Liberdade aos usuários

Decisão do STF dá segurança para priorização do software livre

Autor

  • Eduardo Altomare Ariente

    é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie assessor do Núcleo de Inovação Tecnológica da Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do Núcleo Jurídico do Observatório de Inovação e Competitividade do Instituto de Estudos Avançados da USP.

25 de maio de 2015, 7h33

As normas internacionais sobre Propriedade Intelectual (PI) estão cada vez mais padronizadas. Se tempos atrás, os acordos observavam alguma margem de adaptação dos países conforme os seus patamares de industrialização, hoje as opções dos países subdesenvolvidos estão mais estreitas. Tanto que somos obrigados a conceder patentes em certos mercados, tais como alimentos, transgênicos e medicamentos.

No campo dos direitos autorais, por razões semelhantes, nenhum país pode conceder menos do que 50 anos de proteção após o falecimento do criador. As consequências do descumprimento dessas imposições são o afastamento da Organização Mundial do Comércio (OMC) e sofrermos retaliações comerciais dos países prejudicados

A dualidade centro-periferia estudada pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), enfatiza a concentração da técnica nos países centrais. O fornecimento de matérias primas, por outro lado, estaria a cargo dos periféricos. O rompimento dessa lógica, segundo o economista argentino Raúl Prebisch, demanda, entre outros fatores, apropriação das técnicas produtivas pelos países em processo de industrialização.

Entre as formas de conhecimentos técnicos cada vez mais presentes no nosso dia a dia estão os programas de computador. Como se sabe, os softwares representam um conjunto de instruções para o funcionamento de uma máquina para fins determinados. O domínio das técnicas de programação, portanto, constitui elemento chave para o desenvolvimento tecnológico de qualquer país.

Software livre , conforme definição do programador Richard Stallman, é aquele que confere as seguintes liberdades aos usuários: uso, estudo, cópia, acesso ao código-fonte, aperfeiçoamento e redistribuição das versões modificadas, de forma gratuita ou mediante cobrança de algum valor. Caso falte alguma dessas liberdades, o programa não mais seria considerado livre. “Proprietários”, por outro lado, são os programas que geralmente não permitem a livre distribuição de cópias, tampouco acesso ao código-fonte. Em síntese, a diferença entre livre e proprietários consiste na quantidade de direitos conferidos aos cidadãos.

Assim, o software livre representa um conceito, que proporciona formas de compartilhamento de programas abertas, amigáveis ou não restritivas. Uma das licenças mais conhecidas de software livre é o General Public License (GPL).

Desse modo, parece fundamental aos países em desenvolvimento incentivar os softwares livres. Eis um mercado que o regramento internacional da PI nos permite explorar e está, em grande medida, ao nosso alcance. Ao contrário de outros setores de tecnologia de ponta, nos programas de computador não são imprescindíveis investimentos maciços. No software livre, o aprimoramento técnico pode ser desenvolvido em bancos acadêmicos, redes de colaboração e de modo capilarizado.

Ainda que timidamente no Brasil, houve algum aceno ao software livre na última década. São exemplos mais emblemáticos de programas abertos brasileiros a urna eletrônica pelo TSE (2008), o GINGA de TV digital (2009) e a digitalização dos processos do STJ (2010). Contudo, a migração para formatos abertos encontrou diversas resistências nas diferentes esferas da administração pública.

Em 2012, a Polícia Federal contratou o banco de dados da empresa Oracle por quase R$ 300 mil. Inclusive neste último caso, não fez processo licitatório por motivo de inexigibilidade. O BNDES, criado em 1952 para impulsionar o desenvolvimento nacional, gastou em 2012 quase R$ 2 milhões para aquisição de licenças perpétuas de MS Office. A Caixa Econômica Federal, mesmo depois de introduzir softwares livres, voltou atrás e, em meados de 2012, gastou mais de R$ 112 mil em licenças à Microsoft.

Por outro lado, a tendência mundial, como tentaremos demonstrar, é prestigiar o Software Livre. Em pesquisa que fizemos sobre as políticas de adoção do SL ao redor do mundo, verificamos que, na maioria dos casos, as alterações nas diretrizes são motivadas por economia de recursos. Embora não seja um argumento de somenos importância, a questão não se reduz à questão financeira. Desde 2010, localizamos políticas de migração para o software livre na França, Alemanha, Espanha e Reino Unido, Israel, Índia e África do Sul.

