Contas à vista

Que Santo Ivo proteja os advogados e o Carf com suas novas restrições

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

19 de maio de 2015, 8h00

Spacca
19 de maio, dia em que esta coluna circula, é dia de Santo Ivo, protetor dos advogados. Trata-se de um padre franciscano que nasceu e viveu na França durante a segunda metade do século XIII. Existe uma Igreja em seu louvor em São Paulo, na região do Ipiranga, bairro de Jardim Luzitânia. Espero que ele permaneça protegendo a nós, advogados, e ilumine a todos que estão com a difícil tarefa de reformar o sistema de processo administrativo tributário federal, em especial o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), órgão federal julgador de segunda instância administrativa, que se encontra envolvido em diversas acusações de irregularidades.

Não vou tratar das acusações que pairam sobre o Carf, embora folgue em ver pelos jornais que a cifra de R$ 19 bilhões inicialmente apontada como desviada dos cofres federais já teve sua estimativa reduzida para ainda enormes R$ 5 bilhões. Todas as irregularidades devem ser apuradas e punidas, respeitado o devido processo legal e com transparência.

Está na pauta do dia das discussões que vêm ocorrendo nos meios jurídicos financeiros e tributários a reorganização do Carf. Faço coro com Heleno Torres, que escreveu sobre o processo administrativo fiscal como garantia insuprimível de nosso ordenamento jurídico. Heleno tece uma série de considerações sobre o instituto e faz algumas sugestões que subscrevo.

Em outra coluna tratei do voto de qualidade no Carf, matéria que bem poderia voltar a ser debatida nessa etapa de reformas que se inicia. A Fecomercio/SP apresentou uma sugestão acerca desse tema, que é a do voto de minerva não ser do presidente dos órgãos fracionários do Carf, sempre um representante do Fisco, mas do relator do processo, o que é uma boa ideia e deve ser levada em consideração.

Quero nesta ocasião alertar para duas restrições criadas pelo Decreto 8.441, de 29 de abril de 2015, que atropelou o processo de consulta pública iniciado pelo Ministério da Fazenda, e antes de seu encerramento estabeleceu que os Conselheiros do Carf, representantes dos contribuintes, deveriam passar a ser remunerados.

A primeira restrição diz respeito à distinção entre incompatibilidade e impedimento para o exercício da advocacia, onde me parece ter havido alguma imprecisão terminológica. Ou então, certo exagero na medida aplicada.

A segunda restrição diz respeito ao conflito de interesses aplicável aos Conselheiros do Carf, à semelhança do que é imposto aos servidores públicos federais, que determina uma série de extensões que me parecem estar escapando aos acirrados debates que vêm ocorrendo.

Passemos à sua análise.

No que se refere à incompatibilidade ou impedimento para o exercício da advocacia, o problema surge no artigo 1º, parágrafo 1º, do Decreto 8.441/15, ao determinar que os conselheiros ficarão sujeitos às restrições no “exercício de atividades profissionais em conformidade com a legislação e demais normas dos conselhos profissionais a que estejam submetidos”. O destaque se tornou mais incisivo quando o parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto estabeleceu que estas restrições “incluem a vedação ao exercício da advocacia contra a Fazenda Pública federal”, nos termos do Estatuto da OAB (Lei 8906/94).

A razão da confusão está no fato de que os Conselheiros dos contribuintes, nessa Corte paritária, não eram remunerados, o que afastava as restrições do EOAB. A partir de então, com o estabelecimento de remuneração e a expressa menção acima referida, as restrições se impõem.

A imprecisão técnica-legislativa gerou incontáveis confusões e o ponto central está no artigo 27 do EOAB, que estabelece de forma clara, que “a incompatibilidade determina a proibição total, e o impedimento, a proibição parcial do exercício da advocacia”.

Pela redação do Decreto, tudo indica que a intenção do parágrafo 2º do artigo 1º foi a de criar um impedimento ao exercício da advocacia contra a Fazenda Pública federal. Os impedimentos, consoante o artigo 30 do EOAB, impedem que os advogados litiguem contra a Fazenda Pública que os remunera. Mas a aparente intenção do redator do Decreto acabou gerando uma incompatibilidade, isto é, na vedação total a qualquer atividade advocatícia, inserindo os membros do Carf no artigo 28, VII, do Estatuto, que prevê a impossibilidade de exercício de advocacia, mesmo em causa própria, dos “ocupantes de cargos ou funções que tenham competência de lançamento, arrecadação ou fiscalização de tributos e contribuições parafiscais.”

Aqui está um dos pontos principais do debate, pois ao tornar os ocupantes do cargo de Conselheiro do Carf incompatíveis para o exercício da advocacia, mesmo em causa própria, seguramente afastarão muitos interessados qualificados para o exercício daquelas funções. O advogado que se torna Conselheiro do Carf não poderá nem mesmo fazer o próprio divórcio! Parece-me uma restrição exagerada para os futuros ocupantes desse cargo. Seguramente existirão muitos outros membros qualificados para essa função, mas diversos advogados militantes se afastarão da assunção desse encargo público. Afinal, terão as mesmas restrições dos demais funcionários públicos, mas nenhuma de suas vantagens, como a estabilidade funcional e a aposentadoria com proventos diferenciados. E, ainda mais, remunerados sob a forma de jeton. Ônus sem bônus.

