Direito tributário

Dividendos brasileiros deveriam ser tributados como na Austrália

Autor

  • Marcos de Aguiar Villas-Bôas

    é advogado conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.

4 de maio de 2015, 6h43

Dentre os temas tributários que, segundo a imprensa, têm sido estudados pelo governo federal está a tributação dos dividendos pagos por pessoas jurídicas. Para incrementar a discussão, o Projeto de Lei 7.274 foi apresentado no final do ano passado por dois deputados do PT e tem gerado grande repercussão no mercado.

Como acontece com todo assunto controverso da Optimal Taxation Theory, há, em torno da tributação dos dividendos, diferentes modelos teóricos e práticos ao redor do mundo, os quais precisam ser conhecidos e utilizados como base para as tomadas de decisão aqui no país, fazendo-se, então, as devidas adaptações à nossa realidade.

O Brasil segue um modelo de tributação dos dividendos não replicado em nenhum dos países mais desenvolvidos do mundo. Os dividendos são simplesmente isentos do Imposto sobre a Renda pelo artigo 10 da Lei 9.249/1995. Uma tendência crescente nos países mais desenvolvidos é tributar os dividendos e conceder uma espécie de crédito tributário relativo ao imposto já pago pela pessoa jurídica sobre o seu lucro.

A tributação dos dividendos é um assunto muito relevante na Optimal Taxation Theory não somente pela sua importância concreta para a economia, mas também pelo campo teórico que oferece para o estudo do balanceamento entre eficiência e equidade. Ela recai, claramente, sobre indivíduos da sociedade com maior riqueza, sendo um ótimo meio de redistribuição. Por outro lado, está associada a algumas questões de eficiência econômica, como à quantidade de investimentos e, consequentemente, ao nível de produção.

A cobrança de imposto sobre os dividendos reduz o retorno líquido dos investidores, potencialmente diminuindo o estoque de capital na economia. Do lado da empresa, a tendência é que, para reduzir a carga dos investidores, ela retenha lucros e os distribua menos, havendo alterações talvez indesejadas nas formas de alocação do capital[1]. Do outro lado, a não tributação dos dividendos, erro cometido pelo Brasil, gera diferenciação de tributação entre sócios de empresas e trabalhadores.  

Devido a essa enorme complexidade, típica da tributação, qualquer decisão em relação aos dividendos deve ser cautelosa e tende a requerer associação com outras medidas. Por exemplo, se vamos optar por tributar os dividendos em alguma proporção, atitudes devem ser tomadas paralelamente para evitar que os investimentos sejam diminuídos, como a redução da tributação indireta, sobretudo no nosso país!

Muitos no Brasil são a favor da tributação dos dividendos segundo a tabela progressiva do IRPF, pois alegam que o modelo atual seria injusto com os trabalhadores, que têm a sua remuneração tributada, enquanto que os sócios de empresas, quase sempre indivíduos de classe média ou alta, não seriam. O argumento procede em parte.

Como normalmente acontece, o tema não está sendo examinado em toda a sua complexidade. Para uma análise complexa de tributações pelo IR, é preciso conjugar o imposto incidente sobre a pessoa jurídica (IRPJ) com aquele incidente sobre a pessoa física (IRPF) e com o próprio IRPJ, ou seja, temos que considerar o múltiplo inter-relacionamento existente entre pessoas jurídicas. No tocante aos dividendos, como é óbvio, uma empresa também pode ser beneficiada pelo seu pagamento.

Se o Projeto de Lei 7274/2014 fosse aprovado com a sua redação original, ele poderia provocar a tributação dos dividendos recebidos por pessoas jurídicas sob uma alíquota de 34%, quando a pessoa jurídica pagadora dos dividendos já teria sido talvez tributada a 34%, representando uma tributação total de 68%. Provavelmente, as repercussões socioeconômicas do projeto não foram avaliadas amplamente e a fundo, apesar de a sua intenção e a sua motivação serem, em geral, muito boas, vez que voltadas para uma melhor distribuição da renda. Ele demonstra, por exemplo, via análises econômicas realizadas pelo IPEA, que a tributação no Brasil é regressiva, ou seja, a carga tributária que recai sobre a renda das pessoas mais ricas é menor do que aquela que recai sobre as mais pobres.

