Ajuste de foco

"Não existe estudo que relacione uso
de drogas com a prática de crimes"

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17 de maio de 2015, 7h25

Spacca
A segurança pública no Brasil é pautada por alguns problemas intrincados. A maioria dos inquéritos não é resolvida, ao mesmo tempo em que metade da população carcerária é de presos provisórios. E no meio disso, o senso comum, inclusive nas polícias, credita os problemas ao uso de drogas — e vê no uso de drogas a causa para o tráfico de drogas.

Mas a secretária nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Regina Miki, garante que são conclusões do senso comum. “Não temos estudos aprofundados sobre as causas da violência, e como não há esse estudo, jogamos tudo nessa vala comum da droga”, afirma, em entrevista à ConJur. “Também não existe a relação direta entre consumo de drogas e cometimento de crimes”, garante.

Regina afirma que é comum no Brasil se dizer que entre 60% e 70% dos homicídios são motivados pelo consumo de drogas. “Mas, como não temos um estudo aprofundado, seria chute nosso afirmar isso”, diz. Segundo ela, o que se tem certeza é que o sistema prisional hoje está superlotado por gente que cometeu “pequenos furtos ou roubos para a manutenção de um vício”.

Por isso, para ela, o consumo de drogas é um problema de saúde pública e não de segurança. O problema criminal são as quadrilhas de tráfico internacional, que lavam dinheiro e, segundo Regina, diversificam suas atividades. “Nosso trabalho não é, hoje, o de pensar em descriminalização do tráfico, ou do uso. Estamos debruçados em aumentos à rede de atenção à saúde, de atenção e de proteção social às famílias dos usuários para dar condição deste usuário de refazer seu projeto de vida.”

Na entrevista, Regina contou que um estudo feito em alguns países da Europa viu que, ao mesmo tempo em que o consumo de drogas diminuiu, o número de crimes cometidos manteve-se estável. Principalmente o de crimes violentos.

A secretária também analisa que a principal causa da sensação de insegurança na sociedade são os crimes contra o patrimônio. Ela observa que, à medida em que o número de crimes contra  vida cai, o de furtos, roubos e latrocínios aumenta. Ela não conhece a explicação, apenas o resultado. “Para o senso comum, se eu não estiver envolvida com droga, com roubo, com quadrilha eu não serei alvo potencial de homicídio. Mas de qualquer sorte, se eu tiver um celular, por pequeno que seja, um bem com valor às vezes irrisório, eu serei vítima em potencial de um roubo ou furto.”

Leia a entrevista: 

ConJur – Uma pesquisa do Ipea divulgada no fim do ano passado sobre a aplicação de medidas cautelares alternativas concluiu que só é processado criminalmente quem já está preso e só existe prisão em flagrante. O governo tem como mexer nisso?
Regina Miki – 
Temos uma federação que nos traz alguns problemas. O governo federal é cobrado pelo aumento de homicídio, aumento do número de prisões, de tudo. E pouca atuação nós temos sobre as polícias dos estados. Quase nenhuma. Nossa atuação sobre os cárceres tem sido, eminentemente, para socorro dos estados em crise. Não temos qualquer pesquisa que diga que o aumento de encarceramento trouxe diminuição de violência ou de criminalidade. Por isso nos assustamos quando temos um número de quase 80% dos presos no Brasil serem provisórios. São pessoas que nem sempre deveriam estar presas, ainda mais num sistema como o nosso em que organizações criminosas estão dentro desses cárceres. Sua pergunta nos leva a uma falta de sincronismo entre sistemas: o sistema de Segurança Pública, com o Sistema de Justiça Criminal e o sistema Prisional.

ConJur – E o que isso quer dizer?
Regina Miki –  Quando nós sentamos à mesma mesa e discutimos esses problemas numa câmara comum, como fizemos em Alagoas, na câmara de monitoramento, vemos bons resultados. A autoria de crimes nos inquéritos passam a ser maiores, e você tem autoria e materialidade, então você dá condições para o Ministério Público ter uma ação mais volumosa e uma condição de ser sentenciada uma pessoa que comete um crime e que precisa ser levado ao cárcere. Sua pergunta só me leva a uma reflexão: até quando dissociar sistemas traz benefícios à sociedade como um todo? E é isso o que está acontecendo, os sistemas não dialogam.