Mesmo nos Estados Unidos, berço das maiores empresas monopolistas do mercado de programas de computador, o governo local utiliza o software livre. Podemos mencionar ainda, como exemplo de economicidade, a rede do Senado da Espanha, que deixou de gastar 450 mil euros em licenças ao substituir os programas proprietários por outros em licenças não restritivas. Cumpre destacar que não há problemas quanto à segurança dessa alteração, uma vez que as páginas da Casa Branca e dos Governos da França e do Reino Unido funcionam nessas mesmas diretrizes

Os motivos da priorização do software livre, dentro e fora do setor Público, são muitos. Podemos mencionar alguns: 1) maior quantidade de direitos dos usuários em razão de licenças não restritivas; 2) criação de ambiente propício para a autonomia tecnológica do país ; 3) redução da dependência de tecnologias de empresas estrangeiras; 4) economia de recursos com licenças; 5) maior segurança, privacidade e domínio dos usuários sobre as operações desenvolvidas por suas máquinas; 6) desestímulo a monopólios no mercado de programas de computador; 7) modelos de negócios baseados em conhecimento aberto; 8) incentivo a novas startups; 9) aumento da vida útil de equipamentos em que o software livre é utilizado. 10) capilaridade da inovação no mercado interno; 11) software livre não possui vírus.

Além desses argumentos de natureza econômica e prática, os de cunho jurídico são abundantes. Mencionaremos apenas alguns deles. A Lei da Política Nacional da Informática (Lei 7.232/84) já previa a importância da proteção de nossa indústria e a capacitação tecnológica brasileira. A Constituição Federal de 1988, notadamente nos artigos 218 e 219 dispõe de modo semelhante. Vale registrar ainda a recentíssima Emenda à Constituição 85/2015, segundo a qual o Estado “estimulará a formação e o fortalecimento de empresas inovadoras, a constituição e a manutenção de polos tecnológicos e a criação, absorção e transferência de tecnologia”.

A Lei 12.349/10, regulamentada pelo Decreto 7.746/2012, introduziu uma série de modificações às contratações públicas. Essas normas trataram, entre outros fatores, do principio do desenvolvimento nacional sustentável. O citado decreto define as diretrizes da sustentabilidade, que além dos fatores ambientais, inclui “preferência por material, matéria-prima, tecnologia local e geração de empregos com mão de obra nacional”

Os programas abertos são alvo de diversas formas de preconceito, simplesmente pelo fato de fugirem dos padrões estabelecidos pelos programas convencionais, que já são vendidos de forma casada em qualquer computador à venda no comércio varejista do Brasil. O emprego mais disseminado de softwares livres, ao nosso ver, demanda simplesmente mudanças de hábito dos usuários, instituições privadas e administração pública.

Nos aspectos de funcionalidade ou segurança, os programas livres nada deixam a desejar diante dos programas “proprietários”. Tanto que grandes empresas mundiais de tecnologia, como o Google e a IBM, há anos, utilizam programas abertos. Os governos dos Estados Unidos e do Reino Unido, como citado, trilharam o mesmo caminho.

Assim, podemos concluir que a priorização do uso e a disseminação do software livre configuram importantes formas de intervenção do Estado na economia. Além disso, vale registrar que asseguram maior segurança dos dados dos usuários, públicos ou privados, bem como promovem do desenvolvimento nacional.

Contudo, em 2004, a priorização do software livre nas contratações públicas foi questionada perante o Supremo Tribunal Federal. A ação movida pelo partido PFL (atual Democratas) refutou a constitucionalidade da Lei 11.871/2002 , do estado do Rio Grande do Sul. Dentre outros aspectos, a agremiação partidária autora da ação argumentou pela falta de competência dos estados federados para legislar sobre licitações, indicou vício de iniciativa do projeto de lei encaminhado pela Assembleia Legislativa, bem como violações aos princípios da impessoalidade, eficiência e economicidade. Associações que têm como modelos de negócios os softwares fechados, inclusive as maiores monopolistas mundiais, ingressaram como “amicus curiae” para reforçar esse ponto de vista

Felizmente, em 9 de abril de 2015, o Supremo Tribunal Federal decidiu, de forma unânime, pela constitucionalidade do priorização do software livre nas licitações gaúchas. Em razão dos efeitos desse acertado resultado, todas as unidades federativas passaram a ter necessária segurança jurídica para priorizar o software livre nas suas aquisições.

Trata-se de fundamental sinalização para o mercado de programas de computador brasileiros, usuários e a administração pública. Conforme trecho do acórdão proferido na ADI 3.059, “A preferência pelo “software” livre, longe de afrontar os princípios constitucionais da impessoalidade, da eficiência e da economicidade, promove e prestigia esses postulados, além de viabilizar a autonomia tecnológica do País”:

Diante dessa importante conquista os administradores públicos não deveriam menosprezar essa oportunidade, que além dos motivos já citados, potencializam os efeitos das compras púbicas, ampliam direitos dos cidadãos, dinamizam a economia local e colaboram para o desenvolvimento do país.

 

*  Eduardo Altomare Ariente é mestre e doutor em direito pela USP, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie e do Departamento de Ciências da Computação do IME-USP

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