Análise Constitucional

O legado Bork e o papel do Senado nas indicações para a Suprema Corte

Autor

  • Carlos Bastide Horbach

    é advogado em Brasília professor doutor de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da USP e professor do programa de mestrado e doutorado em Direito do UniCEUB.

10 de maio de 2015, 8h01

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Robert Heron Bork (1927-2012) foi um importante jurista norte-americano da segunda metade do século XX. Professor em Yale, referência no direito concorrencial, Solicitor General na administração de Richard Nixon – obtendo importantes vitórias na Suprema Corte –, juiz da Corte Federal de Apelação para o Distrito de Columbia e um dos principais e pioneiros teóricos do originalismo, corrente que hoje influencia marcantemente a interpretação constitucional nos Estados Unidos. Nas palavras de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, nesta ConJur, Bork “é um dos mais importantes nomes do conservadorismo jurídico norte-americano”.[1]

Entretanto, apesar desses predicados, a imagem que o nome “Bork” evoca à mente do americano médio não é a do acadêmico inovador, nem a do advogado de sucesso e muito menos a do magistrado imparcial. Robert Bork foi reduzido para a posteridade à figura do extremista, como sintetizado num famoso discurso do senador Edward Kennedy, que representou o início da longa batalha[2] desencadeada pela indicação do jurista para a Suprema Corte americana, em 1o de julho de 1987, pelo presidente Ronald Reagan.

Segundo Ted Kennedy, “a América de Robert Bork é uma terra em que as mulheres seriam forçadas a abortos em becos, negros sentariam em refeitórios segregados, uma polícia selvagem poderia arrombar as portas dos cidadãos em batidas à meia-noite, as crianças nas escolas não poderiam ser ensinadas sobre a teoria da evolução, escritores e artistas poderiam ser censurados ao capricho do Governo e as portas dos tribunais federais seriam fechadas nos dedos de milhões de cidadãos para quem o Judiciário é – e geralmente é o único – protetor dos direitos individuais que estão no coração da nossa democracia”.[3]

Essas palavras foram o estopim de uma grande campanha do Partido Democrata e de diversos grupos de interesses da sociedade americana contra a indicação de Bork, que mais e mais passou a ser retratado a partir de simplificações – não raro grosseiras – de suas posições acadêmicas e de suas decisões judiciais.

Na televisão, um anúncio narrado por Gregory Peck conclamava a população a exigir dos seus senadores que votassem contra a indicação de Bork. Segundo o ator, Bork queria ter a última palavra sobre os direitos dos cidadãos, mas o Senado tinha a última palavra sobre Bork, o que poderia evitar que um extremista chegasse à Suprema Corte. Nas palavras de Peck, a ameaça era iminente e preocupante: “se Robert Bork conseguir um assento na Suprema Corte, isso será para toda a vida, a vida dele e a sua”.[4]

O clima de confronto iniciado pelo discurso de Kennedy e insuflado pela campanha na mídia projetou-se ainda para a sabatina de Bork perante o Comitê Judiciário do Senado americano, que – após 12 dias de intensos questionamentos[5] – recomendou, por uma votação de nove votos a cinco, a rejeição da indicação, o que foi acatado pela maioria dos senadores: em 23 de outubro de 1987, 58 votos rejeitaram a indicação, contra 42 que a chancelavam.

Para muitos, o processo decorrente da indicação de Bork alterou significativamente o modo como o Senado americano avalia os candidatos à Suprema Corte. Segundo a Constituição da Filadélfia, na seção dois de seu artigo segundo, o presidente dos Estados Unidos nomeia os juízes da Suprema Corte com o “conselho e consentimento” (advice and consent) do Senado.

Os contornos concretos dessa competência para aconselhar e aprovar os indicados do Presidente, contudo, não são definidos na Constituição, nem foram – ao longo de seus anos de vigência – objeto de qualquer deliberação da Suprema Corte, de modo que dependem exclusivamente da prática parlamentar. Em outras palavras, é o próprio Senado que define o modo pelo qual avalia, dentro dos amplos parâmetros da cláusula advice and consent, os indicados para a instância máxima do Judiciário norte-americano.

Na análise das indicações para a Suprema Corte, o Senado acabou definindo um critério de “aptidão judicial” (judicial fitness), que tradicionalmente compreende a verificação da competência intelectual do candidato e a investigação de seu perfil ético, tanto em aspectos pessoais quanto profissionais.[6] Em síntese, a chamada “aptidão judicial” se traduz, para utilizar palavras mais próximas ao constitucionalismo brasileiro, em notável saber jurídico e reputação ilibada.

No caso de Bork, não se teve questionamento algum relacionado com sua judicial fitness, nenhum senador colocou em xeque suas qualidades de jurista ou os padrões éticos que orientavam sua vida pessoal ou profissional. Na verdade, a sabatina de Bork incluiu um novo critério a ser avaliado nas indicações para a Suprema Corte: a filosofia judicial do candidato, ou seja, sua compreensão acerca da posição institucional do Poder Judiciário, seus métodos de interpretação da Constituição, suas crenças acerca das garantias expressas nos direitos fundamentais e sua opinião sobre as questões controvertidas que povoam as pautas dos tribunais.