ConJur – A política do governo é de desencarceramento? Mas como isso funciona? Tem que mudar lei?
Regina Miki – 
Sim. É a cultura do nosso povo. Tivemos a pena de prisão como alternativa à pena de morte, mas ainda muito pensada como uma forma de castigo. E a evolução foi buscar a ideia de reparação do dano causado à sociedade e a ressocialização de quem não conseguiu viver dentro das regras. Portanto, eu posso buscar a ideia de reparação, mas não necessariamente de encarceramento. Nossa ideia, trabalhando junto com o Departamento Penitenciário, é buscar alternativas de reparação que não passem pela prisão. Por exemplo, o sujeito pode trabalhar normalmente usando uma tornozeleira e sendo monitorado. Ele tem um cerceamento parcial de sua liberdade. Mas eu não posso crer que ele preso por um crime de menor potencial ofensivo trará uma reparação maior à sociedade. É a busca pela reparação, não pelo encarceramento.

ConJur – Não é simplesmente desencarceramento, então.
Regina Miki – 
É óbvio que temos alguns delitos que temos de encarcerar. Um criminoso contumaz. Por exemplo, um rapaz em Alagoas que aos 20 anos já cometeu 25 homicídios. Essa pessoa precisa de um tratamento mais específico, porque ela causa grande dano à sociedade. Então a gente ainda busca esse equilíbrio, mas não sei se é fácil levar esse debate hoje.

ConJur – Por quê?
Regina Miki – 
Porque a insegurança está muito grande e as pessoas buscam o que é aparentemente mais fácil para a solução de um problema. “Tenho insegurança com relação a política de segurança pública? Ah, então prende todo mundo!” Mas o fato concreto é que se eu não tenho pena de morte, essas pessoas que estão no cárcere em determinado momento voltarão a viver em sociedade. E a pergunta que se deve fazer é: quem eu quero que volte a conviver comigo, com os meus filhos, com a minha família e com a sociedade? Uma pessoa melhor ou pior do que foi ao cárcere? Se não por altruísmo, que seja por egoísmo. Eu quero uma pessoa melhor.

ConJur – Mas a pena de morte também não resolveria isso.
Regina Miki –
 Não creio em nada radical. Nós temos que buscar, no Estado Democrático de Direito, algo que seja mais palatável e que busque, para essas pessoas que incorreram em determinado erro em determinado momento da vida, reparar aquilo que elas não tiveram. Via de regra quem está preso no Brasil, com raríssimas exceções, já foi excluído de escola, do direito de lazer, de esporte, de cultura, e com a prisão elas são novamente excluídas. Quando estão atrás dos cárceres eu não as vejo.

ConJur – Outra grande crítica à política carcerária vigente é que há muito mais prisões por crimes contra o patrimônio do que contra a vida. Existe essa ponderação no Conselho de Segurança Pública?
Regina Miki –
 A Constituição já nos dá esse norte. Ela diz que o maior bem tutelado pelo Estado é a vida, seja ela qual for, razão pela qual nós temos vários crimes com penas diferenciadas para quem tira a vida de alguém. Temos um ponto a analisar: quando diminui a taxa de homicídio, há uma tendência de aumento de crime contra o patrimônio. Não me pergunte por quê, mas isso é uma tendência. Isso a gente acabou de ver agora em Alagoas. Lá começou o Brasil Mais Seguro há três anos e a gente reduziu em 27% a taxa de homicídio em Maceió e em 33% no estado. Era a terceira capital mais violenta do país, e agora é a terceira ou quarta, por causa desse programa. Mas a insegurança persiste.

ConJur – Por quê?
Regina Miki –
Quando analisamos, vimos que é o crime contra o patrimônio. Este tipo choca mais a sociedade e traz maior insegurança do que o crime contra a vida. Para o senso comum, se eu não estiver envolvida com droga, com roubo, com quadrilha eu não serei alvo potencial de homicídio. Mas de qualquer sorte, se eu tiver um celular, pequeno que seja, um bem com valor às vezes irrisório, eu serei vítima em potencial de um roubo ou furto. Esse é o senso comum.