Ainda que, do ponto de vista legal, a empresa e os seus sócios sejam pessoas distintas; do ponto de vista econômico, a pessoa jurídica que realiza uma atividade econômica deve ser compreendida como uma comunhão de pessoas que se juntaram para a realização desse fim econômico e com o objetivo principal de gerar lucros. Pessoas jurídicas e / ou físicas juntam capital e / ou trabalho para poderem desenvolver uma atividade econômica, gerar lucros e distribuí-los a si próprios, e talvez a investidores, por meio do pagamento de dividendos.

É pacífico na Optimal Taxation Theory que a tributação da pessoa jurídica já é, indiretamente, uma tributação do sócio. Devido a esse fato, vários dentre os países mais desenvolvidos do mundo vieram procurando, nos últimos anos, uma forma de evitar a bitributação, mas, ao mesmo tempo, de impedir que o sócio de uma pessoa jurídica recebesse um tratamento beneficiado em relação às demais pessoas. É com essa visão aparentemente contraditória que o assunto precisa ser atacado.

Por não haver incidência do IR sobre os dividendos no Brasil, as empresas tendem a pagar pró-labores baixíssimos aos sócios que têm um cargo, concentrando toda a retribuição deles no pagamento de dividendos. Há, também, muitos casos, inclusive na advocacia, de pessoas que são tornadas sócias apenas para receberem remunerações por meio de distribuição de dividendos, quando têm, na verdade, uma relação empregatícia. Podem ocorrer inúmeras situações, ainda, em que a empresa tem um lucro razoável, mas, por aproveitamento de prejuízos de períodos anteriores ou incentivos fiscais, termina pagando pouco ou nenhum imposto de renda, enquanto que o beneficiado pelos dividendos também não será tributado.

O problema do Projeto de Lei 7.274/2014 é propor a extinção da isenção sem a criação de uma sistemática que possibilite uma compensação entre o tributo pago pela pessoa jurídica distribuidora dos dividendos e o tributo que deverá ser pago pela pessoa beneficiada. No caso de empresas tributadas à alíquota de 34% e sem grandes diferenças entre o lucro líquido e o lucro real, a não tributação dos dividendos não causa favorecimento aos beneficiados quando eles são pessoas físicas. Como a tributação da pessoa jurídica é maior do que a da pessoa física[2], o que não acontece em praticamente nenhum dos países mais desenvolvidos do mundo[3], realmente os dividendos não devem sofrer tributação.

Por outro lado, há casos em que o lucro real é muito menor do que o lucro líquido da empresa, como já mencionado, e há casos em que a empresa é menor e, por estar no lucro presumido ou no Simples Nacional, termina pagando pouco IRPJ em proporção aos valores dos lucros distribuídos aos sócios a título de dividendos. 

Como podem existir inúmeros casos diferentes, a única solução que nos parece, de fato, eficiente para evitar que o recebedor dos dividendos seja beneficiado ou prejudicado em relação aos demais é a tributação normal pela tabela progressiva, mas com a respectiva imputação de um crédito referente ao imposto pago pela pessoa jurídica na proporção dos dividendos pagos ao sócio ou acionista.

Conforme o Projeto de Lei 7.274/2014, quando os dividendos forem distribuídos por pessoas jurídicas com receita bruta até R$ 3.600.000,00, estejam ou não elas no Simples Nacional, a tributação não deveria acontecer. Parece-nos mais um erro do projeto, pois há empresas com receitas não muito grandes, porém com sócios que recebem dividendos consideráveis. Em princípio, o sócio de uma pequena empresa que recebe R$ 50.000,00 em dividendos não deveria ser tributado diferentemente do sócio de uma empresa grande que recebe o mesmo valor.

