Senso Incomum

Cada um pediu uma república só sua; e o advogado, só um cafezinho! Feliz!

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7 de maio de 2015, 8h00

Spacca
caricatura lenio luis streck 02 [Spacca]Em seu ensaio Raízes do Brasil, escrito na década de 1930, Sérgio Buarque de Holanda faz uma leitura original da tragédia Antígona, de Sófocles, apresentando Creonte como defensor dos interesses da comunidade política em oposição aos interesses familiares de Antígona. Nesse sentido, os dois personagens principais da tragédia apresentaram conceitos opostos de nomos (norma, lei). Enquanto Antígona sobrepôs o interesse familiar às leis da polis, Creonte evocou os valores públicos da comunidade política em oposição aos interesses privatistas e afirmou que, se qualquer um tiver mais consideração por um de seus amigos que pela pátria, esse homem eu desprezarei. Assim, para o autor de Raízes do Brasil, Creonte encarna a noção abstrata, impessoal da polis. Ou seja, Creonte nos ensina a importância do fortalecimento das instituições públicas para a formação e preservação de um regime democrático, com um Estado despersonalizado. Digamos assim: fosse juiz, Creonte decidiria por princípio e não seria ativista.

Concordo com essa leitura não ortodoxa de Holanda. Eu mesmo — confesso  fazia a leitura mais “fofinha” de Antígona. Penso que ela era panprincipilogista. Boas razões pessoais-subjetivas; entretanto, sem boas razões públicas.  Por que penso assim? Talvez a realidade de terrae brasilis tenha me jogado nos braços da tese creontina. Depois de tanta falcatrua, de tanto corporativismo, de tantas demonstrações de poder dos estamentos “d’arepública”[1], penso que temos de reler a tragédia grega, examinando melhor as posições pessoais-individuais de Antígona e as posições republicanas de Creonte, que visava a preservar o direito da polis. O que diria Creonte do empréstimo do BB à socialite paulista que comprou um Porsche em nome da empresa dela? Segundo consta, o Banco do Brasil (será mesmo?) se nega a comentar o fato… Ah, a polis. Essa polis (que é nome de uma empresa do marqueteiro J.Santana, que “internou” há pouco alguns milhões de Angola). Tantos segredos de… poli(s)chinelo!

Sigo. Assim devemos examinar a relação público-privado (contratos sempre com um plus corruptivo, obras mal feitas, práticas estrativistas-sugando-a-viúva, etc). Mas também devemos olhar, desse modo, a partir dos comportamentos de Antígona e Creonte, o nosso ativismo judicial que tomou conta de nossa terra e de nossa gente. Explico. Estamos criando cidadãos de segunda classe, que não mais reivindicam seus direitos no plano da cotidianidade das práticas civis, transferindo tudo para o judiciário. Cachorro latiu? Façamos um BO. TV a cabo nos cobra um ponto a mais? Em vez de acamparmos na frente da Sky-Net ou tomarmos medidas de desobediência civil ou até mesmo buscar o Procon, corremos até a Defensoria Pública. As crianças de uma escola do interior estão sem transporte? Simples. Em vez de votarmos melhor ou pressionamos o vereador ou o prefeito, corremos ao Ministério Público, que proporá uma ação judicial pedindo liminar. Por vezes, MP e DP disputarão essa primazia ativizante. E assim por diante. Colonizamos o mundo da vida, como tenho dito em parafraseio de Habermas.

Como há coisas que só tem aqui em terrae jabuticabae. Aqui as corporações podem ingressar com ADI e ADPF. Vivemos uma espécie de neomedioevo. E, aos poucos, as instituições também se transformam em corporações. É uma fagocitose proto-institucional. Todas têm ou querem ter autonomia funcional e financeira. Accountability? Para quê, se todos são independentes? O Estado é meu pastor…! Independência equivale à… soberania. É como as Universidades, que pensam que possuem território soberano. Em breve o chefe do Executivo terá que nomear embaixador junto ao Judiciário, ao MP, à DP, a Polícia Federal, ao Tribunal de Contas… Afinal, são outros “estados-dentro-do-estado”.

