Discussão constitucional

Supremo definiu elementos indispensáveis para legalidade das OSs

Autores

  • Luis Eduardo Patrone Regules

    é advogado pós-graduado em Direito do Estado (PUC-SP) e professor do Curso de Especialização em Direito Constitucional (PUC-SP).

  • Alberto Shinji Higa

    é procurador do município de Jundiaí/SP professor em programas de graduação e pós-graduação em Direito mestre em Direito do Estado - PUC/SP doutorando em Direito do Estado - USP especialista em Direito Tributário -PUC/SP especialista em Direito Empresarial - Mackenzie/SP membro fundador associado do IBEDAFT membro do Conselho Editorial da Editora Thoth e ex-Assessor de Subprocuradora-Geral da República (PGR/DF - MPF).

23 de junho de 2015, 6h42

Recentemente, o Plenário do Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923[1], ajuizada com o objetivo de ver declarada a inconstitucionalidade de toda a Lei federal 9.637/1998, que implantou o modelo de parceria entre o Poder Público e as entidades qualificadas como “Organizações Sociais”, e do inciso XXIV do artigo 24 da Lei 8.666/93, que autorizou a dispensa de licitação para a celebração de contratos de prestação de serviços com as organizações sociais, qualificadas no âmbito das respectivas esferas de governo, para atividades contempladas no contrato de gestão.

Embora a matéria de fundo contida na ADI diga respeito tão somente às Organizações Sociais, já tivemos a oportunidade de registrar que o tema está inserido num contexto de maior abrangência e de suma importância para o alcance dos objetivos do Estado brasileiro. Qual seja, no contexto dos limites da atividade administrativa de fomento às organizações da sociedade civil com base na Constituição da República[2].

Sob tal perspectiva, a leitura atenta do acórdão do STF revela não apenas avanços no tocante à temática proposta, mas, também, acena para certas fragilidades e paradoxos que bem evidenciam o longo caminho a ser percorrido para adequada disciplina das parcerias entre a administração pública e as organizações da sociedade civil. É o que tentaremos demonstrar a seguir.

De início, anotamos que o cotejo entre o voto da lavra do ministro Ayres Britto, relator da ADI, e do voto condutor do acórdão, do ministro Luiz Fux, revela uma convergência de entendimento no que tange aos diversos aspectos dessa relação jurídica, cabendo destacar, em apertada síntese, a compreensão comum no sentido de que:[3] a) se trata de relação jurídica de parceria travada entre Poder Público e organização da sociedade civil, no âmbito da denominada atividade administrativa de fomento, autorizada pela Lei Maior; b) o contrato de gestão possui típica natureza jurídica de convênio (figura clássica)[4], com todas as características inerentes a este tipo de ajuste; c) na esfera dos serviços públicos sociais a atuação das entidades privadas sem fins lucrativos se dá de modo complementar, sem que isso importe na substituição da prestação direta dos serviços públicos sociais a cargo do Estado pela prestação indireta, mediante o fomento, na forma delineada pelo Texto Constitucional; d) as exigências de procedimentos (i) de qualificação da entidade, (ii) para a celebração do contrato de gestão e (iii) para a dispensa de licitação para contratações (Lei 8.666/93, artigo 24, XXIV) e de outorga de permissão de uso de bem público (Lei nº 9.637/98, artigo 12, parágrafo 3º) conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF; e) o procedimento para a celebração de contratos pela Organização Social com terceiros, com recursos públicos, bem como o procedimento para a seleção de pessoal pelas Organizações Sociais sejam conduzidos de forma pública, objetiva e impessoal, com observância dos princípios do caput do artigo 37 da CF, e nos termos do regulamento próprio a ser editado por cada entidade; f) seja afastada qualquer interpretação que restrinja o controle, pelo Ministério Público e pelo TCU, da aplicação de verbas públicas.

Não há dúvidas de que a “interpretação conforme” adotada pelo Plenário do STF sinaliza avanços na temática do relacionamento entre Estado e Terceiro Setor, num patamar que melhor se ajusta aos princípios republicanos, especialmente se considerarmos as fragilidades da legislação infraconstitucional sobre a matéria. Não obstante há de se reconhecer que parcela significativa dos procedimentos indicados no acórdão já vinha sendo incorporada, ainda que de forma esparsa e progressiva, pelo ordenamento jurídico pátrio[5].

