Consultor Jurídico

Poder de investigação do MP cria mais problemas do que resolve

22 de maio de 2015, 13h48

Por Aury Lopes Jr., Alexandre Morais da Rosa

imprimir

Spacca
Conforme noticiado nesta ConJur, o plenário do STF entendeu ser constitucional a investigação preliminar feita diretamente pelo Ministério Público. A polêmica é antiga e várias já foram as decisões proferidas pelas turmas, mas agora o reconhecimento é do plenário do STF. A decisão não foi unânime e o voto vencido do Ministro Marco Aurélio é enfático no sentido de que o MP não tem poderes para fazer sua própria investigação, senão de acompanhar o desenrolar do inquérito, requerer diligências e exercer o controle externo, enfim, os poderes tradicionalmente reconhecidos pelo Código de Processo Penal. Mas destacou: “O que se mostra inconcebível é um membro do Ministério Público colocar uma estrela no peito, armar-se e investigar. Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório”.

O entendimento prevalente, contudo, foi no sentido da legalidade, desde que “respeitados os direitos garantidos pela Constituição, o devido processo legal e a razoável duração do processo.” E é exatamente aqui que gostaríamos de situar a discussão: com essa decisão, acabaram os problemas da investigação preliminar? Está resolvida a crise do inquérito?[1] Claro que não. Temos agora ‘outro’ longo problema a ser enfrentado: como será essa investigação? E ainda, qual será o papel da polícia judiciária neste cenário e como será a relação polícia/MP?

Comecemos pela questão o relacionamento polícia/MP. Continuaremos tendo o inquérito policial e, paralelamente, a possibilidade de o MP investigar através do seu próprio procedimento. Mas como se dará a seleção dos casos penais a serem investigados por cada órgão? Posso registrar o roubo/furto do meu carro no MP para ele investigar? Ou haverá uma “seletividade informal”, leia-se, o MP vai investigar o que ele quiser e o “resto” ficará com a polícia?

Não deveria haver uma clara definição em lei (sim, a reserva legal é crucial neste tema!) sobre as esferas de atribuições de cada órgão, bem como a clara demarcação dos ‘espaços investigatórios’? E se forem instaurados procedimentos paralelos, pela polícia e pelo MP, como ficarão? Um prevalece sobre o outro ou tramitarão em paralelo, com evidente duplicidade? Há prevenção? Aliás, a Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público possui força de lei, do mesmo patamar do CPP? Afinal de contas se as regras processuais e da investigação devem estar previstas em Lei no sentido estrito, suprimiu-se a competência do Congresso Nacional na elaboração das regras de Processo Penal. Imaginamos a situação de o Conselho Nacional de Justiça edite uma Resolução ditando o novo Código de Processo Penal. Se o CNMP está autorizado a produzir normas processuais, embora a Constituição proíba, qual o impeditivo do CNJ?

Essa são questões da maior importância e, como ocorreu nos países que adotaram a figura do promotor investigador (Alemanha em 1974, Itália e Portugal em 1988, por exemplo), é importante que a lei defina a relação polícia/MP, demarcando as esferas de atuação e subordinação, como bem pontua Manuel Valente.

Na Espanha, cujo modelo é predominantemente de juiz instrutor (figura inquisitória e em completo abandono)[2], existe a possibilidade de o MP investigar, mas a prevalência é do juiz. E a polícia judiciária? Tem dependência funcional e orgânica expressa no artigo 126 da Constituição espanhola, regulamentada pela Ley de Enjuiciamiento Criminal (Código de Processo Penal) e também pela Instrução Normativa 2/1988 que determina que procuradores ‘chefes’ do MP devem despachar, pelo menos, semanalmente com os chefes de polícia, sobre assuntos que interessem a investigação. São demarcadas ainda as chamadas instruções gerais e as instruções específicas, entre MP e polícia. Enfim, o que pretendemos demonstrar com esse rápido exemplo, é que o relacionamento MP/polícia judiciária é algo da maior importância e que exige clara demarcação legal. Sem falar que tampouco foi essa a opção do legislador constituinte.

Neste terreno, extremamente sensível, essa (e as anteriores decisões do STF), não incursiona, criando (mais uma vez) uma zona cinzenta de poder, fértil para disputas, atritos e desgastes institucionais. Além de possíveis manobras escusas. Mas o ponto nevrálgico, superada a demarcação das esferas de poder investigatório, é: como será a investigação do Ministério Público? O inquérito policial e seus problemas já são por todos conhecidos, mas e a investigação realizada pelo promotor/procurador, como se dará? Seguirá o CPP e as regras do inquérito quando lhe convém?

Se tomarmos a diretriz genérica, generalíssima… do STF, de que devem ser “respeitados os direitos garantidos pela Constituição, o devido processo legal e a razoável duração do processo”, então vamos ter de reconhecer a inconstitucionalidade do inquérito policial…Teríamos, sem dúvida, uma investigação normativamente muito melhor! Mas, para isso, precisamos de lei que defina!