Isso explica porque falta Creonte em Pindorama. Assim como falta Sócrates, que resiste às tentações de Críton para fugir. Diz Sócrates: não posso fugir. Não posso desrespeitar as leis da polis. Mesmo que isso me custe a vida. Nessa sanha ativista e judicialista, pensa-se que resolvendo um problema ad hoc se estará fazendo justiça. Para quem, pergunto? A cada decisão, o juiz deveria perguntar: “— Trata-se de um direito fundamental? Está em risco extremo”? Se sim, então vem uma segunda pergunta: “ Posso universalizar a conduta”? Não? Então começou a complicar…

Não vou falar, aqui, do conceito de decisão e de que como se pode (deve) construí-la. O capitulo sexto do meu Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica vai a fundo nessa questão. Apenas quero dizer que, se continuarmos a pensar em resolver problemas ad hoc (pensarmos somente no nosso umbigo), fragilizaremos (mais ainda) o direito da polis. O juiz pode até achar justo que uma criança deva ter dois pais afetivos ao lado do pai natural. Ou duas ou três mães. Mas, quais os efeitos colaterais dessa decisão? Nas Universidades públicas, se João não gosta de seu nome, pode exigir ser chamado de Joana ou Julião. Em nome de quê? Ainda: O juiz pode até achar que a amante-concubina-adulterina merece a metade da herança… E pode até pensar que é justo que se conceda prorrogação no prazo de auxilio maternidade para determinada mãe. Mas, por favor, por que ele não se pergunta: “ Posso estender esse direito a todas as mães em igual situação”? Não? “ Céus. Então não posso conceder para essa”. Além disso, em todas as decisões, deveria o juiz perguntar (e o Promotor e o Defensor idem): “ Posso transferir recursos das pessoas que estão em situação idêntica e das demais  para fazer a felicidade de uma em particular ou de um pequeno grupo”? “— Em nome da liberdade, posso conspurcar a igualdade”? “ Se alguém quer dormir no sábado a tarde por questões de crença, posso interromper as atividades do bairro para trazer tranquilidade para aqueles”? “ Se no carnaval, um grupo de pessoas quer receber gratuitamente KY, a pergunta que deve ser feita é: “ Os outros pindoramenses que não vão ao carnaval devem pagar a conta”? “ Eles não tem, por igualdade de tratamento, direito ao recebimento do creme benfazejo”?[2]  Antígona versus Creonte…

Por isso, por mais antipático que fosse (ou que seja), pelo menos no Brasil precisamos de Creonte. Porque por aqui predomina o querer individual em um misto com o desejo estamental, mistura perfeita advinda de nosso patrimonialismo. E isso faz com que maldizemos o público, a política e, com isso, colocamos a lume nosso preconceito contra a malta-que-sustenta-tudo-isso. O povo é inculto, dirão os estamentários e os corporativos. “ Somos melhores que a malta”. Desenvolvemos uma sociedade de indivíduos (não divididos) e não de cidadãos. Somos Selbstsüchtigers (viciados em nós mesmos).

É nesse contexto de releitura dessa tragédia grega que devemos ver a manifestação do juiz federal Antonio Bochenek, defendendo o colega juiz de Juazeiro do Norte.  Em vez de fazer uma reflexão sobre os limites da atuação judicial, faz uma defesa sem fronteiras do seu colega. Para lembrar: Martonio Barreto Lima e eu escrevemos artigo criticando o juiz de Juazeiro do Norte. A nota da Ajufe (ler aqui), assinada pelo candidato a Presidente da Ajufe, Antonio Bochenek — o mesmo que há dias, junto com o juiz Sérgio Moro, escreveu artigo dizendo que o problema da impunidade era “o processo” (que lhe rendeu severas críticas, inclusive de seus colegas) , diz que promovemos a "desinformação", vez que o Secretário da Saúde de Juazeiro do Norte não teria sido afastado do cargo. Só que, na visão estrita do fenômeno, o Secretário perdeu o comando da Secretaria mesmo. De verdade. Logo… Bem, não importa os termos utilizados: os fatos são mais importantes. E fatos existem, pois não? Vejamos: Chamamos a atenção dos leitores para dois trechos da decisão. O juiz Federal determinou, "como condição de validade" de sua decisão, a participação da auditora nomeada por ele para qualquer ato de ordenação despesa, além de impor que as contas da Sec. de Saúde somente sejam movimentadas com a assinatura da auditora. Bingo! Cadê a autoridade do Secretário? Foi “afastado” ou não?

Por fim, por uma canetada, Sua Excelência “interveio”[3] em Universidade Pública, ao retirar a docente de todas suas atribuições acadêmicas, com prosaica comunicação ao Reitor da Universidade Federal do Vale do São Francisco, que terá que resolver a substituição da docente da noite para o dia.