A preocupação aqui não é necessariamente proteger a pessoa jurídica pagadora dos dividendos, mas evitar que a pessoa recebedora seja prejudicada ou beneficiada com relação aos demais contribuintes. Assim, não vemos porque diferenciar a aplicação da tributação dos dividendos de acordo com a receita bruta da pessoa jurídica pagadora. A sistemática de créditos é muito mais eficiente para dosar a tributação sobre o recebedor dos dividendos, que não deve ser beneficiado apenas por ser sócio de uma empresa menor, quando ele recebe valores altos a título de distribuição de lucros. A tributação da pequena empresa já é beneficiada pela sistemática do Simples Nacional.

O sistema australiano de tomada de créditos (franking credits), que é semelhante ao neozelandês, parece ter sido o primeiro criado no mundo, ainda no ano de 1987, e nos parece ser hoje o mais simples e eficiente. Se aplicarmos uma sistemática semelhante no Brasil, a grosso modo, ela funcionaria assim no caso do lucro real. Se uma empresa lucrou R$ 1.000.000,00 ao final do período e pagou R$ 340.000,00 a título de IRPJ incidente à alíquota de 34%, decidindo distribuir depois R$ 100.000,00 entre os acionistas, o crédito seria obtido por uma imputação do valor pago pela empresa na proporção do valor dos dividendos distribuídos.

Alguém que tem 50% das ações da empresa receberia R$ 50.000,00, nessa distribuição de R$ 100.000,00, e o seu crédito seria de R$ 17.000,00. Se estivermos falando de uma pessoa física que é tributada a 27,5% sobre os R$ 50.000,00 recebidos a título de dividendos, o seu débito inicial seria R$ 13.750,00.

Como se nota a partir desse exemplo, o acionista deveria ter o direito à restituição da diferença do seu crédito de R$ 17.000,00 e o seu débito de R$ 13.750,00, gerando um reembolso (saldo credor) de R$ 3.250,00. Em outras palavras, para haver justiça, alguns investidores deveriam ter restituições do imposto.

Para evitar esse tipo de situação, o Brasil deveria extinguir a CSLL, aumentando o IRPJ a um percentual máximo de 30% e, então, deveria, como defendido em outros textos que publicamos anteriormente, aumentar a tributação pelo IRPF, criando uma ou duas novas faixas para os indivíduos com remunerações bem acima da média nacional. O aumento do IRPF iria compensar a redução da tributação da pessoa jurídica e, também, juntamente com a tributação dos dividendos, permitiria uma redução da nefasta tributação indireta.

Outra situação possível é a seguinte. Se a empresa lucrou, no societário, os mesmos R$ 1.000.000,00, porém, por contar com prejuízos e incentivos fiscais, o seu lucro real foi de apenas R$ 100.000,00, ela irá pagar R$ 34.000,00 a título de IRPJ. Se ela resolve, então, distribuir R$ 200.000,00 e um acionista tem 50% das quotas, ele irá receber R$100.000,00 e deverá pagar R$ 27.500,00 a título de IRPF. Na verdade, não houve pagamento de IRPJ sobre os R$ 200.000,00, mas apenas sobre o valor do lucro real de R$ 100.000,00, então o crédito será concedido apena em 50%, de modo que o acionista terá o mesmo valor de R$ 17.000,00 do outro exemplo. Nesse caso, ele terá que pagar R$ 10.500,00 à Receita Federal, resultado do net entre o crédito e o débito.

Uma sistemática dessa natureza, que considerasse um crédito pelo pagamento de imposto na pessoa jurídica pagadora a ser abatido do débito gerado na pessoa beneficiada, seria interessante para evitar distorções e conferir justiça fiscal. Mesmo os países desenvolvidos cometem falhas na tributação dos dividendos, pois muitos deles não desenharam seus sistemas considerando adequadamente a pessoa pagadora em conjunto com a pessoa recebedora. Nos Estados Unidos, por exemplo, havia tributação normal do lucro da pessoa jurídica e dos dividendos até o ano de 2003. Por causa disso, o presidente Bush sustentou à época que o modelo gerava uma bitributação indesejada.

