro artigo desta série (Indicadores sociais como determinantes das ações afirmativas), o qual versou sobre estatísticas, as diferenças de renda entre negros e outras raças apontando que, na média, os negros só não perdem para o indígena, ficando 53% abaixo da renda média dos brancos. Em matéria de acesso aos cargos públicos, o negro ocupa o menor número de postos, dado que se repete na iniciativa privada, em que os cargos de chefia são preenchidos muito mais por brancos do que por outros grupos étnicos. Igualmente, tratando de cargos públicos de alto escalão da república a presença no negro é praticamente invisível. Por outro lado, quando se trata de profissões que na escala de divisão do trabalho propiciam menor renda, a relação se inverte, e o negro tem maior participação nos trabalhos braçais do campo, na construção civil e nas tarefas domésticas do que outros grupos éticos.

Independentemente do fato de a população brasileira ser composta de 50,7% de negros, esta série de textos pretendem chamar atenção para um drama de nossa sociedade: existe racismo socioeconômico no Brasil. Essa forma de discriminação necessita ser combatida com políticas públicas que só conseguem receber apoio popular se o debate em torno do problema for ampliado para constituir uma espécie de razão pública, transformadora da indiferença sobre o assunto em trocas de opiniões e junção de atitudes positivas.

Para isso, alguns consensos devem ser formados.

O primeiro é se existe algum inconveniente moral na utilização do vocábulo “raça” quando se for trabalhar com ações afirmativas. Não enxergo nenhum problema nisso. A argumentação de que todos somos da raça humana para refutar as ações afirmativas serve unicamente para esconder o racismo socioeconômico e alimentar a indiferença ao problema. Realmente, não existem “raças” do ponto de vista biológico. Para biologia todos somos da raça humana, mas as distinções sociais, culturais e econômicas, envolvendo determinados grupos da sociedade podem apontar diferenças “vividas mais intensamente por etnias específicas”, o que deve ser assimilado como um dado da realidade incapaz de negar que todos pertencem à raça humana.

Em segundo lugar, caso as estatísticas levantadas procedam, indago se as diferenças socioeconômicas abissais que separam os negros das demais etnias são ou não uma revelação de injustiça. Existindo consenso sobre esses dois pontos, a consequência será engendrar meios facilitadores do acesso às oportunidades de melhoria de vida que hoje afetam muito mais a população negra do que outros segmentos étnicos.

É importante ter em mente que políticas afirmativas não devem ser perpétuas, razão pela qual têm de ser revistas periodicamente. Além disso, tais políticas se entroncam com o conceito de justiça, pois visam atenuar os motivos arbitrários da exclusão do acesso às expectativas de desenvolvimento e crescimento humanos em igualdade com os demais que não são afetados pela mesma arbitrariedade. Por esse motivo as ações afirmativas são uma questão de justiça social, pois só existe sentido ao emprego da palavra “justiça” com finalidade social, quando recursos e oportunidades que levam ao bem-estar coletivo não são assegurados a todos.

Para ressaltar que o Brasil iniciou a trajetória do encontro entre ações afirmativas e justiça social, neste artigo menciono as principais medidas em desenvolvimento no país e uma breve análise da lei que reserva vagas para negros nos concursos públicos federais. A despeito dessas iniciativas, não quero dizer que se chegou ao nível ideal de justiça, mas acredito que o debate do assunto começou a produzir efeitos práticos.          

Principais ações afirmativas raciais no Brasil e a Lei 12.990/2014
Inicio pelo serviço público federal destacando que a previsão de reserva de cotas raciais nos concursos não adveio unicamente com a Lei Federal 12.990/2014. Alguns estados da federação já haviam regulamentado o assunto por meio de leis locais, como é o caso de Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Paraná. Neste último estado, inclusive, a previsão de reserva de vagas para negros se estende aos concursos do Poder Judiciário. Atualmente, no âmbito municipal, cerca de 43 municípios preveem a mencionada política em suas administrações.

