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Retomada da credibilidade fiscal passa pelo fim das autuações para punir e arrecadar

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30 de junho de 2015, 10h53

“Então, para mim, essa bola é um símbolo da nossa evolução. Quando nós criamos uma bola dessas, nós nos transformamos em homo sapiens ou mulheres sapiens”.

Dilma Rousseff

Regressei na semana passada de uma viagem aos Estados Unidos, onde passei alguns dias em Miami, para participar, pela oitava vez consecutiva, de um congresso regional de direito tributário organizado por diversas instituições internacionais, nomeadamente a American Bar Association (ABA), a International Bar Association (IBA), a International Fiscal Association (IFA) – U.S. Branch e o Tax Executives Institute.

Participar desse evento, que reúne operadores do direito tributário de diversos países das Américas do Sul, Norte e Central, além de alguns colegas da Europa, é sempre uma excelente oportunidade para trocar impressões e aprender as novidades em matéria tributária na região, além de, evidentemente, estreitar laços profissionais e de amizade com colegas de diversos países.

Dessa vez regressei muito desiludido. A decadência da América latina é flagrante. Os caminhos políticos adotados pela maioria dos países da região têm se mostrado equivocados em sua generalidade e, no campo do direito tributário, as soluções para financiar máquinas estatais invariavelmente inchadas e ineficientes têm sempre sido as mesmas: aumentos de impostos e perseguição implacável aos contribuintes.

A desilusão com o Brasil acentua-se especialmente quando uma das primeiras declarações de nossa presidente que tomamos conhecimento é uma saudação à mandioca e um elogio à bola como marco evolutivo do homo e da mulher sapiens. O nonsense da fala da mulher sapiens definitivamente confirma que chegamos ao fundo do poço, que o país está mesmo no volume morto.

Como agudamente concluiu Fernando Gabeira em sua última coluna dominical no jornal O Globo: “O país precisa sair do volume morto, reencontrar um nível de crescimento, credibilidade no seu sistema político. Hoje o país é governado por um fantasma de bicicleta e um partido de míseros oportunistas, segundo seu próprio líder, chamado de Brahma pelas empreiteiras”.[1]

O reencontro da credibilidade em matéria fiscal passa necessariamente por uma profunda revisão da forma como têm ocorrido as autuações fiscais no Brasil, principalmente as ditas autuações bilionárias, implacavelmente dirigidas contra toda e qualquer operação realizada pelos maiores contribuintes.

Com efeito, nesse mesmo congresso de Miami foi, por inúmeras vezes, afirmado e reafirmado pelos tax executives que as maiores contingências fiscais das empresas multinacionais, no mundo inteiro, se encontram no Brasil.

São essas mesmas autuações bilionárias que ganharam as manchetes dos jornais por conta da operação zelotes, que paralisou o funcionamento do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

Referidas autuações reclamam créditos tributários constituídos invariavelmente em razão de operações de reorganização societária que, por terem sido planejadas previamente e terem, muitas vezes, também o legítimo intuito de assegurar economia de impostos, passaram a ser acusadas de atos simulados, “puníveis” com tributação contra legem e multas escorchantes.

São autuações que se generalizaram nos últimos dez anos e hoje se repetem aos borbotões, todas com a mesma cantilena de acusações de simulação, abuso de direito, falta de propósito negocial, fraude à lei, tudo para perseguir, punir e arrecadar.

Mas será que já se perguntaram se o contribuinte podia saber previamente à autuação que seu comportamento — na maior parte das vezes obediente às prescrições legais — seria admitido pelo Fisco? Existiria alguma orientação prévia, pública, que explicasse a interpretação fiscal das disposições legais, como um parecer normativo ou um ato declaratório interpretativo? Ou a interpretação fiscal está sendo forjada na sombra das repartições, em que se determina a perseguição a toda e qualquer operação cujo resultado tenha ou possa ter tido uma componente de redução da carga tributária?

Tome-se, por exemplo, o caso da dedução da amortização do ágio contabilizado na aquisição de investimentos.

O direito à dedução de valores a título de amortização de ágio foi consagrado expressamente nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97, cuja existência dependia de requisitos objetivos que, uma vez preenchidos asseguravam ao contribuinte beneficiar-se do direito. Eram eles essencialmente: (i) a aquisição de investimento em sociedade controlada ou coligada com o pagamento de preço superior ao valor do patrimônio líquido (ágio) (art. 7º, III) e (ii) incorporação, cisão ou fusão da pessoa jurídica investida pela investidora (artigo 7º, “caput”), inclusive na hipótese de incorporação reversa (downstream merger) (artigo 8º, “b”).

Nada mais exigia a lei que a ocorrência de um fenômeno aquisitivo de investimento que, no direito brasileiro, pode se operar por distintas modalidades como são os casos da compra e venda, da dação em pagamento, da integralização de capital social, da permuta, da doação. Também não exigia a lei que o fenômeno do ágio ocorresse no Brasil ou no exterior, o que importava é que ele tivesse como fundamento a expectativa de rentabilidade futura, comprovada em demonstrativo arquivado na contabilidade do contribuinte (artigo 20, I e II, parágrafo 2º, “b” e parágrafo 3º do Decreto-lei 1.598/1977, na sua redação original).