ConJur – Outra grande questão é a do tráfico de drogas, uma das maiores causas de encarceramento. Mas toda vez que tentam mexer nisso, pioram a situação. Endurecem pena, dificultam o tratamento, criminalizam ainda mais. Qual a solução?
Regina Miki –
 Há uma grande preocupação de juristas e de quem lida com a área. Primeiro a gente precisa aprofundar o estudo sobre a motivação do crime. Como não há esse estudo, o senso comum é jogar tudo nessa mesma vala das drogas.

ConJur – E está errado?
Regina Miki –
Na Europa acaba de ser lançado um estudo dizendo que nos lugares onde há maior consumo de drogas não há maior número de homicídios nem de crimes violentos.

ConJur – Então não existe essa relação direta.
Regina Miki – Pelo menos não de acordo com esse estudo recente. No Brasil é senso comum se dizer que 60%, 70% dos homicídios estão envolvidos com drogas. Mas nós não temos um estudo aprofundado sobre motivação de crime. Seria chute nosso atribuir tudo isso às drogas. Fato concreto é que a superlotação do nosso sistema prisional é devido a pequenos furtos ou roubos cometidos para a manutenção de um vício.

ConJur – O governo considera a ideia de descriminalização, ou de regulamentação?
Regina Miki –
 Nós, enquanto governo, temos outras preocupações e essas, sim, nos fazem debruçar sobre isso. Até hoje não conseguimos satisfatoriamente atender a todos os usuários naquilo que a gente tem como consenso que seria necessário.

ConJur – Qual é esse consenso?
Regina Miki –
É na área da saúde. O usuário é detentor do direito à saúde, e ele precisa de saúde pública. O nosso trabalho não é, hoje, pensar, em descriminalização. Estamos debruçados em aumentos a rede de atenção à saúde, de atenção e de proteção social às famílias dos usuários para dar condição deste usuário de refazer seu projeto de vida. Então pelas discussões que temos trabalhado, do Ministério da Justiça e dos demais ministérios envolvidos, MDS e Ministério da Saúde, MEC é como tratar esse usuário. 

ConJur – O consumo de drogas, então, é um problema de saúde?
Regina Miki –
É um problema de saúde que se reflete em segurança. Mas com certeza é um problema de saúde. Por isso acho que quem poderia responder melhor a todos os questionamentos com relação a descriminalizar, legalizar, seriam aqueles que são detentores das políticas de saúde, e não a gente. Nós recebemos por reflexo, eu não tenho a mínima ideia do que impactaria na descriminalização do ponto de vista da saúde pública.

ConJur – Mas do ponto de vista da segurança pública seria radical, porque se está todo mundo preso por tráfico e se ele for legalizado…
Regina Miki –
Não sei, porque em todos os países onde houve esse tratamento diferenciado, não houve queda nem de crime nem de violência. E eu também não sei em que nível se daria da discussão. Seria uma descriminalização total dentro do Brasil? Se sim, estaríamos trazendo aqui pra dentro uma indústria, uma empresa. Isso nos interessa?

ConJur – O que acha das recentes propostas, a principal delas capitaneadas pela Ajufe, de se antecipar a execução da pena para depois da decisão de primeiro grau?
Regina Miki –
Esse índice de presos provisórios já não é a legalização da execução antes mesmo da sentença, na prática? O problema do Brasil, hoje, é a prisão provisória.

ConJur – Qual a solução?
Regina Miki –
Primeiro temos que acabar com essa cultura de encarceramento. Do jeito que estamos hoje, não faz diferença se a prisão é definitiva ou provisória. Se tivéssemos um sistema zerado, talvez minha opinião fosse outra. Mas hoje tem um problema concreto: 40% dos presos são provisórios. E aí?

ConJur – Uma das propostas da campanha de 2014 foi a tal da PEC da Segurança Pública. Andou?
Regina Miki –
Já saiu daqui do Ministério da Justiça, está na Casa Civil, estudando e acho que está na AGU, mas não posso informar com certeza. A PEC é um anseio nosso e daqueles que operam a segurança pública na medida em que poderia à União normatização padrão na formação e nos procedimentos operacionais.

