Neutralidade inexistente

Quando o juiz se torna investigador e acusador ficamos sem ter quem nos julgue

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11 de maio de 2015, 11h38

[Artigo originalmente publicado no jornal Folha de S.Paulo desta segunda-feira (11/5) com o título Meu reino por um juiz]

Nas monarquias, dar juízes que resolvessem os conflitos entre as pessoas ou entre as pessoas e o Estado era mero favor do soberano, "mercê", como se dizia na época. Com o surgimento da república, virou direito sagrado dos cidadãos.

Mas quem é o juiz? É a pessoa habilitada, sem qualquer envolvimento ou interesse na controvérsia que lhe é apresentada, apto a resolvê-la. Como ensina o jurista e ex-ministro do Supremo Eros Grau, "os três cânones primordiais da ética judicial são a neutralidade a independência e a imparcialidade".

Há mais de 20 anos no jornal Folha de S.Paulo, a venerável professora Ada Pellegrini Grinover provocava a questão com o artigo Quem são esses juízes? (Cotidiano, seção Data Venia, 22/1/1995) e, num texto acessível ao público leigo, respondia.

Ela explicava que os então famosos juízes italianos Giovanni Falcone, Paolo Borsellino e Antonio Di Pietro não eram juízes, mas integrantes do Ministério Público.

Na Itália, a Promotoria e magistratura são a mesma carreira, por absurdo que isso seja, e todos usam o título de "juiz", ainda que seja acusador. Eles se dizem "juízes requerentes" e "juízes decidentes". Juiz de verdade nunca requer, quem o faz são promotores e advogados. Juiz requisita, manda.

"Por isso, não deve ser motivo de estranheza que os 'juízes' italianos pareçam se exceder no exercício de suas funções. Trata-se de inquisidores, trata-se de acusadores, perfeitamente situados no cargo que ocupam", escreveu a professora.

A mestra desde então advertia que nossa literatura vê, nesses promotores que usam o título de "juiz" o "magistrado emblemático, modelo para o juiz brasileiro".

Na revista Veja da última semana, o excelente jornalista André Petry informa que o juiz Sergio Moro tem um tripé constituído por prisão, delação e divulgação. (Aliás, depois disso, negar que as prisões são feitas para arrancar delações é tapar o sol com peneira.)

O texto da revista diz ainda que a delação seria vista pelo magistrado como "a única forma de chegar aos mandantes de uma organização criminosa", como se fosse missão dele chegar a algo que não fosse a justiça do caso concreto!

A pergunta que devemos nos fazer é esta: que imparcialidade, que neutralidade podem ter esses juízes que comandam operações, participam de investigações, prendem antes do julgamento não porque a liberdade do investigado represente risco à sociedade ou ao processo, mas "para marcar a 'seriedade do crime' e mostrar [a quem?] que até 'em sistemas judiciais morosos' a Justiça pode funcionar"?

Ora, se já de saída se afirma que o crime é sério e prender demonstra que a Justiça funciona, que espaço resta para o julgamento? Nenhum. O investigado já sai condenado, como na inquisição (que se dizia santa), em que a pessoa era julgada por seu acusador.

O combate ao crime é típica atividade do Executivo, por meio da polícia e do Ministério Público, que é seu braço independente e autônomo. Essa atividade invariavelmente vai colidir com direitos individuais. É preciso alguém não envolvido para dizer ao investigado que a lei o obriga a submeter-se a isso, ou ao Estado que sua atuação está sendo abusiva. Tampouco se abre mão da necessidade dessa neutralidade e imparcialidade na hora da apreciação final da prova coletada.

E quando os juízes se tornam investigadores e acusadores, ficamos sem ter quem nos julgue, o que é gravíssimo. Voltando a citar Ada Grinover, "não se confunda a atuação eficiente do Ministério Público italiano com o efetivo e atento controle jurisdicional, a ser exercido por um juiz imparcial. Este, afinal, não está comprometido com a luta contra o crime: está comprometido exclusivamente com a justiça".

Por isso, se um reino eu tivesse, eu prontamente e de bom grado o trocaria por um juiz que fosse neutro, independente e imparcial.

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