Processo familiar

Guarda de filhos e alienação parental têm ocupado a cena no direito de família

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

24 de maio de 2015, 8h16

O tema da Guarda Compartilhada, e a outra face da moeda — a alienação parental, têm ocupado a cena no direito de família. Além das famílias serem hoje plurais, tradicionais, mosaico, as formadas por casais de sexos diferentes ou iguais, e mesmo as pluriparentais, são aquelas famílias com filhos que exigem nossa reflexão.

E o intuito, aqui, é o de examinar mais o que está latente nos referidos institutos do que o manifesto na forma de leis.

A diversidade e a pluralidade dos modelos familiares,  traduzem valores e modos de relações entre gerações, e entre os sexos, e intrincadas questões e decisões se colocam ao Legislativo e ao Judiciário, atropelados pela velocidade das mudanças. São ameaçadas as convicções que escapam ao modelo idealizado, e mesmo aqueles conhecidos de família, e surgem, assim, angústias antes impensadas. 

E em tempos em que se questionam as formas de relação entre os adultos, e destes com os filhos, em tempos de distinção entre o casal conjugal e o casal parental, o norte mais importante a resgatar diz respeito ao cuidado com os filhos.

Nos litígios entre os pais os filhos são, muitas vezes, desconsiderados em suas necessidades, embora cada um dos pais invoque, com indiscutível boa-fé, mas num clima competitivo, saber melhor qual o Superior Interesse daqueles.

A questão de base, latente àquelas manifestas nas leis e nos litígios, reside, a meu ver, no modelo de família que se tem em mente e nas políticas e leis que a ele atendem. A família é anterior às codificações e à forma que a elas se queira imprimir. E ela resiste ao movimento inverso, resiste à apropriação de sua finalidade por instituições e ideologias que a queiram submeter; na verdade às instituições ela deve inspirar.

Cabe, assim, pensar qual o ideário de família que embasa as propostas relativas à convivência. Seria um modelo de relações paralelas entre pais e filhos, ou de relações complementares?

Em busca de novos horizontes, distantes daqueles moldados nos moldes conhecidos de família — vez que hoje são plurais —, é com a compreensão do que faz uma família, de quais as bases de sua constituição e, sobretudo, de qual sua finalidade, é que podemos tentar resgatar o norte da família no que diz respeito a filhos e pais.

Os tempos são de valorização da convivência com pai e mãe. E aqui a provocação reflexiva: não seria o modelo de guarda paralela, alternada, com privilégio da alternância física e temporal, uma ideologia que fere as bases da família?

Vejamos um panorama das características da família.

A família se constitui por interditos ou leis, que lhe são intrínsecos, anteriores às leis codificadas que a ela devem proteger. A diferença entre gerações, com a interdição do incesto, apesar de encontrar variações das proibições de cultura para cultura, é universal e condição de nossa humanidade, seja em que sociedade for. Interdição que marca a diferença entre o casal conjugal e o parental.

E, por seu turno, a parentalidade também é universal, embora se exerça de forma diversa, e que, também, vem se modificando no mundo ocidental.

Quanto à organização da família, essa decorre de nossa natureza ambivalente, amorosa e agressiva, e da natureza gregária e de dependência — em diversos graus —, que caracteriza o psiquismo humano. Somos seres por natureza vinculares, do que decorre a necessidade de regras que a regulem. Vínculos entre o casal, entre pais e filhos e entre os pais.

A família é uma estrutura que para abrigar nossa existência, em certa medida, nos protege de nós mesmos e nos ensina a transformar e sublimar o descontrole dos nossos impulsos, sexuais e agressivos, em fins que sejam socialmente aceitos. É o que a psicanálise identifica como a passagem da natureza para a civilização.

Quanto à finalidade da família, ela transcende a de perpetuação da espécie: é na perpetuação de nossa humanidade e os valores a ela intrínsecos que residem nossos mais elevados interesses. Em um misto de altruísmo e egoísmo, buscamos transcender nossa existência, e esse é o lugar de projeto que os filhos ocupam.