Pois bem, o Fisco vem implacavelmente autuando todas as operações que geraram o direito à dedução da amortização de ágio.

Algumas sob a acusação de que as aquisições que não envolveram pagamento em dinheiro estariam fora do escopo da norma. Seria o caso, por exemplo, das operações que envolvem contrapartidas pela entrega de participações societárias, fenômeno assaz frequente no mercado de capitais. Ora, não existia, como se viu, nenhuma disposição legal ou sequer uma manifestação da administração fiscal que orientasse o contribuinte para não contabilizar o ágio quando adquirisse participações societárias por permuta, subscrição de capital em bens ou incorporação de ações. Mas para que mesmo o Estado precisa alertar os contribuintes?

Outras autuações puniram contribuintes que constituíram empresas no Brasil para servirem de instrumento para a aquisição. Nesse caso são acoimadas de empresas-veículo, desprovidas de propósito negocial, constituídas unicamente para adquirir as participações societárias e serem extintas por incorporação em um curto espaço de tempo. Ora, é própria lei que incentiva a criação dessas empresas quando exige para a constituição do direito de dedução a incorporação da pessoa jurídica adquirente pela adquirida ou vice-versa. Adotar um comportamento induzido pelo legislador é simular?

Ainda tem sido recusado o direito à dedução do ágio quando a operação de aquisição envolve empresas do mesmo grupo econômico, mesmo que se tenha realizado pagamento em dinheiro, em condições comutativas estritas, seguindo critérios de mercado. Igualmente reprovadas foram as operações que contemplaram elementos externos, por envolverem multinacionais com estruturas societárias intervenientes residentes e domiciliadas no exterior. Trata-se de restrições inexistentes no texto legal; mas, para que mesmo obedecer à lei quando se quer punir para arrecadar?

O mais interessante é que muitas das restrições invocadas pelos autos de infração tanto não existiam que passaram a constar do texto de medida provisória (MP n.º 627). Referida medida foi convertida na Lei n.º 12.973, de 13 de maio de 2014, que estabeleceu uma nova disciplina para matéria limitando quantitativa e qualitativamente o quantum do ágio fiscalmente dedutível, exigindo laudos mais criteriosos, além de apenas permitir a dedução do ágio por rentabilidade futura (goodwill) na aquisição de participação societária entre partes não dependentes (art. 20, 22 e 25), não aplicando semelhante restrição ao ganho por compra vantajosa (art. 23).

A necessidade de edição de uma nova norma tributária para dispor a respeito da impossibilidade de dedução fiscal de ágio gerado em operações realizadas entre partes relacionadas revela de forma incontestável que tal vedação não existia.

E nem se alegue tratar-se de norma interpretativa, de aplicação retroativa, pois não há no texto da lei, ou mesmo da medida provisória, qualquer ressalva ou sequer indício nesse sentido. Trata-se de norma claramente modificativa, que inova, criando inéditos requisitos para que a dedutibilidade do ágio seja permitida. Inovou para vedar o aproveitamento do ágio interno, antes permitido, porém, ao mesmo tempo, deu cabo à arbitrária posição da Administração fiscal.

O “Estado Islâmico” em que a Administração fiscal se tornou nos últimos anos pune o contribuinte que crê na letra de lei e não adota o comportamento que, no entendimento revelado a posteriori pelo Fisco nos autos de infração, supostamente deveria ter adotado, ainda que divorciado da prescrição legal. Será que poderemos confiar doravante na nova lei ou iguais interpretações restritivas do Fisco-jihadista continuarão a surgir, arrasando patrimônios e reputações, quebrando de uma vez por todas com a credibilidade e a confiança fiscal?

Por isso que dizemos que o problema não está exclusivamente no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, que agora está na UTI, respirando por aparelhos, tentando regressar à normalidade.[2]O problema está primordialmente nas incontáveis autuações fiscais bilionárias que vinham chegando ao Carf.

Se o Estado brasileiro pretende se recuperar da aguda crise em que se encontra precisa urgentemente reconquistar a confiança e a credibilidade dos contribuintes. Para tanto há que se estabelecer um severo e rígido controle da lavratura das autuações fiscais, no mínimo com a prévia publicidade da interpretação das leis pela Administração fiscal.

É inadmissível que o Brasil siga, há tantos anos, sendo um ambiente inseguro de negócios e investimentos, com os maiores contenciosos fiscais do planeta, porque a lei tributária é interpretada pelas autoridades de lançamento contra os contribuintes, única e exclusivamente para perseguir, punir e arrecadar, sem que esses sequer saibam da existência de semelhante interpretação.

Do contrário seguiremos sendo o triste país de governantes que acreditam que os símbolos da evolução são a mandioca e uma bola ao invés da segurança jurídica dos contribuintes.

 


[1] Artigo intitulado “Reflexões sobre o volume morto”, in O Globo, Segundo caderno, p. 2, 28/6/2015.

[2] Sobre a crise que se instaurou no CARF e suas causas reais recomendo a leitura do excelente artigo de Breno Vasconcellos, intitulado As sete falácias sobre o CARF, cfr. http://jota.info/as-sete-falacias-sobre-o-carf

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