Por outro lado, parece-nos que o voto condutor do acórdão traz em si paradoxos que merecem redobrada atenção (tratando-se de pontual divergência com o voto proferido pelo Ministro Ayres Britto), vez que se relacionam diretamente com os limites constitucionais para a intervenção do Estado no domínio social.

Deveras, de acordo com o entendimento majoritário que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, compete aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta. É o que se extrai do voto condutor do Acórdão:

“Em outros termos, a Constituição não exige que o Poder Público atue, nesses campos, exclusivamente de forma direta. Pelo contrário, o texto constitucional é expresso em afirmar que será válida a atuação indireta, através do fomento, como o faz com setores particularmente sensíveis como saúde (CF, artigo 199, parágrafo2º, interpretado a contrario sensu – “é vedada a destinação de recursos públicos para auxílios ou subvenções às instituições privadas com fins lucrativos”) e educação (CF, artigo 213 – “Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que: I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades”), mas que se estende por identidade de razões a todos os serviços sociais”.

(…)

“Disso se extrai que cabe aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, desde que, por qualquer modo, o resultado constitucionalmente fixado – a prestação dos serviços sociais – seja alcançado. Daí porque não há inconstitucionalidade na opção, manifestada pela Lei das OS’s, publicada em março de 1998, e posteriormente reiterada com a edição, em maio de 1999, da Lei nº 9.790/99, que trata das Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, pelo foco no fomento para o atingimento de determinados deveres estatais”.

Desse modo, embora a aludida decisão reconheça, de início, a atuação complementar das organizações da sociedade civil, mediante a atividade administrativa de fomento – portanto de cunho não substitutiva  à atuação direta do Estado por meio da prestação de serviços públicos –  posteriormente  o precedente parece reduzir o espectro de tal premissa na medida em que confere aos agentes democraticamente eleitos a opção entre a atuação direta (prestação de serviços públicos pelo Poder Público) ou a atuação indireta (prestação dos serviços públicos sociais por meio da atividade administrativa de fomento), legitimando assim essa decisão pela  via do critério do resultado[6].

Em outras palavras, ao se admitir, repise-se, que compete aos agentes democraticamente eleitos a definição da proporção entre a atuação direta e a indireta, fundamentalmente pelo critério do resultado, estaria a se aceitar, por exemplo, a prestação de serviços públicos de saúde e educação diretamente pelo Estado numa proporção de 10%, reservando 90% para a execução indireta, por meio das organizações sociais, mediante atividade de fomento, desde que atendidos os resultados almejados. Ao se elevar ao extremo referido critério, revelar-se-á uma subversão da lógica constitucional da atuação complementar da sociedade civil nestes campos. Este ponto, portanto, mereceria reflexão mais detida à luz do próprio Texto Constitucional.

Outro paradoxo que pode ser extraído do v. acórdão diz respeito ao regime jurídico a ser observado nas referidas relações de parceria. Como se sabe, as organizações da sociedade civil, via de regra, por não integrarem a administração pública direta ou indireta, pessoas jurídicas de direito privado que são, criadas por iniciativa própria, estão subordinadas ao regime jurídico de direito privado, salvo a derrogação por normas de direito público, o que se justifica, sobretudo, em virtude do manuseio de recursos públicos.

Assim, tomando-se como exemplo a questão atinente à responsabilidade civil extracontratual, em regra, o fato de receberem recursos públicos não altera a natureza da responsabilidade da entidade e, de igual modo, não atrai a responsabilidade solidária do Estado fomentador. Vale dizer, uma entidade sem fins lucrativos que tenha recebido recursos públicos para a execução de um projeto responde usualmente por dolo ou culpa perante terceiros[7], o que atrai apenas a responsabilidade subsidiária do órgão fomentador.

No entanto, no caso específico das Organizações Sociais, ainda que possamos admitir tais parcerias como uma das espécies de parceria decorrente do legítimo exercício da função administrativa fomentadora, parece-nos que mencionada relação jurídica exigirá um grau maior de incidência do regime jurídico de direito público (ou do regime jurídico administrativo), mitigando-se o regime de direito privado e, por conseguinte, a liberdade de atuação dessas organizações da sociedade civil.

Considerando as peculiaridades que envolvem a relação de parceria entre Poder Público e Organizações Sociais (a saber: representantes do Poder Público no Conselho de Administração; cessão especial de servidores com ônus para origem, destinação de créditos orçamentários e cessão de bens públicos etc.), poderíamos afirmar que ainda assim as Organizações Sociais, tal como as demais organizações da sociedade civil destinatárias da atividade administrativa de fomento, estão sujeitas ao regime de direito privado, com normas derrogatórias de direito público em equivalente intensidade? Cremos que não. Nestes casos, o regime de direito público passa a incidir de maneira mais robusta, ainda que o regime jurídico misto seja o norte da relação de parceria.