Sem lei prevendo essa “nova e constitucional investigação”, ficaremos na dependência da ‘bondade dos bons’, ou seja, cada promotor poderá escolher, a la carte, o que entende “conforme a constituição” e dispensar o resto? Ou vamos incorrer, mais uma vez, na crise da teoria das fontes, e permitir que isso seja definido por uma “portaria”, “resolução”, “regulamento”, “provimento”, ou qualquer outra mediocridade legislativa do gênero? Considerando a gravidade e importância de uma investigação criminal, não é aconselhável dispensar a reserva de lei, por elementar. O caos se potencializa e em nome da necessidade da investigação, criamos uma Investigação de Exceção, ao gosto dos investigadores públicos.

Mas o MP vai precisar da polícia, nem que seja para investigar a criminalidade-chinelo-de-dedo, ou ainda, quando precisar do apoio policial armado e toda sua estrutura para uma operação de vulto. Neste caso, como será essa relação? E o tal controle externo da atividade policial, ilustre desconhecido no Brasil, como se efetivará? Na ausência de respostas, sigamos.

O STF fala em respeitar os direitos fundamentais, o devido processo e o prazo razoável. Para isso, precisamos de lei… precisamos de uma nova investigação. É fundamental definir o objeto da investigação preliminar e os limites da cognição, para termos uma fase pré-processual verdadeiramente sumária (e jamais plenária, como se converteu na prática).

É preciso definir a situação jurídica do sujeito passivo, bem como a necessária incidência do contraditório e do direito de defesa, diante da inafastável aplicação do artigo 5°, LV da Constituição na investigação preliminar. É imprescindível responder aos seguintes questionamentos: A partir de que momento alguém deve ser considerado como sujeito passivo? Que circunstâncias devem concorrer para que se produza a situação de imputado já que o indiciamento é privativo da autoridade policial? De que forma se deve formalizar essa situação? Que consequências endoprocedimentais produz? Que cargas assume o sujeito passivo? Que direitos lhe correspondem?

Qual será o alcance do segredo (interno e externo) da investigação, bem como sua duração e requisitos para decretação. O artigo 20 do CPP não regula absolutamente nada e, o pouco que diz, não resiste a uma filtragem constitucional. Como o MP irá lidar com isso? O STF fala em prazo razoável, esse ilustre desconhecido do processo penal brasileiro! Mas qual é o prazo razoável? Não basta ter um ‘prazo’, precisamos ter uma ‘sanção’ pelo descumprimento.[3]

A disciplina do CPP acerca do prazo é pífia e completamente ineficaz, não atendendo ao mandamento constitucional e tampouco ao critério destacado pelo STF. É preciso definir o prazo máximo da investigação preliminar adotando uma resolução ficta quando superado o limite (como ocorre no CPP paraguaio) ou uma pena de inutilidade (inutilizzabilità do sistema italiano) dos atos praticados após o término do prazo legal. Nessa matéria, de nada serve a definição de um prazo sem a correspondente sanção processual pela violação.

Por último, dado o limite de espaço da coluna, pois várias outras questões devem ser abordadas, questionamos: como vamos reduzir os danos da quebra de igualdade de tratamento e oportunidades probatórias? Sim, porque é elementar que quando o acusador investiga, ele não vê mais do que uma direção. De que forma essa situação será contornada? A defesa poderá fazer investigação paralela? Terá acesso aos dados brutos e o investigado, será indiciado por quem? Depois de indiciado exercerá este status de indiciado como?

E antes que nos critiquem injustamente, dizendo que ser contra a investigação pelo MP é tipico de quem quer a ‘impunidade’, respondemos: leia tudo de novo, pois você não entendeu nada… A discussão situa-se no marco da legalidade, de ter regras claras do jogo. Em democracia, todo poder precisa ser condicionado e demarcado. Forma é garantia. Há uma salutar desconfiança e patrulhamento dos excessos e questionamento da legitimidade. A informalidade só interessa ao discurso autoritário.

Essas são questões muito mais relevantes e que deixam em segundo plano a rasteira discussão em torno da autoridade encarregada da investigação. Enfim, é preocupante o reducionismo da discussão, que deixa de lado questões muito mais graves do que definir quem será o inquisidor. O problema está na própria inquisição. Mudem ou mantenham os inquisidores, pois a fogueira continuará acesa. E, como fiz Luis Alberto Warat, direitos sem garantias são promessas de amor.


[1] Sobre o tema, para uma ampla análise dessas questões, recomendamos a leitura da obra “Investigação Preliminar no Processo Penal”, de Aury Lopes Jr e Ricardo Jacobsen Gloeckner, publicada pela editora Saraiva.
[2] Sobre as vantagens e inconvenientes dos modelos de investigação a cargo do Juiz, Promotor e Polícia, consulte-se a obra “Investigação Preliminar no Processo Penal” anteriormente referida.
[3] Sobre o direito de ser julgado em um prazo razoável, remetemos o leitor para o Capítulo II da obra “Direito Processual Penal”, 12ª edição, de Aury Lopes Jr., publicada pela editora Saraiva.