Cobrança tributária

Afinal, qual é a natureza jurídica do reembolso ao SUS?

Autor

  • Tatiana Biar

    é mestranda do programa de Mestrado Profissional da FGV Direito SP e membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da FGV Direito SP.

22 de maio de 2015, 15h05

Desde o advento da Lei 9.656/98, muito se tem discutido a respeito da natureza jurídica do reembolso instituído no artigo 32, devido pelas operadoras de saúde em razão do atendimento de seus usuários na rede pública ou privada, conveniada ou contratada, integrante do SUS. Para as operadoras, a natureza da cobrança é tributária, enquanto que, para o SUS, é de reparação civil.

No julgamento da ADI 1.931, cujo objetivo era questionar a constitucionalidade da norma na íntegra, firmou-se o entendimento de que o artigo 32 era constitucional, apenas sob o fundamento de que a norma claramente não cria nenhum tributo, sem que houvesse, porém, maiores explicações. Diante dessa ausência de enfrentamento do mérito pelo STF quanto ao conceito e as características do tributo frente ao ressarcimento ao SUS, várias medidas judiciais foram propostas pelas operadoras, não só preventivamente, como também para anular a cobrança que já vinha sendo feita.

Porém, a declaração de constitucionalidade do artigo 32, então realizada por ocasião do julgamento da ADI 1.931, acabou por provocar um efeito dominó nos tribunais regionais, os quais, mesmo diante de novas demandas, com argumentos diversos, seguiram a posição do Supremo: o dispositivo seria válido e o ressarcimento ao SUS teria natureza de reparação civil, em função do valor que deixou de ser despendido pela operadora acaso o usuário tivesse optado pela utilização da rede privada, sem atendimento do SUS. Então, para evitar o enriquecimento ilícito da operadora que deixou de prestar o serviço ao usuário, seria justo o reembolso da despesa. Essas considerações afastariam a natureza tributária do reembolso..

A despeito de tais posicionamentos, contudo, entendemos ainda ser relevante indagar se seria realmente possível afastar a natureza tributária dessa cobrança. A pergunta é de extrema importância exatamente porque esse ponto não foi devidamente enfrentado pelos tribunais. A resposta à indagação passa pela reconstrução do contexto no qual a previsão de reembolso foi inserida no Projeto de Lei (PL) 4.425/94, que resultou na conversão da Lei 9.656/98: foi através do PL 1.289/95, posteriormente apensado ao PL 4.425/94, cujo Parecer 754/95-CAS que o aprovou utilizou-se das seguintes justificativas:

“É natural e de direito que as pessoas que possuem algum tipo de seguro-saúde utilizem-se dos serviços do Sistema Único de Saúde nas circunstâncias já mencionadas, mas é de justiça, também, que o SUS seja ressarcido, pelas empresas seguradoras, pelos serviços prestados à população por elas segurada. (…) A adoção de tal medida reverter-se-á em beneficio da qualidade dos serviços do Sistema Único de Saúde, que disporá de maiores recursos para o seu custeio, favorecendo segurados e não-segurados. (…) Por outro lado, cessaria o duplo pagamento por serviços de saúde praticado por tantos cidadãos, desperdício de recursos a que o País não se pode permitir, já prejudicado que é pela renúncia de receita que o Imposto de Renda impõe, ao permitir o desconto da totalidade dos quantitativos gastos com as empresas de seguro-saúde, tenha ou não o contribuinte usado seus serviços”.

Da leitura do trecho acima exposto, fica bastante evidente que a mens legis, nesse caso, foi o custeio do serviço público de saúde. A lógica seria a seguinte: dado que as operadoras de saúde apresentam lucros significativos e, apesar disso, ainda se beneficiam com os usuários que, por razões diversas, procuram a rede pública, seria justo que tais operadoras a ressarcissem nos casos em que seus contratantes dela se utilizassem. Mas, diante disso tudo, também na lei ou na exposição de motivos, não há definição clara da natureza jurídica da prestação exigida das operadoras. Seria, então, possível enquadrar o reembolso ao SUS no conceito de tributo? A resposta parece ser afirmativa, pois se trata de prestação pecuniária compulsória, paga em moeda, que não constitui sanção de ato ilícito, instituída por lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada, tal qual prevê o artigo 3º do CTN.

