Investigação policial

Compartilhamento de informações ajuda a combater criminalidade

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16 de maio de 2015, 7h30

Recentemente, a sociedade brasileira atravessou um momento curioso, marcado por manifestações, em regra pacíficas, que liberam um grito contido há algum tempo, contra a impunidade, a injustiça, o império de poderosos sobre as leis e a erosão de valores. Esse impulso fortalece alguns paradigmas, intrinsecamente legítimos, condizentes com a necessidade de as leis penais serem mais rigorosas e aplicadas com mais severidade. Nesse contexto, advêm posturas inflexíveis acerca da redução da maioridade penal, a defesa da pena de morte e da prisão perpétua, a exasperação das penas, atribuição da marca da hediondez a um maior número de delitos e a necessidade de manutenção de prisões provisórias com a feição de cumprimentos antecipados de penas, dentre outras.

Sem embargo dessas boas intenções, observamos que os valores, expressados em princípios ou regras constitucionais, principalmente quando se relacionem a direitos fundamentais, foram conquistados a duras penas e, portanto, necessitam ser defendidos de maneira intransigente. Dentre eles, encontra previsão no art. 5o, LVII, da Constituição, o princípio da presunção de inocência (presunção de não culpabilidade), segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”.

Dessa garantia decorre uma regra de ouro: nenhuma prisão provisória, qualquer que seja a sua espécie (flagrante, temporária ou preventiva), poderá servir como cumprimento antecipado de pena;[1] pelo contrário, a decisão que a decrete deve ser devidamente fundamentada em seus pressupostos legais, sempre com a atenção voltada à razoabilidade, extraída do princípio do devido processo legal substancial (art. 5o, LIV, CF), de tal modo que nenhuma prisão provisória se justifica se, absolutamente, não houver a mínima chance de ser imposto ao réu o regime inicial fechado para o cumprimento de pena, na hipótese de eventual condenação.

Por expressa determinação legal, a teor do art. 282, par. 4o, in fine, do CPP, a segregação cautelar somente se justifica como medida excepcional, isto é, se as demais medidas cautelares relevarem-se inadequadas para o atendimento da situação a que se destinam. A par das alterações promovidas pela Lei 12.403/2011, o juiz passou a dispor de uma série de medidas cautelares, que passaram a funcionar como alternativas à prisão. Anteriormente, ele não dispunha de muitas opções. Na verdade, como regra, ressalvadas previsões em legislações específicas, como as medidas cautelares da Lei 11.340/2006 (“Lei Maria da Penha”), a prisão funcionava como a única medida cautelar, de sorte que, no curso das investigações ou do processo, ou o sujeito estava preso, ou solto, sem a possibilidade que lhe fossem impostas quaisquer medidas restritivas, à exceção da concessão de fiança, garantia real que, na prática, era mais comumente aplicada pelos delegados de Polícia, já que os juízes, se não vislumbrassem a necessidade de manutenção da prisão, costumavam conceder a liberdade, simplesmente, desvinculada do pagamento de fiança, pela ausência de seus requisitos legais.[2]

Atualmente, a redação literal do artigo 319 do CPP admite a imposição de nove medidas alternativas à prisão, que poderão ser aplicadas de maneira isolada ou cumulativamente, em atenção à necessidade e adequação. Na prática, existe, todavia, sensível resistência quanto à imposição dessas medidas, sob o argumento de que seriam ineficazes, pela dificuldade de sua fiscalização.

Nesse contexto, revela-se oportuna a prática adotada pela Polícia Militar afeta ao 32º Batalhão de Polícia Militar do Interior, com sede na Comarca de Assis/SP, consubstanciada em um projeto desenvolvido justamente para a fiscalização dessas medidas. Em linhas gerais, quando são impostas a um indivíduo medidas susceptíveis de fiscalização (recolhimento domiciliar em período noturno, impossibilidade de se ausentar da comarca, de frequentar determinados lugares, de manter contato com determinadas pessoas etc.), o magistrado remete essas informações à Polícia Militar, consistentes, basicamente, no nome do indivíduo, número do processo e espécie de medidas aplicadas. Essas informações, por sua vez, são armazenadas pela Polícia em seu banco de dados, cujo acesso é franqueado a todos os policias que estejam em serviço.[3] Quando, então, das eventuais buscas pessoais que se revelarem necessárias, o policial poderá consultar esse banco de dados (disponível, por vezes, no tablet da viatura), hipótese em que poderá vislumbrar o aparente descumprimento de medidas. Nestes casos, deverá registrar a ocorrência (BO/PM) e remetê-la ao juízo. O ofício será encartado aos autos e, após o estabelecimento do contraditório e da ampla defesa, o juiz poderá tomar a medida que lhe aprouver, como a designação de uma audiência admonitória, o reforço de medidas ou, em último caso, a decretação de prisão, em conformidade com o disposto no art. 282, par. 4o, do CPP.

