Regras necessárias

Fisco não pode acessar dados bancários com base em argumentos genéricos

Autor

  • Carolina Mizuta

    é advogada membro do Instituto de Direito Tributário do Paraná membro do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da FGV Direito SP e aluna do Mestrado Profissional da FGV Direito SP.

24 de junho de 2015, 7h26

O acesso do Fisco aos dados bancários dos contribuintes já é uma realidade no Brasil. Considerando-se o atual cenário mundial — com destaque à Convenção Multilateral de Assistência Mútua em Matéria Tributária, da OCDE — a era do sigilo bancário na concepção clássica parece ter terminado. Ao invés de se insistir num sigilo absoluto, em desuso em termos globais, mais eficaz mostra-se desenvolver instrumentos de manutenção de garantias mínimas ao contribuinte, de modo a não se permitir a banalização e abusos na quebra do sigilo. Nestas breves considerações, sem ignorar a existência de acalorado debate sobre a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/2001, pretende-se propor uma visão mais pragmática sobre o tema.

No Brasil, a Lei Complementar 105/2001, em seu artigo 6º, permitiu que as autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios examinassem — sem necessidade de ordem judicial prévia — documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras. O fato do STF não ter se posicionado definitivamente sobre a constitucionalidade desta norma[i], aliado à ausência de qualquer medida cautelar suspendendo sua eficácia, permitiu que as Autoridades Fiscais, em especial a RFB, tivessem acesso às informações protegidas por sigilo bancário nos últimos anos. Muito embora esta situação possa ser revertida em futuro julgamento com eficácia erga omnes no Supremo[ii], é inevitável reconhecer a pouca probabilidade disso ocorrer.

A realidade brasileira segue nítida tendência mundial. Um dos principais focos de atuação da OCDE tem sido viabilizar o intercâmbio automático de informações fiscais e bancárias, com o claro e salutar objetivo de combater evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Desde 2009 encontra-se extinta a “lista negra” da OCDE, ato que indica que todos os países supervisionados pela Organização deixaram de negar sistematicamente a adoção de princípios para a troca de informações. Os Estados Unidos, por sua vez, impuseram o Foreign Account Tax Compliance Act. Negar esta realidade global, de troca de informações, traria ao Brasil graves consequências, como sanções econômicas e políticas, mesmo que indiretas, para as quais a nação não está preparada.

A provável irreversibilidade do acesso às informações bancárias dos contribuintes brasileiros — sem determinação judicial — denota a urgência de regras claras de operacionalização do acesso a estes dados. Há que se aprofundar o estudo deste tema. Neste aspecto, relevante observar como são vagos os requisitos estabelecidos pelo artigo 6º, da Lei Complementar 105/2001, para acesso às citadas informações: (i) existência de processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, e (ii) indispensabilidade do exame destas informações pela autoridade administrativa competente.  

No âmbito Federal, o Decreto 3.724/2001, com alterações posteriores, regulamenta o procedimento a ser adotado pela RFB para a obtenção dos dados bancários. Apesar de exigir motivação expressa na requisição, fixar procedimentos de garantia de sigilo e remeter aos dispositivos legais que garantem a punição de agente que utilizar indevidamente as informações, há muitos aspectos em aberto, como a absoluta ausência de descrição daquilo que seria considerado “hipótese de indispensabilidade”, permitindo-se uma margem muito ampla de discricionariedade pelos agentes. Ainda mais grave é a situação nos Estados e Municípios, os quais, em sua grande maioria, sequer possuem norma regulamentadora do acesso às informações bancárias. Outro aspecto carente de detalhamento é a forma como as instituições financeiras devem franquear a informação, a qual está longe de ser uniformizada.

O uso dos dados sigilosos e sua interpretação pelo Fisco em lançamentos tributários também merecem atenção. Não têm sido raros autos de infração fundamentados em presunções baseadas nos dados bancários, os quais impõem aos contribuintes produção de prova negativa e/ou inversão de ônus da prova. Tratar todos os créditos em conta corrente como receitas, por exemplo, é algo comum. Muito embora a legislação em vigor não admita esta conduta, exigindo da Autoridade Fiscal a demonstração efetiva do fato gerador do tributo, o desenvolvimento de estudos neste aspecto específico é necessário. Eventual autorização para uso de informações bancárias não significa permissão para lançamentos baseados em presunções, naturalmente.

Conclui-se que, em sendo inevitável a relativização do sigilo bancário, imprescindível desenvolver mecanismos que tragam garantias mínimas aos contribuintes, de modo que não haja desvio de finalidade e abuso de poder. O perigo não está no acesso às informações bancárias pelo Fisco, mas sim no uso desmesurado desta ferramenta, sem critérios para requisição e sem preparo para sua utilização. Fica o desafio aos estudiosos do direito, advogados de contribuintes ou representantes do Fisco: promover uma regulamentação séria e suficiente para o tema.

 


[i] O julgamento do RE 389.808/PR pelo STF deu-se em controle difuso de constitucionalidade, com eficácia decisória inter partes.

[ii] Há seis ADI em trâmite no Supremo – Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 2.386, 2.389, 2.390, 2.397, 2.406 e 4.006.

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