Direito Civil Atual

É preciso um código de proteção aos usuários de serviços públicos?

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22 de junho de 2015, 8h00

Spacca
Uma pequena apresentação
Começo hoje minha participação neste importante instrumento de diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, que é a coluna Direito Civil Atual, vinculada à Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo, e da qual sou muito honrosamente um dos coordenadores, juntamente com os ministros Luís Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira. Ao meu sentir, é muito importante que o Judiciário e a Universidade unam-se em prol do fim último de ambas as instituições que é servir ao povo. Todos nós, ministros e docentes de Direito, somos meros instrumentos dessa função essencial ao estado democrático de direito. Por essa razão, tenho também que destacar o papel relevantíssimo dos professores Ignacio Poveda, José Antonio Peres Gediel, Otavio Luiz Rodrigues Junior, Rodrigo Xavier Leonardo e Rafael Peteffi da Silva nessa combinação de esforços em favor do bem comum.

O espaço da revista eletrônica Consultor Jurídico, comandada pelo jornalista Marcio Chaer, é hoje um marco na informação especializada em Direito, lido por milhares de pessoas e que tem ganhado o respeito de todos na comunidade jurídica. Daí ser importante que nós, servidores da Justiça, transmitamos ao povo nossa visão do Direito e das instituições políticas, não sem antes tomar as cautelas necessárias para se evitar ou comprometer posições que serão objeto de decisões monocráticas ou colegiadas no tribunal.

Usuários e consumidores: um limbo jurídico a ser superado
Introduzida nossa participação na coluna Direito Civil Atual, é o caso de se apresentar o tema de hoje, que vem a ser a pergunta: o Brasil precisa de um Código de Proteção aos usuários de serviços públicos?

O então ministro da Reforma do Estado Luís Carlos Bresser-Pereira foi bastante claro sobre os seus ideais de transformação dos paradigmas de prestação de serviço público quando afirmou: “Finalmente, a dimensão gestão será a mais difícil. Trata-se aqui de colocar em prática as novas ideias gerenciais e oferecer à sociedade um serviço público efetivamente mais barato, melhor controlado, e com melhor qualidade”. [1]

Sem se fazer qualquer julgamento sobre o mérito da reforma administrativa iniciada por Bresser Pereira, tem-se que, com base no seu projeto, foi promulgada a Emenda Constitucional 19, de 4.6.1998, em cujo artigo 27 determinou-se expressamente a elaboração de lei de defesa dos usuários de serviços público pelo Congresso Nacional em cento e vinte dias a contar da sua promulgação.

Até hoje, a lei não existe. Mas, quais os efeitos dessa mora legislativa para o cidadão brasileiro?

Uma interessante tentativa para se apresentar essas consequências sob uma visão que conjugue as relações entre o Direito Público e o Direito Privado está em que:

Nos sistemas de defesa dos consumidores, mantidos pelas agências, é usual que as reclamações, uma vez feitas pelos consumidores, serem manejadas pelos servidores sem que haja obrigação de indicar o resultado obtido ao reclamante original. Desta maneira, a demanda do consumidor perde o seu caráter de pretensão individual. Ela é transformada em uma denúncia ou em uma representação, trafegada em meio a um processo administrativo dentro da máquina burocrática. (…) Algumas vezes, os problemas que afloraram não puderam ser solucionados pelas operadoras, tendo em vista que estas estavam apenas cumprindo a regulamentação vigente. O ponto nodal é que a regulamentação vigente não é compatível com a interpretação consensuada sobre o significado do Código de Defesa do Consumidor, definido pela Lei no 8.078, de 1990, ou seja, um diploma legal hierarquicamente superior”.[2]

A não edição de um código de defesa dos usuários de serviços públicos teve por consequência indireta uma judicialização exacerbada dos conflitos advindos do acesso de milhares de pessoas a serviços até então segmentados e oferecidos de modo controlado e sob a lógica de estruturas estatais. A desestatização, ao tempo em que liberou as comportas de uma demanda represada havia décadas, não conseguiu resolver um dilema essencial por ela mesma engendrado: como se podem exercer certos direitos em face de um prestador privado de serviço público que se acha submetido a um regime jurídico de regulação?