Quanto à lei essencial à constituição da família essa é a da diferença entre gerações, divisão que delimita a expressão da sexualidade e da agressividade. E, sobretudo, é essa lei que marca a diferença entre o casal conjugal e o parental.

E é o exercício das funções materna e paterna que caracteriza a diferença entre o casal conjugal e o casal parental, e entre os pais entres si, e que marca os necessários limites quanto às funções, conjugal e parental, e o exercício do cuidado e da proteção de que necessitam os filhos.

E hoje, mais do que nunca, e até mesmo transcendendo questões originárias dos tratos e “contratos” entre o casal que dá origem à família, tais como posse, propriedade e mesmo fidelidade, está o atendimento à finalidade da família quanto à criação dos filhos.

Analisada a paisagem, retomo a importância desse norte, o dos dos filhos, para pensarmos as famílias plurais e as questões da convivência entre pares não conviventes.

O modelo biológico, em que são necessários dois diferentes para formar um, é também o do nosso psiquismo que necessita de dois para construir os alicerces da personalidade. São necessários, de início, dois modelos de identificação aos quais se agregam outros modelos e relacionamentos a serem eleitos ao longo da vida. E, do ponto de vista que aqui enfatizo, não se cuidam de dois modelos dissociados, mas de um casal parental, em uma relação complementar

É certo que os modelos de casal, dito conjugal, e do casal parental são hoje plurais: isso graças à compreensão não só de que a identidade sexual transcende o sexo biológico.

E do lado do casal parental, a pluralidade dos novos modelos de relacionamento e convivência se justifica na medida em que verificamos que as funções paterna e materna, em certa medida, são exercidas pelo pai e/ou — não mais só um “ou” — pela mãe. Para tal pluralidade contribuem as novas formas de organização social, de divisão de trabalho, e de consciência quanto ao compartilhamento de responsabilidades parentais e, nos últimos tempos, há uma crescente consciência da importância do papel do pai.

O modelo de família tradicional e de relacionamento entre pais e filhos era também o utilizado como o dito “normal” para a formação psicológica dos filhos, com uma série de recomendações em como proceder e em como ser. Conceito de normalidade hoje questionável, e que deve, retomo, encontrar o norte na definição mesma de família — organização marcada pela diferença entre as gerações, pelo cuidado e proteção, e pela diferença quanto ao exercício das funções. Diferença que não mais se atém de forma unívoca ao sexo biológico e ao gênero.

E a grande questão está em como integrar as novas possibilidades e diversidades de relacionamentos com a responsabilidade que aos adultos cabe. Ou seja, a questão que se impõe é: qual a importância em preservar o modelo de casal parental que, de alguma forma, integra a natureza mesma de constituição das famílias?

No que toca ao relacionamento das famílias transformadas, e aquelas ditas mosaico, diversas modalidades de exercício do Poder Familiar quanto à convivência tem sido objeto de discussão.

Não podemos ignorar que as formas eleitas de relacionamento dos pais trarão diversas experiências emocionais aos filhos. Temos filhos que convivem com pais que convivem e com pais que não convivem; são diversas as experiências e emoções nos filhos que convivem com novos companheiros dos pais, ou as emoções nos filhos para com os pais que permanecem sem outros relacionamentos. E são diversas, ainda, para aqueles a quem se atribui mais de um pai ou mais de uma mãe, e para aqueles criados por pais e mães do mesmo sexo, e assim por diante. Filhos iguais em seus direitos mas diferentes quanto ao contexto.

Não cabe sermos indiferentes quanto às diferença, e por vezes dilemas, que se impõem com as variações nas formas de relações entre os adultos e, consequentemente, destes com os filhos. E aqui, todo cuidado é pouco para não imprimirmos juízos de valor e ideologias: são formas diversas, mas nem piores, nem melhores. Apenas outros modos  e, por vezes, mais trabalhosos.