Simples assim! A criação de um banco de dados e sua disponibilização para consulta via Central de Operações (internet), desde que não implique a canalização de meios exclusivos a este fim, não sobrecarrega a instituição, já que o encontro de eventuais descumprimentos será consectário de quaisquer outras abordagens. Decerto, a fiscalização das medidas alternativas à prisão, desde que compatível com a execução do policiamento, é assunto afeto à segurança pública e o apoio prestado pela Polícia Militar releva-se absolutamente oportuno. Seja coincidência, ou não, desde a implantação do sistema, no início de 2014, o número de delitos contra o patrimônio caiu consideravelmente no Município de Assis, caminhando na contramão da maioria das cidades do Estado de São Paulo.[4]

Em que pese essa fiscalização não constar do rol das atribuições constitucionais atribuídas às Polícias Militares Estaduais, entendemos que essa colaboração é juridicamente possível, economicamente viável aos cofres públicos e, ainda mais, não desnatura sua precípua atuação na preservação da ordem pública e na prevenção de crimes. Não é forçoso lembrar que todos têm o dever legal de colaborar com a prestação jurisdicional. Sob uma perspectiva mais ampla, o sistema de justiça criminal não é operado apenas após o cometimento do crime, mas, certamente, ele envolve a valiosa atividade preventiva desempenhada pelos órgãos estatais, adquirindo revelo justamente a função típica da Polícia Militar.

Afigura-se aconselhável que o indivíduo, indiciado ou réu, quando possível,[5] seja admoestado diretamente pelo juiz acerca das medidas que lhe foram impostas e da fiscalização que será operada pela Polícia Militar. Cioso dessa realidade, presumivelmente ele envidará mais esforços para cumpri-la, ocasionando-lhe também o efeito psicológico desse sentimento de fiscalização. Isto gera, segundo nos parece, um sentimento de maior deferência às ordens judiciais não apenas por parte daquele que deve cumpri-las, mas também por toda a sociedade, sentimento que contribui, por outra via, para que se esmoreça o clamor social pela prisão a todo o custo, tornando-se evidente que existem vias alternativas à custódia cautelar, menos agressivas, é verdade, mas que submetem o sujeito a maior ou menor grau de ingerência estatal.

Em suma, temos que a adoção do mencionado sistema de compartilhamento de informações revela-se ferramenta adequada no combate à criminalidade, além de contribuir para se conferir credibilidade às medidas alternativas à prisão, valorizando-as enquanto comandos judiciais, relegando-se as prisões provisórias, como tem mesmo de ser, para os casos excepcionais, quando absolutamente não restar outra medida mais adequada.

[1] Seus pressupostos são específicos: (1) a segregação decorrente do flagrante delito é situação efêmera e, de acordo com a atual sistemática, trazida pela Lei 12.403/2011, deve durar apenas algumas horas, quando o juiz, a par do auto de prisão em flagrante, toma uma de três soluções possíveis: relaxa-a, se ilegal; concede a liberdade, vinculada ou não a alguma medida cautelar; ou converte-a em prisão preventiva; (2) a prisão temporária possui requisitos específicos, previstos na Lei 7.960/89, sendo cabível, para um rol taxativo de crimes (art. 1o, III) apenas quando for imprescindível para as investigações ou quando o indiciado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos seguros para a sua identificação, situação que, a nosso sentir, somente se justifica mesmo se a prisão, medida extrema, continuar sendo imprescindível às investigações; (3) por fim, a prisão preventiva somente é admitida se estiver presente ao menos um dos requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal (garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução ou para assegurar a aplicação da lei penal), desde que exista uma das situações do art. 313 do CPP: crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade superior a 4 anos; se, independentemente da pena, o sujeito já tiver sido definitivamente condenado por outro crime doloso; e, por fim, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência, quando o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência.

[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Prisão e liberdade. São Paulo: Revista dos Tribunais: 2011, p. 69.

[3] Foi desenvolvida uma plataforma de armazenamento de dados para consulta via Web, acessada pelo site https://wm10.com.br/map/sistema/default.asp. Após receber a comunicação oriunda do Poder Judiciário, a Polícia Militar cataloga esses dados no sistema e disponibiliza a consulta para os policias de serviço, via Centro de Operações(COPOM).

[4] Cf. informações disponíveis em  http://www.ssp.sp.gov.br/novaestatistica/Pesquisa.aspx, os dados são os seguintes:

Ano/ Modalidade

FURTO

ROUBO

FURTO/ROUBO DE VEÍCULO

2013

1280,59

276,10

154,54

2014

979,15

179,05

140,17

[5] Ressalvados os casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida, conforme dispõe o art. 282, par. 3o, CPP.

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