Não é demasiado recordar que nosso ordenamento comporta cinco espécies tributárias, quais sejam:  impostos, empréstimos compulsórios, contribuições de melhoria, contribuições gerais e taxas. Analisando-se o reembolso ao SUS diante dos tipos de tributos existentes, poder-se-ia excluir os impostos, que não admitem, como regra, destinação específica da receita (artigo 167, IV CRFB/88), os empréstimos compulsórios pois não se trata do financiamento de uma despesa extraordinária do Estado (artigo 148 CRFB/88) e tampouco poderia ser contribuição de melhoria, haja vista que não se origina da valorização de imóvel em virtude de obra pública (artigo 145, III CRFB/88). Resta, portanto, a análise quanto às taxas e contribuições.

Nos termos dos artigos 145, II da CRFB/88 combinado com 77 a 79 do CTN, as taxas poderão ser exigidas ou face  da prestação de serviço público específico e divisível, utilizado pelo contribuinte ou posto à sua disposição, ou, então, pela prestação efetiva de exercício de poder de polícia. Embora o reembolso ao SUS decorra de uma prestação do serviço público, não se trata de taxa, tendo em vista que a Constituição garante o acesso universal à saúde, independentemente de contraprestação específica e divisível ao cidadão (artigo 196). Vige o critério da solidariedade, no qual o financiamento se dá por todos os indivíduos, o que justifica a cobrança em face das pessoas jurídicas e físicas que não utilizam o serviço público. Além disso, o fato de a Constituição estabelecer que o financiamento à saúde decorrerá da arrecadação das contribuições sociais e de parte da receita dos impostos da União, Estados e Municípios (artigo 195) igualmente infirma a possibilidade de se classificar a prestação em questão como taxa.

Quanto às contribuições, trata-se de tributo de competência federal, com a mesma materialidade dos impostos, mas que destes se diferenciam em função de sua cobrança com finalidade específica, constituindo-se em instrumento de atuação da União na área que pretende intervir. São diversas as modalidades atualmente existentes na Constituição e ainda se admite expressamente a criação de nova contribuição para atender a seguridade social, da qual a saúde faz parte (artigo 195, parágrafo 4º), desde que mediante lei complementar, uma vez que se trataria do exercício da competência residual da União.

Considerando que o SUS vincula-se ao Ministério da Saúde e, portanto, à União, é razoável entender que o reembolso aqui tratado constituiria nova modalidade de contribuição para a seguridade social, inclusive pelo fato de se destinar ao custeio da saúde, que é dever do Estado. Essa conclusão afasta a natureza jurídica do reembolso ao SUS da qualidade de reparação civil, eis que tanto na responsabilidade objetiva ou subjetiva, contratual ou extracontratual, pressupõe-se a existência do nexo causal entre a conduta de um agente, culposa ou não, e o dano provocado à vítima. Ora, isso poderia justificar a necessidade de ressarcimento pela operadora ao usuário, mas jamais daquela para o SUS, por que este na verdade já tem obrigação constitucional de prover a saúde pública em caráter universal.

Além disso, se a operadora não prestou um serviço adequado ao seu usuário, este sim merece ser ressarcido, mas atualmente é ele quem está sendo prejudicado, pois, na prática, os cidadãos acabam por pagar três vezes por este serviço: primeiro, através das contribuições sociais e impostos; segundo, pela mensalidade do plano de saúde e terceiro pelo ressarcimento ao SUS feito pelas operadoras, elemento que obviamente impacta na formação do preço que se pagará pelo convênio particular.

Portanto, ante à natureza tributária da exação e a falta de atendimento às formalidades legais para sua instituição, sugere-se a reabertura do debate ao menos incidenter tantum para que tema seja devidamente enfrentado no Judiciário. Além disso, aparte das questões afetas à caracterização do reembolso como tributo, há outras que merecem ser enfrentadas, ainda que em outra ocasião, tais como: (i) a universalidade prevista na constituição para provimento da saúde; (ii) a fragilidade do argumento de dedução de gastos com a saúde da base de cálculo do imposto de renda para justificar a necessidade de mais recursos públicos a serem arcados pelos particulares e destinados a tal área; (iii) o direito do usuário na escolha entre o atendimento privado e público; (iv) a obrigatoriedade do atendimento na rede pública quando há emergência decorrente de violência ou mediante encaminhamento pelo SAMU; (v) a cobrança exacerbada do reembolso através da tabela TUNEP, que é maior do que a utilizada pelo SUS quando este se obriga a reembolsar o particular em função de convênio; dentre outros.

Todas esses pontos, igualmente pendentes de uma análise apurada, corroboram a necessidade premente de se analisar com mais cautela e precisão jurídica o artigo 32 da Lei 9.656/1998. Uma discussão sólida sobre a natureza jurídica do reembolso em face das características dos tributos já seria um bom começo.

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