Para acentuar o panorama movediço deste quadro, tem-se que a própria Lei 13.019/2014, que estabelece o regime jurídico das parcerias voluntárias, conhecido como o novo marco regulatório das organizações da sociedade civil, em seu artigo 3º, inciso III, excluiu os contratos de gestão do âmbito de sua aplicação.

Em síntese, se o STF trouxe em larga medida contornos mais claros e definidos para o tratamento das organizações sociais (OSs), não se pode afirmar que o regime jurídico de fomento administrativo advindo da Lei 13.019/14 passará ao largo das questões mais sensíveis que gravitam em torno ao modelo das OSs. 

Ainda assim, as dúvidas e incertezas decorrentes dos modelos de parceria entre o Poder Público e as organizações da sociedade civil devem ser reduzidas, mesmo que dificilmente sejam erradicadas. Neste sentido, sem olvidar do respeitável entendimento de parcela da doutrina no sentido da inconstitucionalidade deste modelo, a decisão do STF na Reclamação nº 1923-DF busca atender a certos critérios fundamentais que encontram assento na própria Carta Magna, conforme mencionado no início deste escrito.

Importante lembrar que a Constituição é o que a Suprema Corte diz que ela é, na visão propagada no direito norte-americano. Logo, nos parece que este momento revela-se favorável para que se aplique o entendimento do STF sobre a matéria em sua profundidade, valorizando-se justamente os aspectos tão relevantes ao direito público e que decorrem da Carta de 1988, como os princípios da impessoalidade, da publicidade, da objetividade nos julgamentos de propostas.

Enfim, são elementos nucleares e indispensáveis para a legalidade e a legitimidade de qualquer modelo de parceria e que podem resgatar o que vislumbramos de mais vigoroso no princípio republicano, que é a eliminação ou, ao menos, a sensível redução dos privilégios e dos atos discriminatórios cuja existência atenta contra a igualdade fundamental, como bem lecionava o saudoso professor Geraldo Ataliba[8], práticas essas que não mais possuem espaço no estágio civilizatório em que vivemos.


[1] A petição inicial da ADI aponta inconstitucionalidade da Lei nº 9.637/98, ao argumento central de que o modelo adotado implica na indevida transferência do encargo constitucional do Estado de prestar serviços públicos arrolados no artigo 1º do referido diploma legal (saúde, educação, proteção ao meio ambiente, patrimônio histórico e acesso à ciência) às organizações sociais, entidades privadas não integrantes do aparelho estatal, assim qualificadas por ato discricionário do Poder Executivo. Sustenta que a Constituição da República, no que toca aos serviços não exclusivos do Estado arrolados no citado artigo 1º, autoriza tão somente uma atuação dos entes do terceiro setor de modo complementar e não uma atuação substitutiva do Poder Público como se pretende com a qualificação dessas entidades como organizações sociais. Aduz ainda, em apertada síntese, descumprimento ao dever de licitação, ofensa aos princípios da impessoalidade e legalidade, violação às normas relativas às associações, ao concurso público, aos direitos previdenciários dos servidores, ao controle interno e à atuação do Ministério Público. Eis os preceitos constitucionais tidos por violados: artigo 5º, XVII e XVIII; artigo 22, XXVII; artigo 23; artigo 37, II, X e XXI; artigo 40, caput e parágrafo 4º; arts. 70, 71 e 74; artigo 129; artigo 169; artigo 175; artigo 196; artigo 197; artigo 199, parágrafo 1º; artigo 205; artigo 206; artigo 208; artigo 209; artigo 215; artigo 216, parágrafo 1º; artigo 218; e artigo 225.

[2] Confira-se: HIGA, Alberto Shinji. A ADI 1.923-DF e os limites do fomento público ao terceiro setor à luz da Constituição da República. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2848, 19 abr. 2011. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/18937>. Terceiro Setor: da responsabilidade civil do Estado e do agente fomentado. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010. REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor Regime Jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006. Notas sobre o papel do Terceiro Setor na consolidação dos direitos humanos no Brasil. In Direitos Humanos – Desafios e Perspectivas. Antonio Carlos Malheiros, Josephina Bacariça e Rafael Valim (Coords.). Belo Horizonte: Editora Fórum, 2011.