Direito Administrativo e contratação de serviços públicos por particulares
O Direito Administrativo chegou a ser considerado, segundo Léon Duguit, como o conjunto de normas disciplinadoras das relações decorrentes de serviço público. Para o professor de Bordeaux, no entanto, a Administração Pública tem duas limitações essenciais:  a territorial, pois seu raio de alcance está adstrito aos limites nacionais, e a função de organização e controle dos serviços públicos.[3].

Essa visão de serviço público, conquanto respeitável e clássica, não pode deixar de lado a ideia de proteção do usuário em relação às ações e omissões do Poder Público, ou daqueles entes que façam as suas vezes. E, acima de tudo, há de ser buscar a eficiência na prestação do serviço público. 

Nesse aspecto, a solução mais adequada para esses objetivos estaria na oferta ao Estado de meios efetivos de proteção do destinatário do serviço público, o que se poderia encontrar, com enorme vantagem, em um código compreensivo de tudo o que se relaciona com a prestação de serviços públicos e o controle da omissão nesse mister[4].

A experiência portuguesa
A ideia de um código protetivo dos usuários de serviços públicos encontra ecos na experiência legislativa estrangeira. Portugal já dispõe do Decreto-Lei 135, de 22 de abril de 1999, que define “os princípios gerais de acção a que devem obedecer os serviços e organismos da Administração Pública na sua actuação face ao cidadão, bem como reúne de uma forma sistematizada as normas vigentes no contexto da modernização administrativa”[5].

A justificativa do decreto-lei português tem o mérito expor o porquê, no Brasil, também precisaríamos de um código de proteção aos usuários de serviços públicos:

a) A modernização administrativa do Estado português passa necessariamente por se criar “um modelo de Administração Pública ao serviço do desenvolvimento harmonioso do País, das necessidades da sociedade em geral e dos cidadãos e agentes económicos em particular”. E esse objetivo só se efetiva com a aproximação da Administração aos usuários e “pela prestação de melhores serviços, pela desburocratização de procedimentos e pelo aumento de qualidade da gestão e funcionamento do aparelho administrativo do Estado”.

b) Não se conseguirão resultados eficazes com uma legislação pautada pela “dispersão das medidas e diplomas legais” baixados há bastante tempo e por diferentes graus de normatividade. Dessa forma, a “modernização administrativa” traz para o Governo o ônus de decidir “racionalizar, sistematizar e inovar, num único diploma, as normas de âmbito geral aplicáveis à Administração Pública e aos seus agentes, por forma a facilitar o acesso às mesmas por parte dos seus destinatários e a torná-las mais conhecidas e transparentes ao cidadão, cliente do serviço público”.

Nos fundamentos da lei portuguesa estão dois pontos centrais: unificar as fontes normativas e criar meios de solução de conflitos que sejam transparentes, efetivos e céleres.

As tentativas de criação de um código protetivo dos usuários de serviços públicos
Quatorze anos após a vigência da Constituição Federal, o senador Lucio Alcântara, do Ceará, apresentou o Projeto de Lei (PL) 6.953, de 11.6.2002, que “dispõe sobre a proteção e defesa do usuário dos serviços públicos, prestados pela administração direta, indireta e os delegados pela União”.[6]. A iniciativa do senador Lucio Alcântara reconhecia aos usuários uma série de “direitos básicos” que hoje são reconhecidos em leis esparsas, regulamentos administrativos, normas de agências reguladoras e tantos outros que não saíram do papel ou não existem no mundo normativo. Na versão primitiva do PL 6.953/2002, estão enunciados direitos tais como: a) exigência de urbanidade e respeito no atendimento aos usuários; b) atendimento prioritário a idosos, gestantes, doentes e portadores de deficiência; c) vedação a obrigações, restrições e sanções não previstas em lei, além do uso da proporcionalidade em sua aplicação; d) igualdade no tratamento dos usuários, vedada espécie de discriminação; e) respeito a prazos e a procedimentos; f) fixação e observância de horário de normas compatíveis com o bom atendimento do usuário; g) adoção de medidas de proteção à saúde ou segurança dos usuários; h) autenticação de documentos pelo próprio agente público, à vista dos originais apresentados pelo usuário, vedada a exigência de reconhecimento de firma, salvo em caso de dúvida de autenticidade; i) manutenção e instalações limpas, sinalizadas, acessíveis e adequadas ao serviço ou atendimento.

