Embargos Culturais

Impressões de Joaquim Manuel de Macedo sobre o Colégio D. Pedro II (parte 1)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

24 de maio de 2015, 8h00

Spacca
É recorrente entre professores de Direito Público exemplificação de norma constitucional meramente formal com a referência ao Colégio D. Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, mantido pelo constituinte de 1988 na órbita federal (Constituição, artigo 242, parágrafo 2º). Porque essa prosaica regra não trata da organização do Estado e de assunto político, é que a tipologia das regras constitucionais a fixa desse modo, isto é, encontra-se apenas formalmente em um livro de disposições constitucionais.

Pretendo oferecer alguma contribuição para ilustração discursiva do assunto. Refiro-me a interessante passagem de Joaquim Manuel de Macedo (1810-1882), escritor fluminense, que atuou também como médico, jornalista e preceptor dos filhos da Princesa Isabel. Autor canônico da literatura nacional (A Moreninha, Memórias do Sobrinho do meu Tio), Macedo destacou-se também como memorialista, revelando-se como profundo conhecedor da cidade do Rio de Janeiro, cujas ruas descreveu em dois livros inesquecíveis: Memórias da Rua do Ouvidor e Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro.

É nesse último[1] que Macedo historiou o Colégio D. Pedro II. Colheu informações, tradições e reminiscências, que resumiu em narrativa leve e simpática. É com base nesse depoimento, de valor historiográfico incomparável, que retomo as linhas gerais da história dessa escola tradicional.

Fundado em 2 de dezembro de 1837 (data de aniversário de D. Pedro II) as origens do colégio, segundo Macedo, se perdem em meados do século XVIII (1733 ou 1739), data de criação de uma primitiva versão desse educandário. Junto a uma igreja (de São Pedro), no centro do Rio antigo, vivia um pio sacristão, que “(…) não tinha fortuna, e o pouco que podia ganhar dividia com os pobres (…) era um pobre a dar esmolas, partindo pelo meio o pão que apenas para ele chegava (…) doía-lhe sobretudo, a sorte dos meninos órfãos, que, perdendo seus pais, ficavam na miséria, em dúplice miséria, sem pais e sem pão”[2]. A morte de um conhecido, também pobre, e o estado de penúria dos dois órfãos que ficaram, estimularam a ação do sacristão, que lançou uma lista de colaboração financeira, com vistas a edificar uma escola-orfanato, ao lado da igreja onde servia.

O governador prontamente assinou (e providenciou expressiva doação), no que foi seguido pelo bispo (D. Antonio de Guadalupe), e por demais beneméritos da época. Adquiriu-se o terreno contíguo à Igreja, onde se fundou “(…) o seminário que se dizia dos órfãos de S. Pedro (…)”[3]. Oficialmente estabelecido por provisão de 8 de junho de 1839, o orfanato oferecia abrigo, alimentação e aulas de gramática latina, de música e de cantochão; o primeiro reitor da instituição fora o padre Sebastião de Moura Leite[4].

Prossegue Macedo informando que a escola não possuía patrimônio algum, “(…) e não chegando para sua sustentação a colheita de esmolas, concorriam os estudantes às festividades religiosas e aos enterros para que eram convidados, percebendo por isso espórtulas que reverteriam em benefício do estabelecimento”[5]. Em 1766, os órfãos foram mudados para uma nova casa, quando passaram a ser chamados de órfãos de São Joaquim[6].

Em 1777 houve determinação para que 26 órfãos fossem recebidos na casa; no entanto, havia três classes de alunos: os pensionistas (pagavam 80 mil réis anuais), os meio-pensionistas (pagavam a metade) e os gratuitos (pobres que nada pagavam)[7]. As roupas utilizadas eram distintas, situação que foi abolida em 1811, por despacho do Bispo D. José Caetano da Silva[8]. Ainda no tempo de D. João VI a maior parte dos seminaristas da escola “(…) destinavam-se ao sacerdócio, e neste seminário gastavam quatro, cinco e às vezes mais anos em aprender latim, embora somente de latim e de cantochão se ocupassem”[9]. E quanto à língua dominante, prossegue Macedo:

“Aprendia-se antigamente o latim durante cinco anos e mais nos seminários. Mas os estudantes saíam das aulas sabendo alguma coisa, e os padres liam o seu breviário com consciência e entendendo o que liam, o que era por certo muito melhor do que ver-se um analfabeto que, aborrecido da taverna em que é caixeiro, determina ser padre, e no fim de alguns meses toma ordens de presbitério sem saber como concorda o sujeito com o verbo, sem poder cantar uma epístola, se não entre um chuveiro de silabadas e fazendo ouvir a palavra de Deus sem compreendê-la, como um papagaio que repete: Quem passa? É o rei que vai à caça. ”[10]

Os alunos se alimentavam de carne de vaca cozida, couves, toucinho, carne guisada (que Macedo informa que os alunos chamavam de serrabode), o que se acompanhava com arroz e com a fruta do tempo[11]. Joaquim Manuel de Macedo descreveu os sistemas de administração, de estudos e os costumes dessa escola, origem do Colégio D. Pedro IIº, oferecendo-nos um rico painel da vida brasileira na virada do século XVIII para o século seguinte. Leitura obrigatório para quem se interesse pela história da educação no Brasil. Na próxima semana, continuo com Macedo e retomo a reformulação da escola, que atingiu sua forma mais memorável em meados do século XIX, época na qual Macedo lá lecionou história e geografia.


[1] Macedo, Joaquim Manuel de, Um Passeio pela Cidade do Rio de Janeiro, Brasília: Editora do Senado Federal, 2009.
[2] Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 288.
[3] Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 290.
[4] Cf. Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 293.
[5] Macedo, Joaquim Manuel de, cit., loc. cit.
[6] Cf. Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 295.
[7] Cf. Macedo, Joaquim Manuel de, cit., loc. cit.
[8] Cf. Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 297.
[9] Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 300.
[10] Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 301.
[11] Cf. Macedo, Joaquim Manuel de, cit., p. 302.

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