Depois da rejeição de Robert Bork, muitos estudos foram publicados indicando que seu processo de avaliação pelo Senado representou um marco na redefinição da cláusula advise and consent, abrindo uma verdadeira “caixa de Pandora” das nomeações para a Suprema Corte.

Após Bork, as indicações passaram a não mais ser avaliadas simplesmente a partir da competência ou do caráter dos candidatos, mas sim com base num “escrutínio estrito relativo a suas respectivas filosofias judiciais. E se, tal como Bork, os candidatos escreveram extensiva e provocativamente, o peso de sua própria formação acadêmica será provavelmente muito grande para suportarem” perante o Senado.[7]

A ênfase dada à filosofia judicial durante a sabatina de Bork foi destacada pelo próprio presidente do Comitê Judiciário, o então senador Joe Biden, para quem “ao analisar essa indicação para a Suprema Corte, nós devemos também analisar se sua filosofia particular é apropriada ou não”. E apropriada segundo que parâmetro? Certamente o parâmetro da maioria política com assento no Senado.

Desse modo, a indicação de Bork foi rejeitada por força de suas teses jurídicas e não por qualquer dúvida quanto a sua competência ou seu caráter. Teses jurídicas essas que, apresentadas caricatamente, prejudicaram o candidato do ponto de vista político, inviabilizando sua aprovação para a Corte.

Tanto é assim que a definição que o dicionário Oxford dá para o verbo “to bork” é “obstruir (alguém, especialmente um candidato a cargo público) por meio de sistemática difamação ou aviltamento”[8], em dinâmica que gradualmente  cria o ambiente político propício para a rejeição do candidato. A ênfase do processo deixa de estar na ética, na competência e na integridade e é reforçada a atenção na política, na filosofia e na ideologia.[9]

Nas palavras de Jan Crawford Greenburg, em seu livro sobre a estratégia conservadora para conquistar uma maioria na Suprema Corte, “a batalha por Robert Bork redefiniu e reconfigurou o processo de confirmação no Senado e influenciou as decisões de futuros presidentes e a preparação de futuros indicados. Ela galvanizou grupos de interesse da sociedade, que desde então transformaram as batalhas em torno das indicações judiciais em oportunidades para captação de recursos”[10] para suas bandeiras políticas.

Disso decorrem duas consequências evidentes: a politização ou partidarização de uma competência originariamente exercida em padrões técnicos e – como decorrência necessária da primeira consequência – a impossibilidade de os presidentes indicarem para a Suprema Corte candidatos por demais alinhados a suas concepções ideológicas, preferindo nomes moderados que não despertem no Senado a mesma reação que se teve ao nome de Bork.

Exemplos dessa tendência são muitos. Logo depois da derrota com Bork e da retirada da indicação de Douglas Ginsburg, por ter feito uso de maconha nos anos 1970, Reagan nomeou Anthony Kennedy, um juiz moderado, com reduzida produção acadêmica, que obteve aprovação unânime do Senado americano. Kennedy revelou-se uma decepção para os ideólogos da revolução conservadora de Reagan, sendo um voto fundamental, por exemplo, para a manutenção do direito ao aborto e para o reconhecimento de direitos de homossexuais.

Mais recentemente, em 2005, com a morte de William Rehnquist, George W. Bush teve a oportunidade de nomear um novo chief justice para os Estados Unidos e sua escolha recaiu sobre um nome com explícitas credenciais conservadoras, John G. Roberts. O candidato, porém, apresentou-se ao Senado como um moderado e, no exercício da função, seu voto tem sido fundamental para a adoção de posições liberais pela Corte, como no caso do chamado Obamacare. E especula-se, pelo tom de suas perguntas no último dia 28 de abril, que Roberts votará a favor do reconhecimento do direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo.[11]

Por outro lado, a postura do Senado na fase “pós-Bork”, apesar de sofrer várias críticas, não é algo prejudicial para o sistema de freios e contrapesos que orienta a separação de poderes.

Isso por que, ainda que nos Estados Unidos a Suprema Corte tenha afirmado para si um papel de protagonista na vida político-institucional, sendo um agente constante de alteração do sentido do texto constitucional, os demais poderes continuavam a tratá-la como se fosse um terceiro excluído, ou seja, um órgão que – ao contrário do Congresso e da Presidência – não se colocava no mesmo patamar de disputa de poder, que não era considerado na equação que determina a correlação de forças a orientar o processo político. Afinal, nas célebres palavras de Hamilton no número 78 do Federalista, o Judiciário seria o menos perigoso dos poderes.[12]

Isso gerava um deficit no exercício das prerrogativas que o constitucionalismo americano confere ao Legislativo para a concertação com o Judiciário, em especial com a Suprema Corte, notadamente pela elementar competência que o Congresso tem sobre a composição do tribunal.