Ora, Martonio e eu queríamos apenas chamar a atenção para uma coisa maior: a República, a Constituição e seus limites. Por exemplo, queríamos que o doutor Bochenek discutisse se a decisão do juiz de Juazeiro pode(ria) ser universalizada, isto é, se a cada má gestão de algum prefeito, aí estaria o Poder Judiciário para resolver? Vamos fazer intervenção “implícita” (“branca” — ups) em todos os municípios mal administrados? E quem dirá isso? O Ministério Público? E a população? Serve para quê? Ah: a Petrobras, nessa linha, não merec(er)ia uma intervenção desse jaez (por exemplo, descobriram agora que as gravações das reuniões foram apagadas)? E em face das pessoas tomarem soro em pé, há algum plano do MP e do PJ para intervenção no Ministério da Saúde? Já poderíamos formar um exército de professores de universidades públicas prontos para — uma vez requisitados pelos juízes  assumirem o Ministério, as prefeituras e a Petrobras?

Numa palavra: Esse debate é feito por mim há vários anos. Decisões nem são tão importantes. O mais relevante é o seu aspecto simbólico e o o que isto representa no plano da democracia. E de sua fragilização.  Por isso, também precisamos reler a tragédia de Antígona. Nem tudo que parece, é. Principalmente em países periféricos, de modernidade tardia, em que estamentos e corporações tomam conta, dia a dia, da administração do (que resta) do Estado.

Por isso, insisto na melancolia da qual falei aqui há alguns. Pindorama está melancólico, no sentido ruim da palavra. Não de serenidade. Ao contrário, melancolia no sentido de deixamento, abandonar-se.[4]

Uma anedota para aliviar a tensão e que tem a ver-com-tudo-isso
Depois de um almoço pago pelas associações de classe de cada comensal (menos de um, como verão), saem do restaurante um magistrado, um membro do MP, um Defensor Público, um Delegado Federal, um conselheiro de TC, um procurador Federal e… um advogado. Eis que, de um chute em uma garrafa, exsurge um gênio, que concede um desejo para cada um. O juiz, é claro, foi o primeiro a pedir: “— Quero uma república só de juízes”. Instantaneamente, foi atendido. O membro do MP pediu uma república só de promotores e procuradores e assim por diante, até chegar a vez do advogado público, que pediu uma república… só de advogados públicos dos mais variados. E o advogado privado  ficou ali, solito, com seu terno surradinho (ele, que teve que pagar o seu próprio almoço). E o gênio lhe perguntou: “— Então, doutor, o que vai pedir?” E o causídico respondeu: “— Não quero nada. Apenas um cafezinho”.[5]


[1] O estagiário levanta a placa para dizer: arepublica tudo junto quer dizer não só “da República”, mas, fundamentalmente, d’a-republica (no sentido de ausência de República).

[2] Havia uma máxima na Alemanha, naqueles tempos, que diz: é direito tudo aquilo que beneficia o povo… Pois é. Leiam o livro Furschtbare Juristen (Os juristas do horror), de Ingo Müller. Ele explica como as consequências sempre vem depois…

[3] Lá vem outra nota do Dr. Bochenek dizendo que não houve intervenção da Universidade. OK; não é necessário! Rendo-me antecipadamente: não foi intervenção; o juiz apenas requisitou a professora sem consultar o Reitor! – está bem assim?

[4] Aliás, Pindorama está se transformando em uma várzea. Aqui uma associação civil – espécie de ONG – dá ordens para todos, sem marco regulatório. Qual é o fundamento de validade das Normas (sic) da ABNT? Sim, falo da ABNT (que todos os alunos temem nas bancas de monografia, mestrado e doutorado), que, sem fins lucrativos (é o que consta no Google), obriga a todos trocarem de tomadas elétricas uma vez a cada seis meses (eu gostaria de colocar uma fabrica de tomadas e plugues!), exigindo pinos triplos, depois mais grossos, notas de rodapé nos textos, número de paginas, novo tipo de lâmpadas, tipos de fiação … e a malta toda obedece. Interessante: normas técnicas, ciência, tecnologia. Queria conhecer a expertise dos diretores. Mas nenhum dos procers da ABNT possui curriculum lates (que, ao que parece, deve seguir as “normas” – sic-  da ABNT). Escreverei sobre isso na próxima coluna. Sintomas. Muitos sintomas.

[5] O estagiário levanta a placa: “a piada é autoexplicativa. Em 30 segundos ele se autodestruirá”!

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