Processo Familiar

A não manutenção do foro privilegiado para mulher casada no novo CPC

Autor

  • José Fernando Simão

    é professor associado do departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP livre-docente doutor e mestre em Direito Civil pela mesma faculdade diretor do IBDCONT e vice-presidente do IBDFAMSP.

3 de maio de 2015, 10h43

Spacca
Com o advento do novo Código de Processo Civil, a regra contida no artigo 100 I do CPC de 1973, deixa de existir, ou seja, desaparece o foro privilegiado da mulher casada.

Tal regra foi inserida no CPC pela Lei do Divórcio de 1977 (Lei 6.515/77) com um nítido objetivo de proteger a parte que, à época, revelava-se mais fraca na relação conjugal. Isso porque, na sistemática do velho Código Civil de 1916, o marido ocupava a posição de chefe da sociedade conjugal.

A desigualdade em que o Código Civil de 1916 se baseava refletia a realidade social do Século XIX. Como nos revela o historiador inglês Eric Hobsbawm, na última década do Século XIX, 95% dos homens casados estavam ocupados, ao passo que apenas 12% das mulheres, nesta condição, o estavam. A emancipação econômica da mulher se iniciou principalmente com a evolução do setor de serviços no limiar do século XX, não tanto com a sociedade industrial, como é contumaz afirmar-se. Na estrutura agrária, em geral, o local de trabalho e a casa confundem-se, desta forma é inconcebível, numa família rural desta época, imaginar qualquer êxito sem o esforço da mulher, seja no lar cuidando dos filhos e da casa, seja ao lado do marido arando as terras. Todavia, a mulher no contexto industrial passou cada vez a ser mais excluída, pois o local de trabalho e o lar foram separados; restando-lhe apenas cuidar do lar e esperar que o marido retornasse da fábrica com o dinheiro para sustentar toda a família no final do mês. Com isso, às jovens mais abastadas restava apenas uma profissão: o bom casamento. Às outras, menos afortunadas, as fábricas reservavam-lhes empregos menores e com salários igualmente reduzidos (2006:276).

Nesse contexto histórico, não havia outra opção na mente do legislador de 1916. Se a chefia da sociedade conjugal deveria ser exercida de maneira hierárquica, apenas o marido poderia ocupar o topo da hierarquia.

Outra regra que refletia essa situação das mulheres no Século XIX e início do Século XX era a sua situação de relativamente incapaz (artigo 6º, II do CC/16).

Note-se que a regra, tal como concebida no Século XIX, tinha por objetivo a proteção da mulher, conforme leciona Clóvis Bevilaqua:

“Mas é sempre bom recordar que há nessa incapacidade da mulher muito de proteção e desvelo tutelar (1933:166)

Foi o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62) que alterou profundamente a questão. De início, acrescentou ao artigo 233 do CC/16 sua parte final em que menciona a colaboração da mulher. Depois, retirou a mulher casada do rol dos relativamente incapazes modificando o artigo 6º do CC/16.

Em 1988, com a Constituição Federal, a questão se soluciona adotando-se o paradigma da igualdade com relação aos direitos de deveres decorrentes da sociedade conjugal, nos termos do artigo 226, parágrafo 5º.

A igualdade gera efeitos imediatos para a lei civil. A idade núbil de ambos os cônjuges não mais pode ser diferente (atualmente é de 16 anos para homens e mulheres); a idade de imposição do regime da separação obrigatória de bens é de 70 anos para ambos; os bens reservados que existiam em favor da mulher casada não mais subsistem; o direito de adotar o sobrenome do outro cônjuge é de ambos e não mais exclusivo da mulher etc.

Resta saber se a regra do artigo 100, I do CPC de 1973 fora ou não revogada pela norma constitucional, ou seja, se o preceito da igualdade admite disposição que cria foro privilegiado em favor da mulher casada.