É bem verdade que na administração federal, mesmo antes da Lei 12.990/2014, iniciativas visavam o acesso de negros ao serviço público como ação positiva voltada à diversidade racial e inserção do negro nos cargos destacados do Poder Público. A Nota Técnica/IPEA 17/2014, menciona e analisa algumas dessas iniciativas como o Programa Nacional de Ações Afirmativas (PNAA), por meio do Decreto 4.228/2002, que visou implantar “a realização de metas percentuais de participação de afrodescendentes, mulheres e pessoas portadoras de deficiência no preenchimento de cargos em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS” (artigo 2°, inciso I). Outra iniciativa positiva foi o Programa de “Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco”, o qual previu programas de bolsa de estudos para afrodescendentes por meio de provas e entrevistas.

Merece destaque a Lei 12.288, de 20 de julho de 2010, que Instituiu o Estatuto da Igualdade Racial. De acordo com o artigo 39 do Estatuto: “O poder público promoverá ações que assegurem a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho para a população negra, inclusive mediante a implementação de medidas visando à promoção da igualdade nas contratações do setor público e o incentivo à adoção de medidas similares nas empresas e organizações privadas”. 

Existem também precedentes do Poder Judiciário confirmando a constitucionalidade de tais medidas. A mais recente foi a decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF 186, que reconheceu não existir afronta à Constituição Federal a reserva de cotas por critério racial na UnB. No mesmo sentido é o precedente do Superior Tribunal de Justiça no RMS 26.089-PR.

Nesse contexto favorável surge a Lei 12.990/2014 que reserva 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e empregos públicos no âmbito da administração pública federal direta e indireta. 

O ponto forte da lei, o qual demonstra a seriedade da política, consta do seu artigo 6º, que previu à lei vigência temporária de dez anos. Isso comprova que políticas afirmativas visam igualar segmentos populacionais excluídos do acesso aos bens sociais relevantes. Não se trata de criação de privilégios a afrontarem qualquer interpretação do princípio da isonomia formal. É evidente que, após o prazo de vigência da lei, a política deve ser revista e se seus objetivos não tiverem sido alcançados poderá ser promulgada nova lei, revendo as diretrizes.

A lei também estabelece regra para impedir o mau uso das cotas raciais. Por isso, reza o parágrafo único do artigo 2° que, na hipótese de constatação de declaração falsa, o candidato será eliminado do concurso. Se tiver sido nomeado, ficará sujeito à anulação da sua admissão ao serviço ou ao emprego público, observado, evidentemente, o processo administrativo que assegure o contraditório e a ampla defesa ao interessado, sem prejuízo de outras sanções cabíveis. 

A lei possui outra regra importante que explicita sua conformação ao princípio da isonomia e proporcionalidade. Trata-se do artigo 3º que estabelece: “os candidatos negros concorrerão concomitantemente às vagas reservadas e às vagas destinadas à ampla concorrência, de acordo com a sua classificação no concurso”. Além disso, os candidatos negros aprovados dentro do número de vagas oferecido para ampla concorrência não serão computados para o preenchimento das vagas reservadas. E ainda, na hipótese de desistência de candidato negro aprovado em vaga reservada, a vaga será preenchida pelo candidato negro posteriormente classificado. Por fim, na hipótese de não haver número suficiente de candidatos negros aprovados para ocupar as vagas reservadas, as remanescentes serão revertidas à ampla concorrência, para preenchimento pelos demais candidatos aprovados, observada a ordem de classificação.

Nota-se que a lei guarda o nítido viés de primar pela diversidade racial na administração pública federal, sem prejudicar segmentos populacionais que, tradicionalmente, dispõem de melhores condições de preparação e acesso aos cargos públicos.

