Direito dos jovens

Medida socioeducativa sem análise de equipe interprofissional é nula

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16 de maio de 2015, 10h38

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza no §4º do artigo 186 que:

“Na audiência em continuação, ouvidas as testemunhas arroladas na representação e na defesa prévia, cumpridas as diligências e juntado o relatório da equipe interprofissional, será dada a palavra ao representante do Ministério Público e ao defensor, sucessivamente, pelo tempo de vinte minutos para cada um, prorrogável por mais dez, a critério da autoridade judiciária, que em seguida proferirá decisão”.

Da leitura do dispositivo retro, não há nenhuma dúvida: o relatório da equipe interprofissional deverá ser juntado aos autos da ação socioeducativa. Noutras palavras, deixar de se juntar o documento no processo é, em primeira e última análise, negar vigência ao disposto no §4º, do artigo 186, do ECA.

E a razão de ser do dispositivo é por demais óbvia e evidente: juízes de Direito, promotores de Justiça e defensores públicos titulares das Varas Especializadas da Infância e da Juventude não podem jamais subrogarem-se nas atividades privativas de assistentes sociais, psicólogos, pedagogos e outras que exigem formação superior especializada.

 Muito menos a oitiva de policiais militares ou civis e da vítima em audiência constituem-se em início de relatório da equipe interprofissional de que trata o §4º, do artigo 186, do ECA. Nem de longe.

 A instrução da ação socioeducativa não se satisfaz apenas com a apuração da autoria e da materialidade do ato infracional. A ação socioeducativa não se confunde com a ação penal de maiores imputáveis que tramitam nas Varas Criminais comuns.

De acordo com o estatuto, a instrução da ação socioeducativa somente se encerrará após esgotado o estudo completo sobre o meio social e familiar do menor, as suas circunstâncias de vida e as condições em que se deu a prática da infração. O que só acontece através do apontado relatório da equipe interprofissional. É o relatório da equipe que dirá qual medida socioeducativa deverá ser aplicada ao adolescente, dentre aquelas elencadas no artigo 112 do ECA.

 Não raras vezes, tamanha a desgraça ou infortúnio na vida do menor, dependência química ou outra desventura, que o relatório da equipe interprofissional poderá recomendar categoricamente a não aplicação de quaisquer das medidas socioeducativas de punição, mas, sim, o deferimento de medidas específicas de proteção ao adolescente.

 A aplicação de medida socioeducativa que contraria o disposto no relatório da equipe interprofissional, ou mesmo ignora a sua ausência, está fadada ao seu insucesso. Por isso mesmo, todo o processo socioeducativo que a fundamenta é nulo de pleno direito por contrariedade ao disposto na legislação específica de proteção e defesa da infância e da juventude.

Legem habemus. Olvidar a confecção do relatório da equipe interprofissional traduz-se no plano da hermenêutica em inaceitável derrogação do §4º, do artigo 186, do ECA.

 Escreve Maria Josefina Becker (Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado, sob a coordenação de Munir Cury, Antônio Fernando do Amaral e Silva e Emílio García Mendez, Malheiros Editores, p. 451):

“As Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing) referem-se à necessidade de que seja ‘efetuada uma investigação completa sobre o meio social e as circunstâncias de vida do menor e as condições em que se deu a prática da infração’, antes da decisão, para facilitar a decisão justa da autoridade judiciária (regra 16.1, cujo comentário prevê a existência de serviços sociais que preparem relatórios especializados)”.

A autora, em referência, complementa a sua observação:

“Nos casos de apuração de ato infracional, cabe à equipe técnica emitir parecer a respeito da medida sócio-educativa (v. art. 112) mais adequada para a recuperação do adolescente, levando em conta, além do ato praticado, as condições de personalidade e as circunstâncias familiares, sociais e culturais” (Ob. cit., p. 452).

 Diz Tânia da Silva Pereira, em O Melhor Interesse da Criança: um debate Interdisciplinar (Editora Renovar, p. 4/5):

“As Convenções contêm regras de procedimentos flexíveis e adaptáveis às mais diversas realidades, delineando políticas legislativas a serem adotadas pelos Estados-Partes. Estes têm a obrigação de, não só respeitar os direitos reconhecidos nas convenções, mas também garantir o livre e pleno exercício dos mesmos. Conseqüentemente, os Governos têm tanto deveres positivos como negativos”.

Por último acrescento a doutrina de Edson Passetti (Violentados, Crianças e Adolescentes e Justiça, 2ª Edição, Editora Imaginária, p. 110):

“Os técnicos das entidades assistenciais ou de órgãos do próprio governo municipal e estadual, da FEBEM e do Poder Judiciário, denominados no ECA por ‘equipe interprofissional’, possuem identidades de propósitos com as solicitações dos promotores e as decisões dos juízes, constituindo, assim, a tríade punitiva do ECA”.

Consagrando a literalidade do disposto no §4º, do artigo 186, do ECA, trago julgado do vanguardista egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“LAUDO DA EQUIPE INTERPROFISSIONAL. AUSÊNCIA. ANULAÇÃO DO PROCESSO.
A ausência de relatório da equipe interprofissional, para a recomendação da medida sócio-educativa mais adequada para a recuperação dos adolescentes, leva a anulação do processo com a cassação da sentença, ainda mais considerando que o ato infracional praticado ocorreu em sede de Juizado Regional da Infância e da Juventude. Processo anulado. Sentença cassada. (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70010363455, Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Antônio Carlos Stangler Pereira, Julgado em 30/12/2004)”.

 A proteção integral à criança e ao adolescente exige respeito e atenção por parte do Poder Público. A este cabe cumprir bem e fielmente sua missão constitucional e legal de atendimento inicial dos adolescentes apreendidos para apuração de ato infracional. A confecção do relatório interprofissional desses menores talvez seja sua maior incumbência na fase judicial cognitiva. Tanto que a ausência deste estudo especializado fulminará sempre de nulidade a ação socioeducativa.

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