Embargos Culturais

Heterônimos e pseudônimos problematizam direito ao próprio nome

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

17 de maio de 2015, 8h00

Spacca
No contexto privatístico dos direitos de personalidade o Código Civil tutela o pseudônimo, protegendo-o, quando adotado para atividades lícitas (artigo 19). Maria Helena Diniz retomou lição de Gustavo Tepedino, Heloísa Helena Barbosa e Maria Celina Bodin de Moraes, estendendo esse abrigo para a heteronímia[1]. Lembrou ainda algum exemplo histórico, a exemplo de George Sand (Amandine Aurore Lucile Dudevant), Gabriela Mistral (Lucila Godoy Alcayla) e Di Cavalcanti (Emiliano de Albuquerque Melo)[2]. Pseudônimos e heterônimos são alargamentos da proteção ao nome, dilatam a potencialidade criativa, afrouxam restrições e liberalizam possibilidades de invenção.

Fernando Pessoa (1888-1935) foi escritor português que explorou até o limite essa técnica de identificação e dissimulação[3]. Esse disfarce se confunde com o fingimento (no sentido positivo e teatral do termo): “o poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, passo emblemático, que encima a Autopsicografia desse cogente poeta de Portugal.

Sua vasta obra (cerca de 30 mil papeis, na expressão de Cavalcanti Filho)[4] acende quase uma centena de heterônimos. Destacam-se entre eles Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos, com personalidades, origens, ambiências e experimentos imaginários distintos. Um deles é bucólico (Caeiro), outro é obcecado com o mundo greco-romano (Reis) e um deles é tiete do porvir: Álvaro de Campos é um futurista.

Há suspeitas de que alguns podem, de fato, ter vivido fora da prosa e dos poemas de Fernando Pessoa. Tiveram existência real; ou, pelo menos, há muita semelhança, real ou também fantasmagórica. Cavalcanti Filho teria encontrado um Antonio Joaquim Caieiro, farmacêutico, que teria atendido em Lisboa, por volta de 1922, na Avenida Almirante Reis-108-D. O intelectual pernambucano especialista em Fernando Pessoa (Cavalcanti Filho foi Ministro da Justiça e ocupou cadeira na Academia Pernambucana de Letras) constatou a existência dessa repetição de Alberto Caieiro em um farmacêutico da época, ainda que Antonio, e não Alberto[5].

A heteronímia distancia-se do mero pseudônimo, ainda que dele seja uma manifestação, na medida em que oportuniza a expansão da criação literária, em oposição ao mero pseudônimo, que camuflava a autoria, ainda que por todos conhecida. É o caso de Machado de Assis, que assinou crônicas como Dr. Semana, ou como Gil, contos e avulsos como Sileno, como Victor de Paula, críticas como Platão, crônicas em forma de poesia como Malvolio, entre tantos outros.

Pseudônimos eram muito usados em polêmicas intelectuais, comuns na segunda metade do século XIX[6], a exemplo das disputas em torno do livro sobre a Confederação dos Tamoios (José de Alencar contra Araújo Porto-Alegre e D. Pedro II), bem como questiúnculas entre o General Abreu Lima e o Cônego Pinto de Campos, Alencar e Joaquim Nabuco, Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, Júlio Ribeiro e o Padre Sena Freitas, Sílvio Romero e Lafayette Rodrigues Pereira.

A matéria igualmente é recorrente na jurisprudência. O tema do ghost-writer, indiretamente, também é conexo com a questão do pseudônimo. É o que nos revela a discussão travada no Superior Tribunal de Justiça em torno do livro Doce Veneno do Escorpião, e sua relação com autobiografia de personagem conhecida como Bruna Surfistinha[7].

De igual modo, a altercação em torno do pseudônimo Tiririca, quando o Superior Tribunal de Justiça decidiu que “o pseudônimo goza da proteção dispensada ao nome, mas, por não estar configurado como obra, inexistem direitos materiais e morais sobre ele”[8]. Um dos detentores do pseudônimo, Francisco Everardo Oliveira Silva, deputado federal por São Paulo, do Partido da República, travou intensa disputa com Ubyraja Vianna, que desde os cinco anos atuava em circos com o mesmo pseudônimo de Tiririca. A discussão é interessante, e merece ser conferida.

O direito ao próprio nome parece ser problematizado com pseudônimos e heterônimos, cuja titularidade pode ser dissolvida, diluída, multiplicada e disputada. Isto é, sua extensão a pseudônimos e heterônimos demanda o exame de situações fáticas, pendentes de prova e de juízos de valor.


[1] Diniz, Maria Helena, Código Civil Anotado, São Paulo: Saraiva, 2009, p. 65.
[2] Diniz, Maria Helena, Código Civil Anotado, cit., loc. cit.
[3] Recomenda-se, nesse tema, Cavalcanti Filho, José Paulo, Fernando Pessoa- uma quase biografia, Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2011.
[4] Cavalcanti Filho, José Paulo, Fernando Pessoa- uma quase biografia, cit., p. 12.
[5] Cavalcanti Filho, José Paulo, Fernando Pessoa- uma quase biografia, cit., p. 13.
[6] Por todos, nesse delicioso assunto, Bueno, Alexei e Ermakoff, George, Duelos no Serpentário- uma antologia da polêmica intelectual no Brasil- 1850-1959, Rio de Janeiro: Ermakoff Casa Editora, 2005.
[7] Superior Tribunal de Justiça, Resp 1387242/SP, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino.
[8] Superior Tribunal de Justiça, RESp 555483/SP, relatado pelo Ministro Antonio de Pádua Ribeiro. 

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