Senso Incomum

O Brasil revive a Escola do Direito Livre! E dá-lhe pedalada na lei!

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25 de junho de 2015, 8h00

Spacca
Caricatura Lenio Luiz Streck (nova) [Spacca]Notícia de grande sucesso no ConJur dá conta de decisão da Turma Regional de Uniformização (TRU) dos Juizados Especiais Federais da 4ª Região — em que ficou afirmada jurisprudência no sentido de que em casos de coexistência de relação conjugal e extraconjugal, tanto a mulher como a companheira devem receber a pensão, determinando que a pensão por morte de um homem seja dividida entre sua mulher e seu amante. No caso, a parte pediu pensão por morte de segurado com quem mantinha uma relação extraconjugal. A autora alega que o “concubinato impuro” não tira dela o direito ao benefício. Ao analisar o pedido, a TRU deu razão à amante, prevalecendo o entendimento da 2ª Turma Recursal de Santa Catarina, que concedeu pensão em caso semelhante. Verbis:

“Quando se verificam presentes alguns pressupostos tais como a afetividade, a estabilidade e a ostentabilidade, é possível presumir a boa-fé da requerente, de maneira que em tais casos não há obstáculo ao reconhecimento de entidade familiar, no modelo estruturado sob a forma de concubinato”.

Desnecessário dizer que nem o Código Civil e nem a Constituição autorizam esse entendimento. O caso, na verdade, trata de concubinato adulterino, que não dá direito a nada. Mas, então, se a lei não permite e tampouco a Constituição dá maiores pistas acerca do que foi decidido, por que o Judiciário acredita que pode decidir desse modo?[1] Há vários modos de responder a isso. Em Verdade e Consenso explico nas primeiras 30 páginas as cinco recepções equivocadas que fizemos pós-Constituição de 1988, para onde remeto o leitor interessado no aprofundamento do assunto. Aqui, nos limites de uma coluna, tentarei explicar por outro caminho.

Todos sabem que o século XIX foi o século da razão. A razão que foi “aprisionada” na lei. Daí três tipos de positivismo: o francês (exegetismo), o alemão (jurisprudência dos conceitos) e o inglês (jurisprudência analítica). A esses tipos de positivismo houve reações das mais variadas (explico isso em Hermenêutica Jurídica em Crise). Aqui, fico com uma delas, a Escola do Direito Livre, do início do século XX. Fundada por Hermann Kantorowicz  (1906, A Luta pela Ciência do Direito), essa doutrina defende — atenção! para a época — a plena liberdade do juiz no momento de decidir os litígios, podendo, até mesmo, confrontar o que reza a lei. O juiz não estaria lançando mão apenas do seu poder decisório, mas, mais do que isso, a sua função de legislador, seu poder legiferante para encontrar aquilo que ele, juiz, percebe como “o justo”. Bingo. E binguíssimo. Dizia-se da Escola do Direito Livre: Escola do Direito Livre…da Lei!

Qual é a diferença do que se vê hoje por aí? Cada um decide como quer. Cada um busca o seu justo. Inventam-se “princípios” como o da conexão para poder encontrar o Santo Graal da justiça: o “princípio da verdade virtual”, vasculhando no mundo virtual o que não foi demonstrado no mundo…real.  Ao demais, concede-se usucapião de terras públicas, em flagrante violação dos limites semânticos da Constituição. Concedem-se meses a mais de licença maternidade. Em nome de sentimentos de afeto, amor, etc e não de princípios ou regras faz-se uma livre investigação do direito. Poderia elencar um enfiada de decisões contra-legem, resultantes dessa revificação desse tipo de doutrina interpretativa (“tipo” Escola do Direito Livre, Realismo Jurídico, Livre Investigação, etc). E assim também se ensina. Nos cursos preparatórios, é comum que os professores digam: se for concurso para o MP, diga isso; se for para a Defensoria, aquilo; e, se for para a Magistratura, bem, aí tanto faz, contanto que você “fundamente” (sic). Preciso dizer mais?

A questão é: por que livrar o direito da lei e da Constituição? A Constituição não é boa? Não é ela que estabelece, inclusive, o poder do Poder Judiciário? Mas não é ela que obriga o judiciário a fundamentar? E não é nela que está escrito que o legislativo legisla e o judiciário julga, aplicando…a lei feita pelo legislativo? Aliás, como disse dia desses o ministro Marco Aurélio: A CF coloca o Legislativo e o Executivo antes do Judiciário. Bingo! Corretíssimo, ministro!

No caso concreto decidido pela TRU da 4ª Região, alguém pensou na situação da mulher do defunto-amante? Mas, por que o direito para e em favor da amante? Amante integra, então, a família? É um novo conceito de família, agregando este a tantos outros que inventam todos os dias? Seria a “familia a concubitu adultera”? Perguntaram para a esposa (de “papel passado”) o que ela sente ou pensa disso? O afeto em que está assentado o princípio da afetividade é em relação a quem? Com certeza, não diz respeito à esposa legitima, certo? O afeto, neste caso, é de mão única?

