Construção de alternativas

A importância de trabalhar com fatos e de projetar consequências

Autor

  • Taís Schilling Ferraz

    é mestre em Direito pela PUCRS doutoranda em Ciências Criminais; professora titular do Programa de Pós-Graduação (Mestrado) da ENFAM; desembargadora do TRF-4 e integrante do Grupo Operacional do Centro Nacional de Inteligência da Justiça Federal.

2 de maio de 2015, 9h04

Acompanha-se, pelos meios de comunicação, um forte e rápido movimento pela redução da maioridade penal. Projetos de reforma constitucional e de lei tramitam no Congresso Nacional tendo por base o sentimento de que os mais jovens vêm sendo tratados, em tema de responsabilidade, sem o rigor necessário, o que resultaria no aumento dos índices de violência e da sensação de insegurança.

Na primeira parte deste artigo procurou-se trazer à análise diversos fatos e circunstâncias que caracterizam o atual sistema socioeducativo, bem como os pressupostos que determinaram a sua construção, a partir da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente, defendendo-se a necessidade de que não sejam tratados como inexistentes ou como de menor importância.

As seguintes linhas destinam-se a propor uma análise de natureza consequencial sobre o tema em debate no Congresso Nacional, na sociedade e nos meios de comunicação, trazendo à mesa, mais que os princípios supostamente em conflito, os efeitos que poderão advir das escolhas iminentes. Pretende-se provocar, também, após este exercício, um debate mais profundo sobre as possibilidades de ajuste no modelo socioeducativo, sem a ruptura que ameaça ocorrer.

Uma análise consequencial

É preciso avaliar se a opção pela redução da maioridade penal de 18 para 16 anos terá efetividade, será capaz de produzir, sobre a realidade social, os efeitos que hoje não se fazem presentes. Indagar se a vontade que prevalecer será, de fato, alcançada no caminho escolhido e se não há risco de ocorrer, em nome da defesa de alguns valores, a completa supressão de outros.

Não por outra razão é que se invoca o meta-princípio da proporcionalidade em um juízo de ponderação entre valores conflitantes. Este princípio impõe refletir se o sacrifício de um direito será útil para a solução do problema que está à mesa, se não há outro meio menos danoso para atingir o resultado desejado e se o ônus imposto ao sacrificado não sobreleva o benefício que se pretende obter com a solução que foi aventada.1

O exercício de projeção, que a seguir se fará, é essencialmente pragmático. Destina-se a trazer à ponderação elementos de ordem finalística, e partirá da análise da posição daqueles que defendem a redução da maioridade penal e que sustentam que os adolescentes de hoje, especialmente diante do maior acesso à informação, já têm plena consciência dos seus atos.

Este grupo busca solução para uma ou mais das seguintes situações: aumento da violência entre os adolescentes; pouco tempo de privação de liberdade como castigo pelo ato infracional praticado; muita reincidência; riscos para a sociedade; uso do adolescente pelo adulto como ferramenta para garantir a impunidade em crimes graves.

Nessa busca, atribui-se maior peso aos princípios da segurança jurídica e da proporcionalidade retributiva das medidas impostas aos adolescentes, que aos princípios da proteção integral, da excepcionalidade e da brevidade da medida socioeducativa, estabelecidos na Constituição. Chega-se à conclusão de que é necessária uma alteração constitucional ou mesmo na lei, para a redução da maioridade penal, submetendo-se, assim, o adolescente aos rigores das penas cominadas aos adultos por idênticos atos de violência, o que evitaria a perpetuação do quadro situacional acima delineado.

Identificados os objetivos e os fatores motivadores da possível decisão, é preciso, agora, indagar se a medida tem potencial para produzir os efeitos esperados.

É necessário projetar se haverá relação direta entre a submissão dos adolescentes ao regime penal e de execução penal dos adultos — o que significa privação de liberdade por mais tempo e, atualmente, sujeição a toda a sorte de violações de direitos humanos — e a redução dos índices de violência, especialmente entre adolescentes.

Para esta análise, é fundamental pesquisar experiências semelhantes já realizadas em outros países, bem como dados estatísticos e avaliações criminológicas. Muitos erros podem ser evitados observando-se a experiência alheia. Já se sabe, por exemplo, que a Alemanha passou pela experiência da redução da maioridade penal e acabou por retomar a situação anterior, porque os resultados não foram os esperados.

É importante indagar se o maior efeito retributivo (castigo), que supostamente trará maior conforto às vítimas e à sociedade, terá, de fato, efeitos mensuráveis sobre a sensação de insegurança e sobre a reincidência, e se esta medida será capaz de prevenir a violência que na grande parte das vezes nasce num contexto de absoluta vulnerabilidade social.

Mais que isso, deve-se questionar se a medida reduzirá a participação de crianças e adolescentes em crimes praticados ou premeditados por adultos ou se os tornará ainda mais vulneráveis à instrumentalização.

