Práticas autoritárias

Princípio da presunção da culpa é, no Brasil, erga omnes

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26 de junho de 2015, 17h11

[Artigo originalmente publicado no jornal Valor Econômico desta sexta-feira (26/6)]

"Erga omnes" é uma expressão do latim, utilizada com frequência no meio jurídico, para designar um ato ou lei que atinge a todos os indivíduos igualmente. Foi o nome dado pela Polícia Federal à operação que resultou na prisão de Marcelo Odebrecht, presidente da maior construtora do Brasil, e Otávio Marques Azevedo, presidente da Andrade Gutierrez. A mensagem é clara: até mesmo as maiores empresas e seus executivos não escapam de um ato jurídico.

A população aplaude as ações da Justiça Federal. Crê-se que a impunidade no Brasil se aproxima do fim. O julgamento do mensalão condenou políticos e empresários. Agora, repete-se a dose no processo da "lava jato". Executivos e empresários estão encarcerados, políticos também. Foi disseminada a sensação de que nem mesmo os mais poderosos têm como escapar dos rigores da lei.

O princípio que rege o funcionamento de nosso processo penal é o inquisitorial. Sim, nosso sistema vem da tradição da Inquisição, assim como vem a delação premiada. Nele, busca-se a verdade "real" dos fatos. O que a justiça busca saber é o que realmente aconteceu. Daí a investigação policial e as ações do Ministério Público.

Aqui, diferentemente do que acontece nos Estados Unidos, onde o indivíduo é julgado pela sociedade e seus representantes, o Estado é separado da sociedade e a fiscaliza permanentemente, por meio da ação de seus funcionários, em busca de transgressões e erros. Funcionários do Poder Executivo obtêm testemunhos e se utilizam de procedimentos investigatórios para colocá-los nos autos de um inquérito inicialmente sigiloso para o acusado. O inquérito é elaborado, escrito e homologado por uma autoridade cartorária, que, obviamente, lhe dá fé pública.

Nas mãos do promotor, caso ele considere o inquérito satisfatório, a denúncia é feita. Apenas nesse momento o acusado toma conhecimento da acusação. Ora, nesse estágio já há uma avançada presunção de culpa, devidamente consolidada por escrito. É evidente que o resultado mais provável de um procedimento dessa natureza é a condenação do acusado. Aliás, o réu tem agora duas opções: ou confessa, não para interromper o processo, como é o que acontece nos Estados Unidos, mas para atenuar sua pena, ou, se não confessar, passa a enfrentar os argumentos com fé pública já estabelecidos contra ele nos autos do processo.

Como no Brasil o réu pode mentir para se defender – a mentira só é crime para o réu no caso dos chamados crimes contra a honra -, pesará sempre contra a defesa a suspeição de estar mentindo. Os advogados se referem ao uso da mentira por meio do eufemismo "apresentar outra versão para os fatos". Impera aqui a lógica do contraditório. Não há fatos, mas tão somente indícios e versões. De um lado, a versão do Estado, gestada dentro do Poder Executivo, por meio da ação investigatória de policiais e consolidada no âmbito do inquérito, que tem fé pública. De outro lado, a versão do réu e de seu advogado.

Toda vez que a versão e alegações do réu divergem do que está escrito nos autos do inquérito, têm que ser provadas. Eis o etos inquisitorial de nosso processo penal. O réu precisa provar sua inocência. Isso é em tudo oposto ao sistema americano, em que o povo, por meio da Justiça, precisa provar a culpa do acusado. Como no Brasil o réu pode mentir para se defender, suas afirmações têm sempre a mácula da mentira toda vez que não estiverem em consonância com a apuração sigilosa e que tem fé pública, já consolidada nos autos do processo.

Como o princípio que rege o processo penal é a busca da verdade "real" ("real" de realeza, derivada de rei), a confissão é a rainha das provas. Sim, desde que a confissão coincida com o que foi apurado pela polícia e denunciado pela promotoria. Quem confessa merece a salvação. Quem não confessa e é culpado vai para o inferno. Evidentemente, o processo penal brasileiro é autoritário. Pela primeira vez, figuras da elite política e empresarial brasileira vêm sendo submetidas a tal autoritarismo, que já é um velho conhecido da população pobre.

Há, portanto, duas versões. Aquela elaborada pela polícia e consolidada pelo Ministério Público, que, nunca é demais repetir, tem fé pública. E a versão do réu, sobre a qual pesam as suspeitas de se tratar de algo mentiroso. Diante de inúmeros indícios contraditórios, caberá ao juiz decidir quais indícios o convencem, quais não o convencem. Depois disso, o juiz justifica a sentença. Trata-se do livre convencimento motivado do juiz.

Praticamente, todos que se tornam réus no Brasil sabem da enorme dificuldade que terão de vencer para escapar da condenação. Assim, quando um juiz acena com a possibilidade de redução da pena no caso de realização de uma delação, o réu tem grande incentivo para aceitar a proposta. Note-se que o réu faz a delação antes mesmo de ser condenado. Ou seja, a delação premiada pressupõe a confissão do crime. Primeiro, o réu confessa sua culpa. Em seguida, delata um suposto cúmplice de seu crime. Na Inquisição e até mesmo recentemente no Brasil, a tortura era utilizada para se obter a confissão. É possível afirmar que as péssimas condições prisionais para aqueles que são preventivamente presos durante uma investigação são o equivalente funcional da tortura inquisitorial.