Ora, não há sustentação paradigmática em dizer que existe “direito de exigir afeto” ou “que o afeto gera direitos”. Isso é o mesmo que dizer que “princípios são valores”. Por intermédio do “direito” (Constituição, leis) podemos exigir indenização por descumprimento de deveres e de obrigações jurídicas, mas não de sentimentos. Pretender forçar alguém a gostar ou deixar de gostar de alguém ou mesmo pretender exigir juridicamente (leia-se, coercitivamente) esse ou aquele sentimento seja em face de alguém, de uma instituição ou mesmo do próprio direito, é autoritarismo. Aliás, por que será que a Constituição de 1988, a Constituição cidadã, que guarda em seu texto o ideal de vida boa (a eudaimonia de que falavam os gregos) não tratou disso? Simples: Porque a Constituição trata de direitos. Por isso ela trás em seu bojo um capítulo de “Direitos” Fundamentais e não de outra coisa. Direito é uma “coisa deontológica”. E para um princípio ser jurídico, tem de ser igualmente deontológico. Deve funcionar no código lícito-ilícito. Se não for assim, não passa de mera retórica.

A propósito, como ficam os casos em que a amante sabe que o sujeito é casado (na verdade, quando é que não sabe?)? Neste caso, usaria a decisão da TRU contra ela mesma, contrapondo o consolidado caso Riggs versus Palmer (1889, New York)  pelo qual Dworkin construiu a sua teoria dos princípios, citada mundo a fora  , de que ninguém deve se beneficiar de sua própria torpeza, indagando: nos casos de a amante saber, não é uma forma de obter benefício indevidamente? Como fica uma decisão desse jaez em relação à coerência e à integridade do direito?  Essa decisão unificada servirá para os casos em que a amante sabe que o sujeito-amante é casado? Ainda: por que razão as esposas legítimas devem transferir recursos para fazer a felicidade das amantes? Cartas para a coluna.

Numa palavra final: a difícil (e antipática) tarefa de fazer teoria crítica.
Na coluna da semana passada abordei a questão da criação, por parte de alguns membros do judiciário, do tal “princípio da conexão”. Muitos juízes se solidarizaram comigo, dizendo que, de fato, o tal “princípio” é um exagero. Mas sei que outros ficaram do lado de quem criou o tal standard conectivo. Dizem que o futuro está aí. E que quase todo o judiciário aderirá a essa busca da ciber-verdade. Fico arrepiado só de pensar nisso. Para ser mais simples: fui trucidado por parcela da magistratura nacional por ousar criticar mais esta inventividade judiciária. Imagine-se criticar o judiciário… Quem ousa fazer isto é um implicante, etc. Pois é.

Faz escuro, mas eu canto. Sei que é antipático ficar criticando o ativismo judicial. Sim, sei que nas salas de aula o ativismo é festejado pela maioria dos professores (principalmente por aqueles que nem sabem do que estão falando e que, sem PowerPoint, não conseguem falar cinco minutos sobre a matéria) e dos alunos. Mas não faz mal. Depois de 28 anos de Ministério Público, em que sempre fui um Promotor-Procurador de Direito e examinei as causas com imparcialidade na medida em que grande parte de minhas peças foram favoráveis aos acusados (isso não é bom, nem ruim; é que existiu inépcia em acentuadíssimo percentual de denúncias e a formação da prova mostrou-se frágil) e ter escrito mais de 40 livros, publicado mais de 400 artigos e capítulos de livros e ter feito mais de 600 conferências no Brasil e no exterior penso que não só posso, como devo, fazer esse tipo de crítica. É um dever, digamos assim, cívico. Republicano!

Minhas críticas são em favor do Direito. São pela preservação da Constituição. Estranhamente, isso tem me rendido críticas no sentido de que eu seria… um positivista, porque estaria propondo, diuturnamente, o respeito aos limites semânticos da legislação. Já disse muito sobre isso. Remeto, de novo, a quem interessar possa, ao meu texto Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? (clique aqui para ler). Já não tenho paciência para explicar tudo isso de novo.

Quero apenas dizer que, em tempos de democracia — não sei até quando, porque temo que a leniência para com a lei e as Instituições possa gerar sístoles e diástoles e que sejamos apanhados em uma delas de forma inapelável (e os juristas terão uma culpa enorme se isso acontecer, porque ajudaram a fragilizar o direito)  não há mais sentido em falar de coisas que lembram uma espécie de Woodstock do direito, como direito achado na rua, direito alternativo, livre investigação científica, realismo jurídico e Escola do Direito Livre (livre da lei…!). Uma Constituição democrática espanta voluntarismos e ativismos do tipo “livre interpretação-criação”. Por isso, insisto: “livrar-se da lei” era uma necessidade quando esta representava o arbítrio; mas quando a lei representa a democracia, devemos aplicá-la. Quando dela não gostamos, não a torturemos. Não se faz justiça a golpe de caneta. E nem se dá pedalada na lei. E Pindorama é pródigo nisso.

