Processo Familiar

Entre autoridade e autoritarismo, adolescente fica sem referências

Autor

  • Giselle Câmara Groeninga

    é psicanalista doutora em Direito Civil pela USP diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família professora da Escola Paulista de Direito.

21 de junho de 2015, 8h01

A aprovação no dia 17 de junho da Proposta de Emenda à Constituição de redução da maioridade penal de 18 para 16 anos, afigura-se como um alvo deslocado que condensa várias questões que, em muito, a transcendem. Há tempos cozido em fogo brando, o sapo não só difícil de engolir mas impossível de digerir, tornou-se o alvo de fervorosas discussões e o caldo tem, em várias searas, entornado.

A referida proposta afigura-se como um alvo deslocado, e uma resposta pouco eficaz, da inevitável escalada da violência e do medo, objetivo e subjetivo, que viola o corpo e a alma, e que embaça a razão. Um alvo que condensa a necessidade de limites e de segurança estrutural que, parece não ser óbvio, não se resolve de forma autoritária só com leis e com punições.

Tanto o teor, como a forma violenta das discussões havidas não só em plenário, mas também as relativas à questões outras, como a corrupção, refletem o momento do país que lembra uma adolescência sem norte, com questionamentos que, se bem que mais do que legítimos quanto ao autoritarismo, são por vezes feitos de forma impertinente à autoridade.

Essa, por sua vez, necessita de outros contornos para bem se constituir. Tempos em que os nervos estão à flor da pele e que a impulsividade, muitas vezes sob a forma de autoritarismo, clama limites, mas que também demanda a compreensão de que o medo é um de seus poderosos determinantes.

Coincidindo com uma fase de denúncias e punições, até há pouco impensadas, a corruptores e corrompidos, a emenda tem a curiosa numeração 171/93.

O projeto aprovado que prevê uma forma híbrida, meio franksteiniana, para a questão da maioridade penal em apenas alguns casos (crimes hediondos, lesão corporal grave e roubo qualificado), reproduz o cerne da questão problema: a de que o adolescente ora parece um adulto, ora parece uma criança. E reproduz, no polo da autoridade, a reatividade de adultos temerosos e perdidos, face à impulsividade e cobranças da sociedade, e que tentam resolver a questão apenas com limites punitivos, trancando-os no quarto, no caso celas, ou, no outro extremo, com uma compreensão que beira a leniência.

De um curto período de internação e nenhum registro de atos passados, com a emenda, dos 16 aos 18, o jovem seria um semiadulto que, se pode responder por determinados atos, como consequência talvez se considere apto a praticar outros antes reservados aos adultos, como dirigir veículos, consumir álcool, manter relações sexuais, para citar alguns. Aliás, a dita maioridade já se exerce de forma parcial quanto ao direito ao voto, também uma curiosa antecipação.

A referida emenda (in?)constitucional baseia-se mais nas consequências dos atos e nas punições, do que na maturidade e na avaliação da autonomia progressiva que o jovem conquista com seu desenvolvimento, nos determinantes que permitem alcançá-la, e em políticas preventivas e educativas. Na proposta, o jovem seria considerado adulto não conforme sua capacidade de discernimento mas sim conforme a classificação do delito.

Curiosa inversão em que a punição é que definiria o grau de racionalidade e de autonomia que se lhe atribuiria. Claro que, pela lógica e pelo cantado, mas longe de ser decantado, princípio do Superior Interesse da Criança e do Adolescente, deveria ser o inverso…. Mas, parece que o medo e a impotência em enfrentar as intrincadas questões têm ocupado a cena.

E, por óbvio, às consequências dos atos não se restringem as questões que devem enfrentadas. Como apontado, a discussão da maioridade penal é um alvo deslocado de muitas outras que têm o tom de uma crise de autoridade. São questões de cunho estrutural. É com impotência que se assiste à crescente violência e a diminuição da idade com que os atos infracionais são cometidos, e é como se, magicamente, se pudesse passar uma régua, deixando, assim, de se pensar que também os mais jovens são as mais frágeis vítimas da violência.