E neste ponto, olhar para os adultos também auxilia. É ainda tímido, diante do grau de ofensa aos bens jurídicos que representa, o efeito retributivo (que pode ser revisto) a pena hoje imposta (1 a 4 anos de reclusão) aos que praticam o crime de corrupção de criança e adolescente (artigo 244-B do ECA), quando efetivamente imposta. O caminho mais simples, então, não seria aumentar esta pena e centrar esforços na sua efetiva aplicação? Então se penaliza o adolescente para que o adulto não mais faça uso dele, ao invés de responsabilizar adequadamente o próprio adulto?

E ainda que os objetivos anteriormente referidos possam ser tidos como alcançáveis, ou parte deles, é preciso questionar e avaliar se é razoável e proporcional insistir no remédio encontrado — redução da maioridade penal, diante de eventuais efeitos colaterais que poderá produzir sobre a sociedade, o sistema e os próprios adolescentes.

É indagar, por exemplo, se com a imposição e execução de penas juntamente com criminosos adultos, há possibilidade de serem os adolescentes cooptados ou vinculados, ainda que contra suas vontades, às facções criminosas que dominam o sistema prisional brasileiro, já superlotado, profissionalizando-se no crime, em prejuízo da sociedade, de si mesmos, e, ainda, sendo submetidos a toda sorte de violação de direitos. A resposta positiva a esta pergunta soa óbvia.

Investigar se o Estado brasileiro tem meios de garantir sua segurança, sua integridade física, sua saúde, sua educação, sua profissionalização, bem como que sejam minimamente separados por faixa etária e gravidade do crime dentro dos locais de privação de liberdade. Atualmente sabe-se que o Estado não tem sequer domínio sobre as próprias unidades prisionais, e que o preso não é visto nem tratado como sujeito de direitos.

É avaliar se esta medida não provocará um número ainda maior de vítimas entre os próprios adolescentes, diante da ação de grupos de extermínio que, atualmente, em vários lugares do país, já vêm matando muitos daqueles que viveram situações de privação de liberdade no sistema socioeducativo.

Enfim, é fundamental que questões como estas sejam colocadas à ponderação, como condicionantes do processo decisório, tendo-se presente que há outros meios, que não exigem a redução da maioridade penal, para buscar eventuais ajustes no sistema de responsabilização do adolescente que pratica ato infracional.

Há caminhos entre os extremos

No grupo dos que são contra qualquer alteração no Estatuto da Criança e do Adolescente (integrantes do Sistema de Garantia de Direitos, agentes do Sistema de Justiça — magistrados, promotores, defensores, advogados —, do Poder Executivo, especialmente nas áreas relacionadas a direitos humanos, Justiça e assistência social, dos Conselhos de Direitos e Tutelares, e de representações da sociedade civil organizada), defende-se que não se pode falar em impunidade dos adolescentes, os quais vêm sendo cada vez mais submetidos a medidas de privação de liberdade, mas em formas diferentes de responsabilização.

Afirma-se que a opção principal deve ser pela socioeducação e não pelo castigo; que por sua especial condição de desenvolvimento, o jovem tem mais potencial de reeducação; que o problema da violência entre os jovens tem origem na situação de vulnerabilidade em que inserida a grande maioria daqueles que chegam ao sistema socioeducativo; que seria criminalizar a pobreza admitir o aumento do rigor ao invés de investir em políticas públicas que garantam os direitos constitucionalmente reservados para os adolescentes.

Demonstra-se que se o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo não tem sido suficientemente efetivo, é por falta de investimentos, capacitação e fiscalização, e que o percentual de atos infracionais violentos praticados pelos adolescentes é muito inferior frente ao dos crimes violentos praticados por adultos.

Nessa linha, as soluções propugnadas para problemas como violência entre os jovens, reincidência, risco social e sensação de impunidade estão associadas ao reordenamento do sistema socioeducativo; à garantia de educação, saúde, cultura, profissionalização e outros direitos sociais para os adolescentes, preventivamente e em cumprimento de medida socioeducativa, bem como aos egressos do sistema; à implementação de políticas públicas capazes de reduzir a situação de risco social em que inseridos e, assim, prevenir o ato infracional.

Propugna-se, também, pela necessidade de agravamento da punição dos adultos que utilizam crianças e adolescentes como instrumento de crime ao invés de fazer incidir sobre os últimos o maior rigor. Procura-se esclarecer a sociedade sobre os fundamentos e as vantagens do sistema socioeducativo previsto no ECA, que não prega a impunidade, mas a responsabilidade do adolescente, com maior componente pedagógico que retributivo, onde a resposta estatal deve ser proporcional ao estado de pessoa em especial condição de desenvolvimento.

No extremo desta posição defensiva do sistema socioeducativo, porém, situam-se os que não admitem, sob qualquer hipótese, discutir abertamente a possibilidade de revisão, ainda que tópica, do ECA, para que se alcance melhor efetividade.