Portanto, embora o casal conjugal e o parental não mais se sobreponham, não se pode negar as consequências das escolhas dos adultos que se farão sentir nos filhos. E este é o limite até onde, acredito, se pode ir nestas considerações, sem correr o risco de impor ideologias que transcendam a família: as escolhas dos adultos se farão sentir, não de modo negativo ou positivo, mas afetarão os filhos e a formação de suas personalidades. E disto devemos cuidar.

No contexto que toca em modificações quanto às formas de constituição do casal parental, não à toa que a questão da alienação parental tem ocupado a cena, insurgindo-se, em geral os pais, mas não só eles, contra a exclusão e mesmo à tentativa de substituição de um pelo outro, ou de dois por apenas um, num inegável movimento de busca  de inclusão e de resgate de funções.

Do meu ponto de vista, a reflexão se faz mais ampla do que a guerra entre os sexos e entre pais e mães, e da luta, legítima claro, de igualdade parental: o pleito latente é o da reconsideração da importância de cada um na família, em tempos de individualismo exacerbado e de diversas possibilidades de relacionamentos. Assim, os pleitos de alienação tocam aos pais e mães excluídos face a um novo modelo, a  pais desempoderados, mas sobrecarregados, num panorama econômico de crescente exigência de trabalho e de feminilização da pobreza.

Seja qual for o modelo de família, e dos tratos e distratos entre os adultos por ela responsáveis, seja a família composta do jeito que for, dentro da miríade de escolhas e de inclinações que se possa ter em relação à manifestação da sexualidade e à exclusividade dos relacionamentos entre adultos, ou sua multiplicidade ao longo da vida, uma escolha superior se impõe: a coerência em relação à finalidade da família.

Em outras palavras, cuida-se da consideração da parentalidade como indissolúvel, ou, por outro lado, de se considerar a paternidade e a maternidade como relações paralelas entre cada pai com os filhos. Note-se que, na primeira alternativa cabe o conceito de parentalidade, já na segunda não.

Queira-se, ou não, o casal parental existe biologicamente, mesmo que de forma artificial, e simbolicamente de forma real ou virtual. Dar-lhe a necessária materialidade por meio da convivência possível com os filhos e, também, enfatizar a importância do reconhecimento recíproco de sua importância, implica em coerência quanto ao que, até aqui, consideramos como essência do que constitui as famílias: o exercício das funções parentais.

Coerente ao modelo de casal parental, seja o relacionamento conflituoso ou não, e mesmo que sequer considerem ter relacionamento, fundamental se faz o reconhecimento por parte de cada um da importância do outro, mesmo que for da sua ausência; e fundamental se faz a consciência da impossibilidade de substituição de pai e de mãe. Mesmo no caso de multiparentalidade, a cada um deve ser dado o seu lugar.

A esta concepção de família atendem as novas abordagens dos conflitos familiares, a mediação interdisciplinar, as oficinas de pais e outros recursos de fortalecimento das relações continuadas, com uma compreensão da necessária complementaridade das relações, com o conceito de parentalidade, e de responsabilidade compartilhada quanto ao exercício das funções. 

Talvez, uma nova ideologia de paternidade e maternidade enquanto relações paralelas com os filhos, esteja animando as discussões em relação ao exercício do Poder Familiar e à ênfase nas questões materiais quanto ao tempo de convivência e os chamados alimentos.

E, face aos conflitos existentes entre os pais, o caminho parece ser, nesta esteira, o de elidi-los e mesmo negá-los, considerando as relações como paralelas. Do ponto de vista das relações complementares, que se conhece até aqui como modelo de família, alienar-se-ia o casal parental quase que num movimento pré-salomônico de resolver conflitos negando-os e às suas consequências.

O norte nos é dado não só pela compreensão do quê estrutura as famílias, de sua finalidade em tempos pós-modernos, mas pela escuta cotidiana de filhos sujeitos aos litígios entre os adultos por eles responsáveis. A escuta de crianças e adolescentes traduz seu superior interesse: a invariável realidade de que os vínculos são mais realistas e verdadeiros com os pais que delas cuidam e sua invariável necessidade e pleito — ao qual não podemos ensurdecer — de que seus pais, sobretudo, se entendam.

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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