ConJur – O que isso quer dizer?
Regina Miki –
 Eu teria uma matriz de formação com uma espinha dorsal única, e os policiais poderiam atuar onde for no Brasil e teriam a mesma forma de atuação pelos procedimentos operacionais padrão, facilitando a integração das instituições e do estados em termos de segurança pública. Isso seria fundamental.

ConJur – Por quê?
Regina Miki –
 Porque já chegamos à conclusão de que nada se faz sem a integração das instituições. Se eu não tenho uma formação padrão e eu não tenho procedimentos operacionais padrão integrados o trabalho se torna muito difícil. Cada instituição tem o seu estilo de trabalho e seus procedimentos. São 54 polícias em 27 estados, mais corpos de bombeiros, perícias, guardas municipais Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal. Em determinadas situações todos precisam trabalhar juntos.

ConJur – A PEC é para a União tomar as rédeas da estratégia de segurança pública?
Regina Miki –
A União vai comandar políticas. O que queremos é ter maior participação na formação desses policiais, não é ter controle. A PEC vem mais para dividir responsabilidades do que para coordenar alguma coisa. Hoje, como está a segurança pública na Constituição, o governo federal tem muito pouco a fazer. E a gente é muito cobrado, porque quem responde na Corte Internacional de Direitos Humanos pelo número de homicídios é o governo federal.

ConJur – Hoje se fala muito em desmilitarização da polícia. Faz sentido?
Regina Miki –
 Às vezes me pergunto o que querem dizer com desmilitarização. Uns dizem que é o fato de ter uma polícia descaracterizada, não uniformizada na rua. Já chegaram, aqui na minha sala, ao extremo de dizer que o fato de deixar de prestar continência será desmilitarizar a polícia. Prestar continência é simplesmente um cumprimento entre as polícias, e nasceu antigamente, quando as pessoas não podiam toda hora lavar as mãos. Outros dizem que desmilitarizar é aperfeiçoar os regulamentos internos das corporações. Mas isso já vem sendo feito com muitas das nossas polícias e é óbvio que tem que ter mais aperfeiçoamento para um sistema democrático. Mas poucos falam de uma formação diferenciada.

ConJur – Mas a polícia hoje é mais adequada a um regime civil democrático ou a um regime opressor?
Regina Miki –
A gente tem um pouco de tudo, porque se a gente buscar parâmetros nas manifestações ocorridas em junho de 2013, eram 1,1 milhão de pessoas na rua, e 66 mil policiais . E naquele dia 26 de junho não aconteceu nenhuma morte provocada por policial contra manifestantes. E logo no dia 27 nós abríamos as manchetes no jornal e víamos que fora do país, na Europa, uma manifestação com 40 mortos. Então essa polícia do Brasil é violenta?

ConJur – Mas a morte é o extremo. Aconteceram situações violentas que não levaram à morte, como o fotógrafo que levou um tiro no olho.
Regina Miki –
Sim, mas o que estou dizendo é: a polícia é violenta? Por onde eu meço essa violência? Houve situações extremas de todos os lados. Houve excessos, mas eles foram cometidos pela corporação ou por alguns indivíduos?

ConJur – Faz diferença?
Regina Miki –
Faz, na medida em que eu tenho que buscar, além de uma formação geral, a atitude individual de cada um. Aquilo foi voz de comando única ou foi um desvio de conduta de uma pessoa? A mesma coisa eu uso para o movimento. Foi uma voz de comando única entrar naquela agência e arrebentar tudo? Ou foi atitude impulsiva de um ou dois?

ConJur – Mas o policial está representando uma instituição.
Regina Miki –
 Da mesma forma que há o abuso do Estado na atitude do policial, é um abuso contra o Estado quando se comete um crime contra o policial. Porque ele está representando o Estado. Eu concordo com você. Só que isso não pode ser levado ao extremo de dizer que toda a polícia é violenta. Não é. Vou te dar um exemplo clássico. A Força Nacional de Segurança Pública é formada por policiais dos 27 estados. Temos dez anos de atuação, todas elas em crise, porque só atuamos em crises. Não temos uma só morte provocada por policial da Força Nacional, não temos atos de violência provocados pela Força.

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