O correto, a meu ver, seria a atribuição de impedimento na forma do EOAB — o que, aliás, está escrito no texto do Decreto, que transcrevo novamente para confirmar minha assertiva: “as restrições a que se refere o parágrafo 1º incluem a vedação ao exercício da advocacia contra a Fazenda Pública federal”. Ou seja, contra a Fazenda Pública federal e não contra outros entes públicos ou contra partes privadas. O escopo parece ter sido o de impedir os conselheiros de advogar contra a Fazenda Pública que vai passar a remunerá-los, e não o de torná-los incompatíveis. Porém, uma coisa é o que se escreve e outra é o que se lê, como ensinam os mestres da hermenêutica jurídica, dentre eles Lenio Streck e Paulo de Barros Carvalho. O texto jurídico tem vida própria.

A situação se torna ainda mais complexa ao se verificar que em ocasião anterior o Conselho Federal da OAB, analisando consulta formulada acerca da atuação dos Conselheiros contribuintes perante o Tribunal de Impostos e Taxas (TIT), que é o órgão paulista de segunda instância administrativa, decidiu que, havendo remuneração, os mesmos ficariam incompatíveis — situação idêntica à que se apresenta agora no Carf (Clique aqui para ler). O TJ-SP chegou a anular a decisão proferida pelo TIT em face da presença de Conselheiros contribuintes que eram, e permanecem, não remunerados (Clique aqui para ler). 

A segunda restrição trata de conflito de interesses, aplicando aos novos Conselheiros as mesmas que são impostas aos ocupantes de cargos na Administração Pública federal. Quem me chamou a atenção para esse aspecto foi Heleno Torres, em conversa informal sobre o tema. Esta disposição encontra-se no parágrafo 1º, do artigo 1º, do Decreto, que restringe as atividades profissionais dos Conselheiros na forma do artigo 10 da Lei 12.813, de 16 de maio de 2013. Esta norma faz remissão aos artigos 4º, 5º e 6º, I, dessa Lei. Daí surgem diversas possibilidades de conflito de interesses, os quais, consoante a norma do artigo 4º, parágrafo 2º, independem “da existência de lesão ao patrimônio público, bem como do recebimento de qualquer vantagem ou ganho pelo agente público ou por terceiro.” Nestes casos o conflito de interesses não precisará ser posto, pois é desde logo pressuposto, por força da lei.

Além disso, surgem no artigo 5º várias situações que configuram conflito de interesses, dentre elas:

II – exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe.

Observe-se que, caso os Conselheiros venham a ser considerados impedidos, e não incompatíveis, esta norma alcança a sociedade de advogados que o Conselheiro faz parte. Se incompatíveis para o exercício da advocacia, não poderão sequer ser sócios de escritórios de advocacia, mas se forem considerados apenas impedidos de advogar contra a fazenda pública que os remunera, todas as restrições aplicáveis aos servidores públicos federais também serão a eles impostas.

Claro que os atuais Conselheiros não participam das deliberações em que os clientes de seu escritório têm interesse, mas se os futuros Conselheiros, escolhidos sob a égide do Decreto 8.441/15, forem considerados apenas impedidos de advogar, o escritório do qual fazem parte não poderá mais ter atuação perante o Carf, pois pode ocorrer que um leading case venha a ser firmado através de uma decisão em que participe e isso venha a beneficiar vários casos em que os clientes de seu escritório façam parte. Ou ainda, na criação de decisões paradigmáticas ou que acarretem mudança no entendimento de uma ou mais composições do Carf, subdividido em várias Seções e Câmaras.

Os demais incisos do artigo 5º acarretam outras restrições, tal como essa:

V – praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão.

Aqui existe outra implicação que atingirá em cheio muitas das sociedades de advogados que possuem perfil nitidamente familiar.

Ou seja, o artigo 1º, parágrafo 1º, cria uma série de restrições não apenas aos Conselheiros do Carf, mas também, por extensão, às sociedades de que participem como advogados, mesmo que a interpretação do artigo 1º, parágrafo 2º, seja pelo impedimento e não pela incompatibilidade. E isso se espraia tanto para as sociedades de advogados que possuem trezentos sócios, como para aquelas que possuem apenas dois sócios.

A situação colocada em debate lembra, de imediato, aquelas restrições impostas pelo Conselho Federal da OAB aos magistrados aposentados, que deveriam guardar uma espécie de quarentena antes de iniciarem sua atividade advocatícia e isso deveria atingir todo o escritório ao qual estivessem filiados, o que se encontra em debate da ADPF 310, com relatoria do ministro Teori Zavascki, sem liminar. Todavia, um segundo olhar fará notar que se trata de algo diferente, pois o magistrado aposentado tem sua influência declinante perante o Poder Judiciário, enquanto no caso em apreço os membros do Carf permanecem atuantes e potencialmente gerando os conflitos de interesses mencionados na Lei 12.813/13. Na verdade, a comparação só realça as diferenças entre as duas situações.

Enfim, as restrições vão se espraiar para as pessoas jurídicas das quais o advogado que aceitar o munus público venha a fazer parte — claro, se o cargo for considerado como gerador de impedimento, e não de incompatibilidade.

Uma alternativa a tudo isso seria a institucionalização de uma carreira de servidores públicos cuja função seria a de decidir o processo fiscal administrativo em segunda instância, provida através de concurso público de provas e títulos. Everardo Maciel comentou informalmente que é assim que funciona a segunda instância julgadora em Pernambuco.

São várias as possibilidades colocadas à frente desse tormentoso assunto que está sacudindo os meios jurídicos tributários e financeiros atualmente. Que Santo Ivo nos ajude e ilumine. E também ao Carf e aos advogados que lá buscarem assento após as reformas que estão em curso. E a toda a sociedade que necessita desse importante mecanismo de solução extrajudicial de conflitos fiscais.

Autores

  • é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!