Nosso sistema em tudo difere do sistema acusatorial americano. Lá não há nem a busca de uma verdade "real", nem a lógica do contraditório. Há, sim, a busca da verdade formal, aquela que constará do processo e será resultado de uma barganha entre as partes. Há também as diferentes visões e perspectivas da promotoria e da defesa, que se tornam uma argumentação demonstrativa, na qual a mentira é crime para o réu e, consequentemente, para seu advogado, e o objetivo é a busca do consenso. Diante disso, a confissão de culpa é de pouca utilidade para o processo. Não passa de uma explicitação da concordância com determinada acusação já previamente negociada entre a promotoria e a defesa. Nos Estados Unidos, ser julgado é um direito. O cidadão americano invoca o direito de ser julgado pela Justiça toda vez que não se declara culpado. Caberá à Justiça provar sua culpa. Um exemplo concreto serve para ilustrar esta lógica.

Trata-se do caso de um chicano que em San Francisco se envolveu em uma briga com um segurança de uma boate. O chicano, que falava mal o inglês, foi impedido de entrar na boate por um segurança bem mais alto e forte do que ele. O segurança afirmou que a boate exigia determinados trajes de seus frequentadores. O chicano insistiu em entrar e os dois se envolveram em uma luta corporal na qual o chicano esfaqueou o segurança. A polícia foi chamada e o chicano foi preso em flagrante. O segurança foi hospitalizado e se recuperou.

Diante do juiz, o promotor alegou que o chicano cometera tentativa de homicídio ao esfaquear o segurança desarmado. O réu alegou legítima defesa, posto que o segurança era bem mais forte do que ele. O chicano afirmou ter sido agredido pelo segurança e mostrou marcas em seu corpo. Além disso, por causa de suas limitações com a língua inglesa, alegou não entender completamente o que o segurança falava, considerando suas palavras preconceituosas e ofensivas. O juiz afirmou que o caso não possuía nem a relevância nem a gravidade que merecessem um processo longo e custoso e solicitou que as partes chegassem a um acordo.

O promotor recuou da acusação de tentativa de homicídio e mudou-a para lesão corporal grave, o que implicava pelo menos dois anos de prisão. A defesa e o réu recusaram a acusação e solicitaram o julgamento. Note-se aqui a não confissão do crime e o direito de ser julgado e, portanto, de se defender. Na presença do juiz, que insistiu no acordo, a promotoria recuou novamente e propôs a acusação de lesão corporal leve. Diante dessa acusação, o réu se declarou culpado e a pena foi de um ano de prisão com direito a sursis. Este caso foi relatado por Roberto Kant de Lima no texto "Sensibilidades Jurídicas, Saber e Poder".

O caso do chicano nos leva a refletir sobre a busca da verdade "real". Podemos nos perguntar sobre o que realmente ocorreu, se foi tentativa de homicídio, se foi lesão corporal grave, se foi lesão corporal leve ou, ainda, se foi legítima defesa. Não há algo que "realmente" tenha acontecido. É impossível saber. Talvez nem mesmo a vítima da agressão e seu perpetrador tivessem sido capazes de saber o que realmente aconteceu. As partes apenas barganharam e, coordenadas pelo juiz, definiram que a verdade deles, naquelas circunstâncias, era a lesão corporal leve.

Note-se que tudo foi barganhado: a verdade jurídica que prevaleceu, o tipo penal e a pena. Houve a aceitação parcial da verdade da promotoria e da verdade do acusado. Nada mais distante do que o que ocorre no Brasil: a busca por uma verdade "real".

Aqueles que defendem o ideário liberal bem sabem que nosso processo penal, em contraste com o sistema americano, nada tem de liberal. No Brasil, o processo existe para proteger o Estado e o governo da sociedade. É o todo-poderoso governo quem acusa os indivíduos, os fiscaliza e os investiga de maneira sigilosa, elaborando-se um processo do qual o réu dificilmente escapará da condenação. Nos Estados Unidos, ao contrário, o juiz representa o povo e ser processado é um direito. O cidadão americano que não se declara culpado tem o direito de solicitar à Justiça que prove sua culpa. Lá, cabe à Justiça o ônus de provar a culpa. Aqui, cabe ao réu o ônus de provar sua inocência.

O princípio da presunção da culpa é, no Brasil, erga omnes, ou seja, vale para todos. O que de mais grave acontece agora é que está se formando uma sólida jurisprudência a favor de nosso etos jurídico inquisitorial. Ele vem sendo aplaudido por aqueles que se consideram adversários dos atuais réus, mas o fato é que essa jurisprudência autoritária valerá para todos, indistintamente. Assim, em vez de aproveitarmos o que está ocorrendo para reformar as práticas jurídicas autoritárias, estamos legitimando-as ainda mais. Lastimável.

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