Estes últimos, motivados em grande medida e justificadamente pelo receio de graves retrocessos, recusam-se a reconhecer que aquilo que o sistema previu como um de seus maiores pilares — a flexibilidade da medida socioeducativa, tem permitido algumas distorções na aplicação prática da responsabilidade infracional, contribuindo, em certos casos, para a sensação de impunidade.

É que uma das principais características da medida é não ter prazo pré-definido de duração, devendo ser reavaliada periodicamente, assegurando que as equipes e o juiz acompanhem e promovam ajustes no processo de reeducação, que deve ser individualizado.

Quando, porém, esta maleabilidade não é gerida com algum grau de objetividade pelos agentes do sistema, podem ocorrer situações em que atos infracionais praticados com extrema violência resultem em respostas desproporcionais à sua gravidade, frente aos de menor impacto. É certo que o sistema foi concebido para ser essencialmente educativo, mas isto não significa que, inclusive para fins pedagógicos, possa deixar de render contas, em alguma medida, a critérios de retributividade. As dimensões não são excludentes, antes se complementam.

No entanto, a correção de tais distorções, que são eventuais no processo de condução do sistema socioeducativo, passa longe da necessidade de redução da maioridade penal. É preciso conceber soluções construtivas ao invés de trabalhar com a hipótese de abandono e ruptura com o sistema atual.

Há outros meios de evitar que aconteçam, por exemplo, situações em que adolescentes que praticaram homicídios e latrocínios permaneçam sob medida socioeducativa por menos tempo que aqueles que praticaram atos infracionais menos graves, mas que encontraram maior dificuldade de adaptação à mesma medida.

Se a inexistência de alguns parâmetros mínimos e máximos ao exercício da discricionariedade que o sistema atribui ao magistrado e às equipes técnicas acaba por propiciar que ocorram situações de maior desigualdade na aplicação das medidas socioeducativas, e que, por exemplo, um adolescente de 12 anos possa vir a responder pelo mesmo ato infracional, nas mesmas circunstâncias de um adolescente com 17 anos, a solução pode estar na realização de reformas pontuais no Estatuto, graduando-se um pouco mais a responsabilidade segundo a faixa etária e valorando-se de forma mais parelha os atos infracionais segundo a sua gravidade.

É possível cogitar, por exemplo, e sem supressão da discricionariedade — que deve ser preservada por essencial à individualização do processo socioeducativo —, que para os crimes com grave violência à pessoa, praticados por adolescentes com mais de 16 anos, a eventual medida de internação tenha um mínimo de duração. Isto poderia ser feito de maneira cirúrgica, para alcançar os mais próximos da maioridade e apenas os atos de violência grave contra a pessoa, como homicídios, latrocínios, estupros, sem desprezo à ideia da responsabilização na medida do desenvolvimento.

Não haveria prejuízos ao sistema como um todo, já que estes atos infracionais estão entre os praticados em menor número e que o sistema vem respondendo adequadamente aos demais, inclusive com medidas em meio aberto, com maior potencial ressocializador. Muitas ideias podem ser concebidas sem ruptura com os pressupostos da socioeducação. Exercícios já vêm sendo feitos neste sentido, mas é necessário superar a intransigência em um e outro lado.

Há, portanto, caminhos entre os extremos.

Qualquer decisão que se adote, porém, pouco contribuirá para a redução da violência, se não vier acompanhada de políticas públicas eficientes, capazes de enfrentar os problemas no seu nascedouro e de aperfeiçoar, em todos os aspectos, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo para que alcance o potencial recuperatório, de educação e inclusão, preconizado na legislação que o instrumentalizou. Um sistema que foi concebido e pactuado há tantos anos, mas em relação ao qual o Estado, por todos os seus órgãos e esferas de poder, tem uma dívida de enormes proporções a resgatar, por nunca ter havido, de fato, atenção e investimentos à sua estruturação e efetividade.

A legítima busca por segurança, associada às dificuldades do sistema socioeducativo, predispõe a reações que vão desde a indignação com a impunidade pressuposta, até o desejo de retaliação, de vingança, passando pelo impulso de excluir do meio social aquele que representa o risco.

Reduzir a maioridade penal, no entanto, não trará mais segurança. O caminho não é este, como também não precisa ser o da total intangibilidade do atual modelo de responsabilização do adolescente.

Pode-se implementar mecanismos construtivos, que permitam ajustá-lo aos seus próprios pressupostos e objetivos e, muito mais que isso, adotar políticas públicas de natureza preventiva, executar ações que garantam maior efetividade ao sistema de justiça específico e à própria doutrina da proteção integral.

É sobre os jovens de hoje que Estado e sociedade devem estar debruçados. Entre estes jovens estão todos os que passam pelo sistema socioeducativo. O tão esperado Brasil do amanhã não será diferente do atual, enquanto os problemas existentes forem desprezados ao invés de serem objetivamente enfrentados nas suas causas, e enquanto as promessas constitucionais não se convolarem em ações concretas e eficazes.

1 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 285.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!