As decisões do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema tendiam a não mais admitir o foro privilegiado por ferir a igualdade. No REsp 327.086/PR os seguintes argumentos serviram de base para não se admitir o foro privilegiado:

"Todavia, impende atualmente ponderar quanto à controvertida vigência do referido artigo 100, I, do Código de Processo Civil, face à regra da Constituição de 1988 (artigo 226, parágrafo 5º), de imediata cogência, verbis: "Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher", em explicitação, diga-se, da norma constitucional de igualdade dos sexos: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição" – Constituição Federal, artigo 5º, I.

Em última análise, desigualdades serão admitidas somente quando expressamente estipuladas em norma constitucional (v.g., artigo 40, III).

Parece-nos, já agora, insubsistente a norma de que ao marido competiria fixar do domicílio da família, o que se afirma mesmo com a ressalva trazida pela Lei 4.121⁄62 – EMC, ressalva no sentido de ser possível à mulher recorrer ao juiz, "no caso de deliberação que a prejudique". Se cada cônjuge pode manter seu próprio domicílio, perdeu significação a referência à residência da mulher.

O professor Yussef Said Cahali sustenta que não mais vigora o foro privilegiado a benefício da mulher casada, caindo as demandas acima aludidas no foro comum do domicílio do réu (CPC, artigo 94); a respeito, tece longa argumentação, referindo que o princípio da igualdade dos cônjuges não incide apenas nas normas de direito material, "mas se estende às medidas processuais tendentes ao exercício daqueles direitos tendo por objeto relações de Direito Matrimonial"(Divórcio e separação, 7ª ed., Revista dos Tribunais, 1994, t. 1, 57). A questão, todavia, mantém-se polêmica" (Jurisdição e Competência, 10ª ed., Saraiva, 2000, 80, pp. 94-95).

A questão que deve ser objeto de reflexão é se a igualdade entre homens e mulheres com relação é efetivamente material ou apenas formal.

O princípio da igualdade é um dos princípios fundadores do constitucionalismo moderno. Adquiriu preeminência a partir do Iluminismo, o qual parte de uma premissa antropocêntrica, isto é, o Homem, simplesmente por sê-lo, é digno de respeito. Foi a partir do mesmo postulado que se concebeu a dignidade da pessoa humana. Conclui-se, portanto, que não haveria qualquer outro critério diferenciador que pudesse ser utilizado. Nesse sentido, é significativo o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, afirmando que "les hommes naissent et demeurent libres et égaux en droits1.”

A igualdade já não era novidade, contudo, à época da Revolução Francesa. Aristóteles pronunciou fórmula que se tornaria célebre, com o passar dos tempos, de acordo com a qual os iguais devem ser tratados de maneira igual e os desiguais de maneira desigual, na medida da sua desigualdade. Robert Alexy, ao analisar o referido preceito, indica a possibilidade de se interpretar de duas formas essa asserção.

Uma primeira interpretação, de práxis universalizante do legislador, atém-se ao seu sentido formal, de subsunção do fato à norma, ou seja, para todos aqueles que contêm as propriedades exigidas pelo suporte fático, incidir-se-ia a norma jurídica e, por conseguinte, a sua eficácia jurídica (2008:397). De acordo com o autor, esse postulado não representaria um grande avanço, resumindo uma forma de racionalidade prática já bem conhecida.

De todo modo, foi nessa primeira acepção que os revolucionários do fim do século XVIII cunharam o princípio da igualdade em suas Cartas de Direitos Humanos: uma igualdade formal, de todos perante à lei, mas que desconhecia o suporte material que deveria, de fato, ser exigido pela norma jurídica para a sua incidência. Pode-se, mesmo, dizer que a igualdade formal interessava-se, apenas, com o fenômeno de incidência da lei, mas não com o fenômeno da sua produção, da política legislativa.