Somente a incompreensão – para dizer o mínimo – acerca da função que desempenha a Suprema Corte no campo da definição dos traços concretos das relações de poder nos Estados Unidos explicava o modo anêmico com que o Senado desempenhava sua função constitucional de advise and consent sobre as escolhas dos novos juízes, transformando as sabatinas em meras formalidades laudatórias de candidatos indicados pelo presidente.[13]

Se há, no Congresso, uma discussão real sobre – por exemplo – o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo e se existem forças suficientemente fortes no Legislativo que amparam diferentes tesessobre tal reconhecimento, como aprovar candidatos sem que se saiba quais são suas posições sobre a matéria? Sem que se avalie o histórico do candidato? A aprovação automática e impensada de candidatos à Suprema Corte constituía erro crasso do Legislativo, no processo de preservação de suas próprias competência, de suas próprias prerrogativas.

Assim, a chamada partidarização do processo de escolha dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, tão criticada nos últimos anos, é um meio eficaz – e até desejado – de manter o tribunal dentro de certos parâmetros, afastando-o de extremismos, ainda que não estejam eles totalmente afastados da realidade americana. Essa partidarização, ao contrário de desvalorizar o papel do tribunal, coloca tal instituição no seu devido patamar, trazendo seus membros, de modo mais transparente – e, portanto, mais sindicável – para o campo da política real, da qual efetivamente participam, mas sem os disfarces tradicionais.

E essa mudança de dinâmica no processo de confirmação dos indicados, que valoriza o Senado e coloca às claras a importância institucional da Suprema Corte – e de seus membros, por consequência –, é certamente o mais importante legado de Bork.

 


[2] “A batalha partidária sobre Bork durou três meses e meio”, conforme John A. Jenkins, The partisan: thelifeof William Rehnquist, New York: PublicAffairs, 2012, p. 232.

[3] “Robert Bork's America is a land in which women would be forced into back-alley abortions, blacks would sit at segregated lunch counters, rogue police could break down citizens' doors in midnight raids, schoolchildren could not be taught about evolution, writers and artists could be censored at the whim of the Government, and the doors of the Federal courts would be shut on the fingers of millions of citizens for whom the judiciary is—and is often the only—protector of the individual rights that are the heart of our democracy … President Reagan is still our president. But he should not be able to reach out from the muck of Irangate, reach into the muck of Watergate and impose his reactionary vision of the Constitution on the Supreme Court and the next generation of Americans. No justice would be better than this injustice”.
O trecho mais conhecido do discurso pode ser visto em:
https://www.youtube.com/watch?v=oNaasFvvFlE

[4] O anúncio pode ser visto em: https://www.youtube.com/watch?vt=NpFe10lkF3Y

[5] Nos 12 dias em que a indicação de Bork foi discutida no Comitê Judiciário, além das respostas do indicado aos senadores, houve ainda diversas manifestações contrárias e a favor do candidato, como as apresentadas pelos Professores Laurence Tribe e CassSunstein, pelo ex-Presidente Gerald Ford e pelo chief justice aposentado Warren Burger. A Biblioteca do Congresso norte-americano disponibiliza em seu site a transcrição de todas as discussões acerca das indicações dos Presidentes para a Suprema Corte, onde se pode verificar a extensão e a profundidade das discussões travadas durante a sabatina de Robert Bork: http://www.loc.gov/law/find/court-withdrawn.php#bork

[6] Madeline Morris. “The grammarof advise and consent: SenateconfirmationofSupremeCourtnominees”. Drake Law Review, v. 38, 1988-1989, p. 867.

[7] Frank Guliuzza III; Daniel J. Reagan; e David M. Barrett. “Character, competency, and constitutionalism: didthe Bork nominationrepresent a fundamental shift in confirmationcriteria?” Marquette Law Review, v. 75, n. 2, 1992, p. 423.

[8]“bork (v) [WITH OBJECT] US informal Obstruct (someone, especially a candidate for public office) by systematicallydefaming or vilifying them: ‘We’re going to bork him’, warned a feminist (as nounborking) is fear of borkingscaringpeople from public office?’”.

[9] Lee Epstein; René Lindstädt; Jeffrey A. Segal; e ChadWesterland. “The Changing Dynamics of Senate Votingon Supreme Court Nominees”. JournalofPolitics, v. 68, 2006, p. 296.

[10] Jan Crawford Greenburg. Supreme Conflict. The inside story of the struggle for control of the United States Supreme Court, New York: Penguin, 2007, p. 52.

[11] Joseph Landau. “Why Chief Justice John Roberts might support gay marriage”. The New York Times, edição de 28 de abril de 2015, disponível em: http://www.nytimes.com/2015/04/28/opinion/why-chief-justice-john-roberts-might-support-gay-marriage.html?_r=0

[12]“Whoever attentively considers the different departments of power must perceive, that, in a government in which they are separated from each other, the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution; because it will be least in a capacity to annoy or injure them”.

[13] Em 1962, indicado por John Kennedy, Byron White foi questionado pelo Comitê Judiciário do Senado ao longo de somente 11 minutos, sendo posteriormente aprovado pelo Senado, como destaca Andrew Cohen. “The sadlegacyof Robert Bork”. The Atlantic, edição de 19 de dezembro de 2012, disponível em: http://www.theatlantic.com/politics/archive/2012/12/the-sad-legacy-of-robert-bork/266456/

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