Essas normas, a par de outras indicadas no projeto de lei, conjugam preceitos puramente civilizatórios, muitos dos quais ausentes hoje dos locais onde os usuários buscam uma resposta a suas demandas, com direitos que jamais poder-se-iam ausentar do espectro das relações administração-usuário.

A mora legislativa conduziu a situação ao Poder Judiciário. Hoje, o PL 6.953 tramita na Câmara dos Deputados em regime de urgência, o qual lhe foi atribuído em 3.7.2013, por efeito de uma medida liminar na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 24/DF[7],  deferida em 1.7.2013, da lavra do eminente ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal.

O ministro Dias Toffoli, na liminar, reconheceu a existência de um estado de mora do Congresso Nacional e determinou que o presidente da República, o presidente do Senado e o presidente da Câmara adotassem, no prazo de 120 dias, as providências legislativas necessárias o cumprimento do dever imposto pelo artigo 27 da Emenda à Constituição 19/98.

A ação foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que pediu, de modo secundário, que fosse adotado o Código de Defesa do Consumidor para as relações envolvendo usuários de serviços públicos enquanto persistisse a mora. O relator reservou-se para posterior análise do segundo pedido, o que revela uma prudente e  louvável cautela.

Persiste, no entanto, um problema jurídico de enorme relevo: apesar dos enormes méritos do PL 6.953, seu conteúdo não açambarca de modo global as atuais formas de prestação de serviços públicos. Elaborado em um tempo em que não havia normas protetivas de idosos e portadores de necessidades especiais e com regras ainda incipientes sobre procedimentos de reclamação de usuários, o PL está mais voltado para o rito do processo administrativo de reclamação do que com os atores, com o objeto e com as relações jurídicas peculiares à prestação de serviço público.

Dos 25 artigos do PL em questão, 15 são referentes a rito de processo administrativo, portanto somente dez artigos tratam efetivamente do direito material envolvido.

Talvez por essa razão, o atual presidente do Congresso Nacional, senador Renan Calheiros, ao se deparar com a necessidade imediata de regulamentação do artigo 27 da EC 19/98, defendeu a elaboração de um novo código do usuário dos serviços públicos[8].

Conclusão
Encerro aqui esta primeira coluna com a nítida sensação de que o Brasil precisa o quanto antes de um código de proteção e de defesa dos usuários de serviços públicos. Tal se deve por efeito da Emenda Constitucional da Reforma Administrativa e pela decisão do Supremo Tribunal Federal. Mas também por um problema estrutural do modo de organização dos serviços públicos no Brasil e o modelo regulatório adotado desde a década de 1990. 

E, acima de todas essas razões, pela transferência ao Poder Judiciário de uma missão dificílima e onerosa: resolver conflitos em cuja origem está o dilema apresentado no início desta coluna: o prestador de serviços públicos é, muitas vezes, obrigado a seguir um aparato regulatório que não tem como conciliar os direitos do usuário, a lógica da equação econômico-financeira e a justa remuneração pelos serviços prestados. Somente com um código do usuário é que algumas falsas questões poderão ser retiradas de cena e que serão expostas as contradições de um sistema que desmoraliza a ação regulatória das agências, oprime os usuários (especialmente os mais humildes) e leva o Poder Judiciário a decidir topicamente aquilo que demandaria soluções planejadas e de longo prazo.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).


[1] PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público. Ano 47, n. 1, vol. 120, Jan-Abr. 1996, p. 32.

[2] VERONESE, Alexandre. A reação judicial às mudanças: direito militante dos consumidores nas telecomunicações do Brasil. In: Luiz Eduardo Motta; Mauricio Mota. (Org.). O Estado democrático de direito em questão: teorias críticas judicialização da política. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 299-330.

[3] DUGUIT, Léon. Traité de droit constitutionnel. Paris: Fontemoing, 1928, p. 4.

[4] COUTO, Reinaldo. Curso de Direito Administrativo. 2ª ed., Saraiva: São Paulo, 2015.

[5]  Disponível em: http://www.algebrica.pt/i_ap/bo2/data/upimages/135_99.pdf. Acesso em 16-6-2015.

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