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Há uma certa negligência no debate acerca do custo dos direitos

25 de maio de 2015, 11h40

Por Luciana Vieira Dallaqua Vinci, Wilson José Vinci Júnior

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Um direito fundamental pode ser mensurado em termos de custo orçamentário? Essa certamente é uma pergunta que poucos juristas fazem. Via de regra, os estudiosos da ciência jurídica não dão a devida atenção a esse aparente “detalhe” ao tratar da implementação dos direitos fundamentais.

É cediço que os “direitos fundamentais são ‘destinados, em primeira instância, a proteger a esfera de liberdade do indivíduo contra intervenções dos Poderes Públicos; eles são direitos de defesa do cidadão contra o Estado’”[1]. Visam, em última análise, a efetivar a dignidade da pessoa humana (critério material de identificação dos direitos fundamentais).

Uma das características dos direitos fundamentais reside em sua autogeneratividade, cabendo lembrar que eles são superiores e anteriores à sua positivação expressa no ordenamento jurídico. Vale dizer: o legislador não cria propriamente um direito fundamental, mas apenas o reconhece expressamente, ainda mais se considerado o caráter histórico dos direitos fundamentais.

Nesse sentido, convém esclarecer que o reconhecimento em si de um direito fundamental não gera um custo orçamentário direto ao Estado; o custo reside, em verdade, na implementação daquele direito reconhecido pelo ordenamento jurídico.

É comum na seara jurídica a classificação dos direitos fundamentais em três dimensões (ou gerações): (i) primeira dimensão: direitos fundamentais protetivos da liberdade, cuja função é limitar a atuação estatal, exigindo, portanto, uma abstenção do Estado; (ii) segunda dimensão: direitos protetivos do indivíduo diante das necessidades materiais, que são os direitos de igualdade social, econômica e cultural, requerendo uma atuação positiva do Estado; (iii) terceira dimensão: os direitos protetivos da preservação do ser humano, que são os direitos de solidariedade, voltados à espécie humana[2].

Da mesma maneira, é relativamente comum a afirmação de que os direitos de segunda dimensão (quais sejam, os sociais, os econômicos e os culturais) são mais difíceis de serem implementados pelos Estados, uma vez que geram um custo orçamentário, ao contrário do que ocorre com os direitos de primeira dimensão (direitos de liberdade), que apenas exigiriam uma abstenção estatal. Todavia, essa argumentação não se sustenta em uma análise mais detida. Isso porque é inegável que os direitos de primeira dimensão também geram um custo orçamentário ao Poder Público para serem implementados. Vários são os exemplos que comprovam essa assertiva: a segurança pública, o direito ao voto, o acesso à justiça, o direito de propriedade etc. Ademais, se bastasse a omissão estatal para a concretização dos direitos de liberdade, os governos inertes seriam considerados os mais virtuosos. Todos os direitos custam porque pressupõem uma atuação estatal[3].

A polêmica se acentua, contudo, ao se falar dos direitos sociais de caráter prestacional. Nesse caso, a percepção de custo orçamentário para a sua implementação fica ainda mais evidente: o direito à saúde, à educação, à assistência social, à cultura, dentre outros, têm, indubitavelmente, um custo a ser suportado pelo Estado.

A questão do custo dos direitos é acentuada em países em desenvolvimento, como o Brasil, onde os recursos orçamentários são escassos para cobrir todas as necessidades da população. Por isso é que o Estado, ao ser demandado judicialmente para a efetivação de um direito fundamental, usualmente alega que não possui dinheiro para a sua implementação, em uma teoria que ficou conhecida em nosso país como “reserva do possível”, ainda que sua ideia tenha sido deturpada da teoria alemã original.

O Poder Judiciário, por sua vez, costuma afastar a “teoria da reserva do possível” basicamente através de dois argumentos: (i) o Poder Público apenas alega, mas não comprova, efetivamente, a escassez de recursos orçamentários e (ii), ainda que o comprovasse, o chamado mínimo existencial deve ser protegido, devendo ser alocados recursos de outras áreas com “menor” relevância para a concretização dos direitos fundamentais.

Concordando ou não com a fundamentação da Fazenda Pública ou do Poder Judiciário, fato é que há uma certa negligência no debate acerca do “custo dos direitos”. Causa a impressão de que os juristas não dão a devida importância a esse assunto, apenas analisando os direitos fundamentais sob a ótica jurídica que, por si só, não é capaz de implementar direitos no mundo fenomênico sem o auxílio de outras ciências, inclusive da economia.

Obviamente, não se quer dizer, com isso, que ao elemento orçamentário seja conferida uma importância maior do que o direito em discussão. Também não se desconhece que a corrupção e a incapacidade técnica de certos administradores públicos em gerir a “res” pública consomem boa parte dos recursos orçamentários que deveria ser alocada para a efetivação dos direitos. Entretanto, quer-se chamar a atenção para a necessidade de uma maior discussão da doutrina acerca do assunto, ainda carente de obras jurídicas a respeito do tema no Brasil. Não se trata de precificar todo direito, afinal, nem tudo pode ser precificado[4]. Ademais, o cálculo do custo dos direitos poderia representar uma ameaça à efetivação dos próprios direitos, mormente em relação aos mais custosos. O próprio STF já decidiu reiteradas vezes que não se pode invocar o custo dos direitos “para legitimar o injusto inadimplemento de deveres estatais constitucionalmente impostos ao Poder Público”[5]. Entretanto, deve ser lembrado que o próprio Poder Judiciário faz parte do Estado e que, ainda que seja para proteger os direitos fundamentais, o custo de manutenção da sua estrutura não é desprezível. Em suma, ao final, quem pagará a conta será o contribuinte, seja direta ou indiretamente. Destarte, assim como o custo dos direitos não pode ser determinante para a sua implementação, ele também não pode ser ignorado.

É chegada a hora de modificarmos a velha máxima de que “onde o jurista enxerga um direito o economista enxerga um custo”. Hodiernamente, exige-se do estudioso do Direito a análise de um assunto considerando o influxo de diversas outras ciências que não somente a jurídica, a exemplo da economia, da psicologia, da sociologia, da filosofia etc. O Direito não pode ser encarado como uma área isolada do conhecimento humano, alheia às dificuldades vivenciadas por outras ciências para a implementação daquilo que é positivado no ordenamento. Afinal, o mero reconhecimento jurídico de um direito fundamental não é capaz de conferir maior dignidade concreta na vida do seu titular. O direito não depende, portanto, apenas de uma previsão legal.


[1] ALEXY, Robert. Teoria dos Direito Fundamentais. São Paulo:Malheiros, 2011, p. 433.

[2] ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo:Editora Verbatim, 18ª ed., 2014, págs. 155 e 156.

[3] Conclusão extraída de HOLMES, Stephen. SUNSTEIN, Cass R. The cost of rights: why liberty depends on taxes. Norton & Company. New York, 1999, p. 44, através de bela análise realizada por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, publicada na coluna Embargos Culturais do CONJUR, em 14 de abril de 2013.

[4] Já dizia Kant que as coisas têm preço, enquanto as pessoas têm dignidade.

[5] Vide, a título de exemplo, o ARE nº 745.745/MG, julgado em 02.12.2014.