Em vez de criar uma sistemática mais eficiente e justa como a australiana e a neozelandesa, os Estados Unidos apenas reduziram a alíquota do income tax sobre os dividendos. Deste modo, a tributação continua se dando duas vezes, mas a alíquota aplicável ao beneficiado pelos dividendos é menor do que a normal. É possível que uma empresa americana pague 40% de corporate tax, equivalente ao IRPJ, e depois o beneficiário dos dividendos tenha retido mais 20% sobre o valor deles.  

Se a tributação sobre os dividendos for pesada, as empresas procurarão outros meios de dar retorno aos investidores, como aumentando os ganhos de capital, que, no Brasil, são, assim como nos Estados Unidos, tributados erroneamente sob uma alíquota menor do que a normal: 15%.

A redução da tributação dos dividendos nos Estados Unidos foi uma prova concreta dos efeitos que a Política Tributária causa sobre a economia. Já no ano de 2003, quando houve a redução das alíquotas incidentes sobre os dividendos, empresas começaram a distribuí-los ou aumentaram bastante a sua distribuição[4]. Esse fato comprova que não é adequado olhar unicamente para a questão da redistribuição e tributar os dividendos com uma alíquota cheia, sem sequer conferir um crédito.

Guardadas as diferenças, o modelo americano faz algo parecido com a tentativa de realizar a não-cumulatividade do ICMS sem conferir um crédito ao contribuinte, apenas reduzindo a alíquota incidente nas operações seguintes. A tributação em cascata irá continuar, enquanto que, quando a operação anterior não for tributada normalmente, a operação seguinte sairá excessivamente beneficiada por estar sujeita a uma alíquota menor.

Mesmo o sistema tributário americano revela vários problemas. Desenhar um sistema progressivo e pouco distorcivo é algo extremamente complexo, sendo necessário um amplo e profundo estudo dos modelos ao redor do mundo. Como o sistema brasileiro é extremamente atrasado, há algo, ou muito, que aprendermos com cada um dos países mais desenvolvidos do mundo.

 


[1] CHETTY, Raj; SAEZ, Emmanuel. Dividends tax and corporate behavior: evidence from the 2003 dividends tax cut. Disponível em: <http://eml.berkeley.edu/~saez/chetty-saezQJE05dividends.pdf>. Acesso em: 6. abr. 2015, p. 792.

[2] Estamos sempre considerando o IRPJ somado à CSLL, pois os dois tributos têm praticamente a mesma base de cálculo. A CSLL foi um artifício para aumentar a tributação da renda das pessoas jurídicas sem chamar tanto a atenção da sociedade. A tributação do lucro das empresas é, então, em regra, 34%, enquanto que nos países mais desenvolvidos ela gira em torno de 20 a 30%.  

[3] Vide levantamento da KPMG disponível em: <http://www.kpmg.com/global/en/services/tax/tax-tools-and-resources/pages/corporate-tax-rates-table.aspx>.  Acesso em: 5. abr. 2015.

[4] “First, dividend initiations surged in the quarters immedi- ately following enactment of the reform. As a result, the fraction of traded companies paying dividends, which had declined con- tinuously over the last two decades (see Fama and French [2001]), increased significantly from a low of 20 percent in 2002-Q4 to almost 25 percent in 2004-Q2” (CHETTY, Raj; SAEZ, Emmanuel. Dividends tax and corporate behavior: evidence from the 2003 dividends tax cut. Disponível em: <http://eml.berkeley.edu/~saez/chetty-saezQJE05dividends.pdf>. Acesso em: 6. abr. 2015, p. 793). 

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!