Punição exagerada

Denúncia à CIDH reacende discussão sobre crimes contra a honra

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3 de maio de 2015, 10h47

No Brasil, é comum que figuras poderosas, como políticos de cidades pequenas até grandes empresas, se utilizem de leis que criminalizam as ofensas contra a honra com o objetivo de calar vozes opositoras.

Um exemplo bastante ilustrativo dessa situação é o do jornalista sergipano José Cristian Góes. Após publicar crônica literária totalmente ficcional na qual fazia críticas impessoais ao sistema coronelista que ainda existe em diversas práticas políticas no Nordeste, Góes se viu processado nas esferas cível e criminal pelo na época vice-presidente do Tribunal de Justiça de Sergipe, o desembargador Edson Ulisses.

Embora não fosse possível verificar referência direta a ninguém, o magistrado entendeu que a crítica contida no texto era dirigida a ele. Ao fim do processo, o jornalista acabou condenado a 7 meses e 16 dias de prisão pelo crime de injúria, pena convertida em prestação de serviços comunitários e ainda ao pagamento de indenização no valor de R$ 25 mil.

Em relação à condenação cível, ainda há uma última possibilidade de reversão da sentença, já que uma Reclamação Constitucional que a contesta está em vias de ser julgada no Supremo Tribunal Federal, sob relatoria do ministro Luiz Fux.

Tal caso, de caráter fortemente político, faz parte de uma imagem mais ampla do Judiciário brasileiro em relação aos ''crimes contra honra'' – aplicação excessiva e comumente distorcida para servir aos interesses de pessoas e grupos poderosos.

Por se tratar de algo tão representativo das violações sistemáticas à liberdade de expressão, o caso de Góes foi objeto de recente denúncia apresentada pela organização Artigo 19 e pelo coletivo Intervozes à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), na qual se requer do Estado brasileiro, em relação ao processo penal, o ressarcimento ao condenado pelas custas processuais, indenização por danos morais e materiais e cessão dos efeitos da sentença condenatória, além de uma retratação pública oficial.

É importante notar que o problema não está apenas na interpretação e aplicação das leis pelo Judiciário. Trata-se, na verdade, de uma questão anterior, relativa ao próprio caráter criminalizante da legislação que classifica essas condutas, uma vez que a resposta penal corresponde a uma punição desproporcional e, por seus efeitos, limitadora da liberdade de expressão dos indivíduos, inclusive no que diz respeito aos discursos legítimos. Sob o pretexto de proteção de direitos como a privacidade e a honra, acaba-se restringindo, muitas vezes injustamente, o direito, igualmente consagrado, da liberdade de expressão.

Contexto internacional
O Judiciário brasileiro vive uma tendência de maior integração ao sistema interamericano (assim como outros sistemas internacionais), a partir do entendimento do STF no julgamento do RE 466343, segundo o qual os tratados internacionais de direitos humanos, ratificados pelo país e incorporados ao direito interno na forma do artigo 5º, § 2º, da Constituição brasileira, têm natureza supralegal, isto é, nível constitucional.

Isso se traduz na atribuição de maior força aos tratados e convenções internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil se vincula e provoca a pergunta: o país está adequado à legislação e jurisprudência internacionais sobre regulação dos direitos em jogo, em especial, a liberdade de expressão?

A resposta é não. O Brasil e sua legislação de ''crimes contra a honra'' não respeitam as orientações internacionais de direitos humanos, pois elas buscam realizar um equilíbrio efetivo de liberdade de expressão e honra/proteção da reputação, obtendo parâmetros mais razoáveis e menos inibidores. Nesse sentido, por exemplo, a Convenção Americana de Direitos Humanos, ratificada pelo Brasil em setembro de 1992, consagra tanto a liberdade de expressão como a honra e a privacidade como direitos fundamentais, cabendo a uma análise posterior balanceá-los.

De tal balanceamento decorre, como se observa pelos documentos da Comissão Interamericana, que a proteção à reputação deve ser garantida somente por meio de sanções civis, e não penais [1]. Essa postura quanto à responsabilização limitada à esfera civil é a mesma adotada pela Artigo 19.

Em 2000, as Declarações Conjuntas, publicadas anualmente pelos relatores especiais para a Liberdade de Expressão da ONU, OEA e OSCE, recomendaram expressamente que os países signatários revisem suas respectivas legislações e considerem a revogação das leis penais que punam condutas consideradas prejudiciais à honra.

É nesse contexto que se insere a denúncia oferecida pela Artigo 19 e pelo Intervozes à CIDH, uma vez que, além dos pedidos previamente mencionados, também é requerida a revogação das leis penais relativas ao tema do sistema jurídico brasileiro.