Foi com o rompante das primeiras greves e revoluções sociais, ainda em meados do século XIX, e que se estendeu até as primeiras décadas do século XX, que a noção de um Estado liberal deixou de ser suficiente, dando lugar à ideia de um Estado social (Welfare State). Desde então, os direitos fundamentais passaram de uma primeira geração, de liberdades formais, para uma segunda geração, de liberdades sociais. À luz dessa nova perspectiva, o princípio da igualdade adquire sua segunda acepção. Assim, de acordo com Alexy, deve-se interpretar a fórmula aristotélica não como uma exigência dirigida à forma lógica das normas, mas como uma exigência dirigida ao seu conteúdo, ou seja, não no sentido de um dever formal, mas de um dever material de igualdade” (2008:399). Fala-se, então, numa igualdade material, contraposta àquela igualdade formal.

No ano de 2008, Regina Madalozzo publicou um trabalho intitulado “Gênero e Desigualdade” em que afirmava o seguinte2:

“No Gender Gap Index, do Fórum Econômico Mundial (uma das medidas utilizadas para se inferirem as diferenças entre gêneros nos diferentes países), o Brasil ocupa a 74ª posição em um ranking de 128 países, com a nota 0,66. Nesse ranking, a nota zero representa a completa igualdade entre gêneros e 1, a completa desigualdade. Dessa forma, podemos dizer que o Brasil se encontra na parcela de países que trata de forma bastante diferenciada homens e mulheres”

Dados da Bélgica, por exemplo, indicam que as mulheres ganham 10% a menos que os homens por hora de trabalho e menos de 23% na soma anual de ganhos.

Espelhando um dado inequívoco da realidade, o Supremo Tribunal Federal analisou a questão em 2011:

STF: DIREITO CONSTITUCIONAL. PRINCÍPIO DA ISONOMIA ENTRE HOMENS E MULHERES. AÇÃO DE SEPARAÇÃO JUDICIAL. FORO COMPETENTE. ART. 100, I DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. ART. 5º, I E ART. 226, § 5º DA CF/88. RECEPÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. O inciso I do artigo 100 do Código de Processo Civil, com redação dada pela lei 6.515/1977, foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988. O foro especial para a mulher nas ações de separação judicial e de conversão da separação judicial em divórcio não ofende o princípio da isonomia entre homens e mulheres ou da igualdade entre os cônjuges. RE 227114 / SP – SÃO PAULO. Relator: ministro Joaquim Barbosa. Julgamento: 22 de novembro de 2011.

O fundamento do julgado reflete exatamente os dados acima expostos: “Em primeiro lugar porque não se trata de um privilégio estabelecido em favor das mulheres, mas de uma norma que visa a dar um tratamento menos gravoso à parte que, em regra, se encontrava e, ainda se encontra, em situação menos favorável econômica e financeiramente. A propositura da ação de separação judicial no foro do domicílio da mulher é medida que melhor atende ao princípio da isonomia, na famosa definição de Rui Barbosa de que este consiste em “tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”. Ademais, a competência prevista no inciso I do artigo 100 do CPC é relativa, ou seja, se a mulher não apresentar exceção de incompetência em tempo hábil a competência se prorroga; ou a própria mulher pode preferir ajuizar a ação no foro do domicílio do marido ou ex-marido, inexistindo óbice legal a que a ação prossiga, neste caso, no foro do domicílio do réu. Por fim, merece registro que os juízes e tribunais de todo o país têm se manifestado majoritariamente no sentido da recepção deste dispositivo, salvo no que tange ao divórcio direto (STJ, CC 13.623, rel. min. Sálvio de Figueiredo, DJU 18.09.1995) e às ações de anulação de decisão homologatória de separação judicial, bem como nos casos em que a mulher reside no estrangeiro”.

No último senso, divulgado em dezembro de 2014, apurou-se o seguinte: o rendimento médio dos homens em 2013 apresentou crescimento menor que o das mulheres em relação a 2004 (41,5% a 48,9%). Entretanto, os ganhos mensais apurados entre a população ocupada feminina ainda é bem inferior aos mesmos ganhos da masculina: na média, R$ 1.605 a R$ 1.278, diferença de 43%.