Violência da falta de estrutura familiar que também está na infância e juventude roubadas por uma adultomorfização das crianças e dos adolescentes. E, assim, na referida emenda, assiste-se as crianças serem vestidas e travestidas de pequenos adultos, como o era a infância na idade média.

A adolescência, uma fase intermediária, mas com características próprias, é um período do desenvolvimento marcado por modificações físicas e metabólicas, com oscilações de humor e de impulsividade, que levam um tempo até que ganhem certa estabilidade que dependem de fatores maturacionais e ambientais. A oscilação que se observa é produto do vigor de impulsos sexuais e agressivos, de sofrimento emocional e de angústia, na transformação da criança em adolescente e deste em adulto.

Da criança que afetivamente se encontrava vinculada às figuras mais familiares e conhecidas, o adolescente passa a investir emocionalmente, e mesmo com paixão, em um círculo mais amplo de pessoas. Bem conhecida a importância dos ídolos e de figuras que, agora, concorrem com a autoridade antes derivada dos pais e de pessoas próximas, e que ganham em importância emocional antes aqueles conferida.

E, no caso de adolescentes que quando crianças pouca experiência tiveram de segurança emocional e física do ambiente familiar, e da necessária influência da autoridade parental, nesse período estarão mais vulneráveis às influências daqueles que ocupem os lugares vagos. Assim, mais facilmente, repita-se por questões estruturais que os transcendem, são cooptados para atos delinquenciais.

A adolescência marca a passagem da família para o meio social mais amplo. Uma fase posterior à introjeção dos limites recebidos, também com carinho, na infância, em que agora são testados em outra seara. Época em que a autoridade é confundida com autoritarismo, e assim, naturalmente é questionada e mesmo desafiada. E por parte do ambiente, fundamental se fazem os limites claros, mas com relativa tolerância quanto à compreensão para com os jovens que estão nessa fase de passagem: da família para o ambiente social mais amplo.

Em outras palavras, o limite e a segurança emocional — ou sua falta sob a forma de violência — que foram experimentados e aprendidos em casa quanto à expressão dos impulsos, são agora testados e se reproduzem nos vínculos sociais. Uma evolução e uma equação da qual não se pode fugir.

Não por acaso, mas em sintonia com o contexto político-emocional, os acalorados e mesmo violentos debates que se assistiram com relação à emenda constitucional, e os que ainda estão por vir, guardam certa conexão com a crise de autoridade e com os escândalos de corrupção e atuação daquelas, quebrando o ciclo da impunidade, dado o contexto leniente, que se vivia em no país.

E, por seu lado, quanto à legislação que toca aos menores, comparada com outras, a nossa é tida como das mais compreensivas com as necessidades das crianças e dos adolescentes, mas também das mais lenientes. Oscilando, como próprio ao adolescente, parece que em direção ao outro extremo se estaria dirigindo a emenda.

Assim, de uma postura um tanto frouxa em diversos aspectos passou-se, em outros, a privilegiar a consideração das consequências e o desejo de punição que atropelam um questionamento, aí sim eficaz, das questões mais estruturais e formas de exercício da autoridade.

A passagem que se afigura, e assim se deseja em todas as searas de poder, é a de um autoritarismo infantil e adolescente para o exercício maduro e com autonomia, da autoridade que combine respeitabilidade, capacidade de compreensão, com condições estruturais para o exercício legítimo do poder. E é disso que necessitam não só os adolescentes.

O cunho emocional, e de medo, polarizado entre excessiva compreensão e necessidade de punição, e que muito ainda tem a ganhar de racional e autônomo, tem ocupado a cena de várias discussões. E, felizmente, para o amadurecimento das instituições, muitas outras propostas e debates estão por vir, espera-se sem violência. 

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    é psicanalista, doutora em Direito Civil pela USP, diretora da Comissão de Relações Interdisciplinares do IBDFAM, vice-presidente da Sociedade Internacional de Direito de Família, professora da Escola Paulista de Direito.

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