Promoção da igualdade
Nesta série de artigos pretendi demonstrar com fundamentos sociológicos, jurídicos e filosóficos posição favorável à efetividade das ações afirmativas raciais. Para tanto, não me esquivei de apontar, ainda que superficialmente, alguns aspectos de natureza política e histórica que confirmam a situação de iniquidade vivida pela população negra desde a abolição da escravidão.

As ações afirmativas que procuram combater a discriminação de pessoas em razão da cor da pele é tema que desperta intensas polêmicas, pois o debate central gravita em torno do princípio da igualdade e seus desdobramentos.

O fundamento principal à adoção de ações afirmativas no campo do combate ao racismo é o esforço da geração presente em corrigir situação iníqua impingida a determinados segmentos populacionais, como é o caso da população negra. Esse esforço alimenta-se de um dever de consciência moral a ser estimulado em toda a sociedade, que inspire decisões políticas por parte de quem representa a população na direção da correção da injustiça.

No Brasil as discussões sobre racismo chegaram tardiamente, pois se difundiu a visão equivocada de que a diferença entre negros e brancos se dá unicamente por estereótipos evidenciados, tais como a cor da pele e outras características físicas. O fetiche sobre a cor da pele fez do racismo no Brasil um tema esquecido ou invisível, relegado ao silêncio por mais de um século mesmo com o fim da escravidão, ficando para segundo plano a decisão política de combatê-lo.

Por outro lado, existem argumentos respeitáveis contrários ao estabelecimento de qualquer política de cotas para acesso aos espaços elitizados, tradicionalmente ocupados por brancos. O primeiro deles é que a criação de cotas traz à tona a silenciosa divisão da sociedade, ensejando comportamentos racistas de parte a parte. Isso não se verificou nos últimos dez anos, em que surgiram as primeiras ações afirmativas. Ao contrário, os relatos jornalísticos e as experiências atestam que houve total integração entre as pessoas que ingressaram no ensino superior por meio de cotas e os que concorreram pela via tradicional. O outro argumento — e também o mais respeitável — é que as políticas públicas afirmativas não deveriam utilizar como critério de promoção da igualdade o elemento raça, mas as condições econômicas. Esse ponto não pode ser analisado fora de contexto e se deixar persuadir somente por sua forte retórica. Os indicadores apontam que a faixa da população mais atingida pelas feridas da pobreza é a de negros (ou pretos e pardos, para utilizar a linguagem censitária).

Além disso, as ações afirmativas colocam no centro das discussões o tema da diversidade. Por todos os motivos históricos e atuais, a ocupação pelo negro de cargos de chefia na iniciativa privada, na administração pública ou nos meios de comunicação exerce na sociedade relevante valor simbólico.

Um terceiro e último argumento contrário é que o sistema de cotas pode significar uma afronta à meritocracia. Demonstrei com argumentos teóricos que a discussão sobre cotas se situa no plano avançado da justiça distributiva ou social. Embora o mérito enquanto recompensa de uma ação guarde um dos sentidos originais de justiça, como defendido pela filosofia aristotélica, desde o final do século XVIII observou-se que é papel do Estado corrigir iniquidades coletivas como um imperativo moral a que a humanidade se submeteu rumo a uma vida melhor.

A política de cotas ingressa no difícil terreno dos dilemas morais que atormentam a humanidade. Seu ponto encontradiço reside entre escolher a justiça como meio de socorrer grupo social relegado a uma vida indigna ou a não restringir direitos e interesses individualizados. A opção pela não restrição mantém as coisas como têm sido, ainda que às custas do sofrimento de muitos.

Talvez a política de cotas não sirva para mudar o mundo e acabar magicamente com o racismo socioeconômico, nem a justiça social deva ser reverenciada como remédio heroico. Apenas acredito que os bons argumentos e atitudes razoáveis fazem o bem, e podem dar a todos o mesmo bem, que desejamos a nós mesmos.

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  • Brave

    é doutorando em Direito, Estado e Constituição pela UnB e mestre em Direito Ambiental. Advogado e professor, ele também vice-presidente jurídico dos Correios.

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