Vou dizer de novo aos meus críticos: Sou um dos mais ardorosos defensores da jurisdição constitucional. Basta lerem meus livros e textos. Em O que é isto  decido conforme minha consciência faço uma verdadeira ode à jurisdição (quem não quiser abrir o livro, basta ler a quarta capa!). Mas isso não quer dizer que o Judiciário possa criar direito ou legislar, como se pode ver todos os dias e, especialmente, na decisão ora sob comento.

De todo modo, como sofro de LEER, direi, pela enésima vez: é claro que a interpretação judicial é criativa em certo sentido, já que resolve um caso inédito, irrepetível, e não um caso passado. Mas a criação/construção feita pelo juiz tem limites. E, em tempos de direito e democracia, é a respeito destes que temos de nos debruçar. Pensem sempre na feliz metáfora do romance em cadeia: o juiz não é um tradutor e nem um contista: é, isso sim, o criador de um capítulo novo num livro que já existe (e que é longo e, lido sob a sua melhor luz, virtuoso). Essa é a responsabilidade do intérprete, do juiz. Ninguém quer saber se ele acha isso ou aquilo mais justo ou mais proporcional se este argumento não puder ser reconduzido, de forma não arbitrária, à integridade do Direito.

E, para encerrar, digo: sim, um juiz pode deixar de aplicar uma lei (uma regra jurídica). Sempre sustentei isso. Mas só em seis hipóteses. Fora disso, repristinará coisas serôdias como a Escola do Direito Livre e outros quetais. Verbis, as seis hipóteses, que estão em Verdade e Consenso e Jurisdição Constitucional e Decisão Jurídica:

a) quando se tratar de inconstitucionalidade (nesse sentido, veja-se a Recl 2645 do STF);  b) quando for o caso de aplicação dos critérios de resolução de antinomias; c) quando aplicar a interpretação conforme à Constituição (verfassungskonforme Auslegung); d) quando aplicar a nulidade parcial sem redução de texto (Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung); e) quando for o caso de declaração de inconstitucionalidade com redução de texto; f) quando for o caso de deixar de aplicar uma regra em face de um princípio, entendidos estes como normas (deontológicos), aplicáveis no código lícito-ilícito e não como standards retóricos ou enunciados performativos “tipo princípio da conexão, da afetividade, da eventual ausência de plenário, da rotatividade”, etc.

É isso. Simples e complexo assim. 

Post scriptum: Edifício…É di-fí-ci-o… é-fá-cio!
No fundo, quando me chamam de positivista por sustentar a força normativa da Constituição e sustentar “limites semânticos da lei” (algo como o que diz Gadamer: “se queres dizer algo sobre um texto, deixe primeiro que o texto te diga algo), sinto-me como o sujeito da propaganda da Amanco, que diz para o companheiro que agora está fazendo “edifício” e o outro entende “é difícil” e se instaura uma bela confusão… semântica. Vejam o link: https://www.youtube.com/watch?v=AWJwc5pA4AM


[1] Observação (para mostrar que investigo isso e me interesso pelo assunto): não estão informados  os casos que geraram a cadeia de DNA  do “enunciado”. Mas “presumir boa fé” dá a entender que a “amante” desconhece a existência da relação “oficial”, é isso? De fato, conheço precedentes que tratam das chamadas “uniões paralelas”, cujo reconhecimento jurídico depende, dentre outras coisas, de publicidade e estabilidade. É sim possível que o sujeito mantenha uma união do RS e outra no RN, sem que uma saiba da outra, ambas públicas, estáveis e, até, admitamos, com intuito de constituir família (filhos etc.). Isso é união estável paralela (ao casamento ou a outra união estável). Disso  podem, de fato, advir direitos, não apenas civis em sentido estrito, mas também decorrentes da constituição de família. Mas, atenção: dar isso tudo de barato, como estou dando, é diferente de reconhecer direitos igualitários, decorrentes da constituição de uma unidade familiar (que, vá lá, para além dos aspectos institucionais e contratuais, pode sim ser entendida como o tal “núcleo de afeto”, tanto que esse afeto seja de algum modo qualificado juridicamente), entre a esposa do defunto e a amante. Vejamos bem: o homem ou a mulher podem ter 50 amantes, que nem eu, nem o Direito (no sentido de que, para ser legítimo, o direito deve preservar, na linha de Dworkin, um direito individual à independência ética do indivíduo, uma responsabilidade inalienável pelas suas escolhas pessoais, por eleger aquilo que entenda por valioso, ou que o faça feliz), temos nada com isso. Entretanto, a situação muda de figura quando eu não quero discutir se eu tenho ou não o direito de fazer isso ou aquilo mas, isso sim, se eu, por fazer isso ou aquilo, me tornar sujeito de determinados direitos até então inexistentes. Aliás, um mal sério e comum ao direito brasileiro. Que o diga a apropriação indébita do conhecido right to pursue your own happiness, entendido no direito americano como um direito natural e inalienável, que na cabeça de alguns juristas brasileiros gera um direito prestacional (!) ao sujeito, como se a comunidade política, o Estado, fosse(m) responsáveis por disponibilizar-lhe os meios de se tornar… feliz!

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