[3] Não se adentrará no exame do r. voto de divergência do Exmo. Ministro Marco Aurélio, acompanhado pelo r. voto da Exma. Ministra Rosa Weber, uma vez que ainda não houve a disponibilização do inteiro teor dos referidos votos no sítio do STF na internet.

[4] Vale registrar que não mais se encarta a figura clássica dos convênios para fins de celebração de parcerias entre órgãos públicos e organizações de terceiro setor por força da Lei nº 13.019/2014.

[5] A exigência de um marco regulatório das relações entre Poder Público e organizações da sociedade civil não é nova. A par da seriedade do trabalho desenvolvido pela maioria das organizações da sociedade civil, com projetos sociais que prestigiam valores caros à coletividade, não há dúvidas de que as inúmeras fragilidades e deficiências contidas nas diversas leis esparsas que disciplinam a matéria têm corroído, de forma danosa, e colocado em risco essa legítima parceria entre o Estado e as organizações da sociedade civil. Isso porque tais vícios têm permitido, por exemplo, a criação de “pseudoentidades”, formalmente enquadradas como integrantes do terceiro setor, com a finalidade exclusiva de firmar relações de cooperação com o Estado e, após obtenção dos recursos públicos, destinam-os para os fins mais diversos e distantes das suas primitivas finalidades. Deveras, não são raras, lamentavelmente, as notícias na imprensa falada ou escrita a respeito de suspeitas de tais irregularidades, no âmbito federal, estadual e municipal. Há, de igual modo, parcela expressiva de procedimentos investigatórios em curso. A gravidade desses fatos motivou, inclusive, a instalação da “CPI DAS ONGS” no Senado Federal, embora o Relatório Final contendo 1.478 páginas não tenha sido apreciado ante o seu encerramento em virtude do decurso do prazo. Não obstante, algumas propostas constantes do dito Relatório acabaram sendo adotadas pela Presidente da República, por meio dos Decretos nº 7.568, de 16/09/2011 e 7.592, de 28/10/2011, em resposta à crise política instalada, à época, no Poder Executivo Federal em decorrência de denúncias envolvendo convênios firmados por alguns Ministérios com entidades sem fins lucrativos. De igual modo, destacam-se: (a) o valoroso trabalho desenvolvido pela respeitável Comissão de Juristas instituída pela Portaria do Ministério do Planejamento nº 426/2007, composta pelos ilustres Juristas Almiro do Couto e Silva, Carlos Ari Sundfeld, Floriano de Azevedo Marques Neto, Paulo Eduardo Garrido Modesto, Maria Coeli Simões Pires, Maria Sylvia Zanella Di Pietro e Sérgio de Andréa Ferreira, responsável pela elaboração do anteprojeto que estabelece “normas gerais sobre a administração pública direta e indireta, as entidades paraestatais e as de colaboração”; (b) a minuta do Anteprojeto de Lei Estatuto do Terceiro Setor, fruto do Projeto “Pensando o Direito” – Instituto Pro Bono, Coordenação Geral do Prof. Dr. Gustavo Justino de Oliveira; entre outras iniciativas de relevância para o fortalecimento do Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil; (c) Vale mencionar a Lei municipal nº 13.153, de 22 de junho de 2001, que rege as parcerias decorrentes da política de assistência social no Município de São Paulo ao prever, entre outros instrumentos relevantes, a figura do edital de chamamento para as entidades sociais. Portanto, o avanço da legislação social nesta matéria decorre de um processo histórico no qual também merecem destaque as experiências das unidades federativas.

[6] Sob a perspectiva do direito processual civil, convém assinalar que o Acórdão, após a sua publicação, a nosso juízo, mereceria integração a fim de sanar vício indicado no artigo 535 do CPC.

[7] Ver nossa opinião sobre o regime jurídico das OSCIPs e a responsabilidade civil na obra citada (REGULES, Luis Eduardo Patrone. Terceiro Setor Regime Jurídico das OSCIPs. São Paulo: Método, 2006 – pp. 161-162).

[8] República e Constituição, Geraldo Ataliba, Malheiros, 2ª edição, 2004, pág. 160.

Autores

  • Brave

    é chefe de gabinete da Secretaria de Governo da Prefeitura de São Paulo, advogado e Mestre em Direito do Estado pela PUC de São Paulo e professor de Direito Constitucional do Curso de Especialização da PUC-SP.

  • Brave

    é procurador do município de Jundiaí, mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, doutorando em Direito do Estado pela USP e professor de Direito Administrativo da Universidade Nove de Julho.

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