Pontos específicos
Para além da criminalização, os padrões internacionais também tratam de pontos específicos de uma boa legislação que regule tais situações – por exemplo, o caráter falso da publicação em questão, presente no Princípio 10 da Declaração dos Princípios sobre Liberdade de Expressão da CIDH.

Aí se percebe que a lei brasileira falha, além da própria criminalização, também na caracterização do tipo penal – quanto à injúria, por exemplo, a falsidade do julgamento emitido não é necessária para a configuração da conduta até porque opiniões não podem ser verdadeiras ou falsas.

O crime de injúria possibilita a proteção de sentimentos ao invés da proteção de reputações. Tal proteção permite abusos, visto que os sentimentos constituem emoções subjetivas, sendo difícil defini-los. Assim, referidas leis podem ser interpretadas de uma maneira perigosamente flexível, com o fim de satisfazer as necessidades das autoridades, que por vezes procuram evitar as críticas políticas provenientes da sociedade.

As leis que protegem os sentimentos objetivam proteger um valor completamente subjetivo, afinal não há como provar por algum fator externo que um indivíduo foi realmente prejudicado.

Por essas razões, emissão de opiniões, de acordo com os padrões do sistema interamericano, não pode ser submetida a restrições ou sanções, o que significa dizer que uma lei que puna a expressão de um indivíduo com base em critério subjetivo se afasta do entendimento da CIDH.

Nota-se, a partir disso, que os conceitos brasileiros de crimes contra a honra abrangem mais condutas do que aquelas cobertas pela definição internacional, de forma que é possível verificar no Brasil numerosas violações à liberdade de expressão por meio de alegações abusivas de crimes contra a honra, que, por serem excessivamente amplas, acabam atendendo a interesses ilegítimos de limitar a liberdade de expressão.

É o que ocorreu no caso, previamente citado, de Cristian Góes, que se tratava de expressão de opinião na forma de crônica literária, sem indícios de má-fé ou mesmo a possibilidade de se falar em alegação verdadeira ou falsa, já que o texto trazia questões genéricas e impessoais.

Além disso, seu acusador é funcionário público, o que evoca outro princípio consagrado pela CIDH – os funcionários públicos, pela natureza de suas funções, estão submetidos à maior avaliação da sociedade e devem ser mais tolerantes a críticas. Mesmo assim, o jornalista foi condenado, o que revela o resultado negativo da combinação entre uma legislação defasada e uma aplicação excessiva, distante dos princípios que o sistema jurídico brasileiro deveria adotar.

O desrespeito ao princípio relativo aos funcionários públicos, por exemplo, se revela diretamente na medida em que é muito elevado o número de profissionais dessa categoria que utilizam os crimes contra a honra a seu favor em um sentido claro de brecar críticas e o debate público em torno de suas ações.

É importante notar, no entanto, que a ameaça da responsabilização arbitrária pela expressão de opiniões não recai apenas sobre comunicadores, mas pode atingir qualquer um, principalmente após o advento e difusão da Internet.

Perspectiva legislativa
Ainda buscando demonstrar os problemas do sistema brasileiro em relação ao que se é estabelecido pela Convenção Americana e pelos tratados assinados pelo Brasil, além da orientação judicial mais inclinada à integração do país ao sistema interamericano, o novo projeto de reforma do Código Penal (PL 236/2012) não só mantém os crimes contra a honra em seu rol como aumenta as penas estabelecidas significativamente.

É verdade que a retirada do desacato da relação de crimes representa um fator positivo. Entretanto, o aumento considerável das penas previstas para os crimes contra a honra praticadas contra funcionários públicos prejudica esse suposto benefício.

Tal perspectiva demonstra que, embora haja iniciativas esparsas de adequação aos preceitos internacionais de direitos humanos, a lógica que continua a orientar o legislador, assim como muitos juízes na aplicação de sanções, é descolada das noções de proporcionalidade e adequação das normas internacionais no sentido do equilíbrio de direitos fundamentais.

Dessa forma, a liberdade de expressão acaba preterida, o que torna essencial uma decisão positiva por parte da CIDH no caso Góes, reforçando a pressão sobre o sistema brasileiro para que se adeque aos padrões internacionais, como é a expectativa dos peticionários.

A legislação excessivamente ampla e carente de critérios objetivos, o caráter de criminalização, e a aplicação descabida, quando não arbitrária, de sanções mais severas funcionam como instrumento de censura dos cidadãos, situação bastante temerária em um Estado ao qual, em tese, as liberdades democráticas são caras. Cabe, diante do cenário exposto, ponderar: a quem serve a criminalização dos crimes contra a honra e sua aplicação excessiva?


[1] Princípio 10 da Declaração dos Princípios sobre Liberdade de Expressão, aprovado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em outubro de 2000.

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