Apesar dos dados econômicos e sociais indicados, que inequivocamente refletem uma desigualdade entre homens e mulheres, que substancialmente são diferentes, o novo CPC, em seu artigo 53, estabelece o seguinte:

É competente o foro:

I – para a ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável:

a) de domicílio do guardião de filho incapaz;

b) do último domicílio do casal, caso não haja filho incapaz;

c) de domicílio do réu, se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal;

O critério de proteção se desloca. É o filho incapaz que é merecedor da tutela e não mais a mulher.

Em razão da opção do legislador do novo CPC, três questões se colocam: acerta o novo CPC ao abandonar a regra protetiva da mulher para se adotar a regra protetiva do incapaz? Em tempos de casamento homoafetivo, a regra de proteção da mulher ainda é coerente? A lei Maria da Penha sofre alguma alteração com relação a seu artigo 153?

Vamos às respostas.

a) Acerta o novo CPC ao abandonar a regra protetiva da mulher para se adotar a regra protetiva do incapaz?

O novo CPC traz uma visão de futuro e não de presente. Ainda que a situação da mulher frente ao homem tem evoluído para se afastarem discriminações e injustiças, ainda, em termos de remuneração, a mulher ganha menos que o homem e tem situação econômica menos favorável.

Ademais, não se pode esquecer, que em parte sensível da população, cabe apenas a mulher os serviços domésticos, o quer reduz seu tempo de trabalho fora do lar conjugal.

Assim, o novo CPC antecipa uma tendência, mas não espelha uma realidade em que a igualdade é formal, mas não material.

b) Em tempos de casamento homoafetivo, a regra de proteção da mulher ainda é coerente?

O número de casamentos homoafetivos no Brasil é ínfimo e não altera o dado histórico pelo qual efetivamente o casamento heterossexual é predominante. Assim, a questão do foro privilegiado nos casamentos homoafetivos se coloca de maneira mais teórica do que prática.

Efetivamente, no casamento homoafetivo entre dois homens, a regra não tem qualquer aplicabilidade. Já no casamento entre duas mulheres, ambas poderiam invocá-la em seu benefício.

É de se salientar que efetivamente caberia ao juiz analisar em termos concretos a ratio legis para a sua aplicação. Em caso de igualdade material, a regra deveria ser afastada, seguindo-se a regra geral do domicílio do réu. Se houvesse diferenças efetivas em temos dos cônjuges, aplicar-se-ia em favor daquela mulher vulnerável em termos econômicos.

Concordo que estabelecer competência nessas condições gera um problema prático, pois a competência dependeria de questões a serem comprovadas, gerando instabilidade ao processo.

Logo, para o casamento homoafetivo, efetivamente a regra é pouco coerente, pois ambos os cônjuges que contam com o benefício são mulheres.

c) A lei Maria da Penha sofre alguma alteração com relação a seu art. 15?

A Lei Maria da Penha é protetiva da mulher em situação de clara vulnerabilidade em relação ao homem ou outra mulher. Assim dispõe seu artigo 1º.

Art. 1o  Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8odo art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Nestas hipóteses, a situação protetiva é regra, pois a mulher dela efetivamente necessita. Invocadas as situações da Lei Maria da Penha, não há que se discutir igualdade ou desigualdade, pois é patente a vulnerabilidade de quem a invoca.

Assim sendo, a regra especial da Lei Maria da Penha, quanto ao foro do domicílio da ofendida, ou outro previsto pelo artigo 15 da Lei 11.340/2006, não sofre qualquer alteração por força da mudança do CPC que é regra geral para as ações decorrentes do direito de família.

A conclusão que se chega é que, apesar de o novo CPC refletir uma mudança em curso, talvez tenha sido precipitado em adotar uma igualdade entre homens e mulheres, que é apenas formal, ao abolir o foro privilegiado da mulher casada.


1 “Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direitos”

3 Lei Maria da Penha (11.340 de 07 de Agosto de 2006) Art. 15. É competente, por opção da ofendida, para os processos cíveis regidos por esta Lei, o Juizado: I – do seu domicílio ou de sua residência; II – do lugar do fato em que se baseou a demanda; III – do domicílio do agressor

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