Diário de Classe

O projeto da remição pela leitura
e o fantasma da Laranja Mecânica

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20 de junho de 2015, 8h01

Spacca
Um livro pode transformar a vida de uma pessoa? Há, de fato, uma crença generalizada de que sim. Dependendo do livro, concordo com isso. A título ilustrativo, em setembro do ano passado, o programa Fantástico exibiu um quadro intitulado Vai fazer o quê?, no qual um jovem ator se passava por um menino-de-rua e abordava os pedestres. Ocorre que ele não pedia dinheiro, mas um livro. Se muitas pessoas sequer lhe deram ouvidos (como costuma acontecer diante da invisibilidade dos meninos-de-rua), surpreende o espantoso número de pessoas que se sensibilizaram e, prontamente, atenderam ao inusitado pedido, dirigindo-se à livraria mais próxima (assista aqui).

Mas, afinal, que capacidade extraordinária é essa que os livros possuem? Por que o pedido do menino nos comove? Por que as pessoas acreditam que um livro é um pedido que merece ser atendido enquanto outros não? O que há de tão nobre nos livros que se conserva no tempo mesmo num mundo cuja comunidade de leitores é cada vez menor?

Se examinarmos a História, veremos que sempre houve listas negras, elencando os autores e/ou livros proibidos. Da mesma forma, impossível esquecer as fogueiras que queimaram milhares de obras durante os regimes totalitários. O mesmo aparece em muitas ficções literárias e cinematográficas – 1984 (Orwell), Admirável mundo novo (Huxley), Fahrenheit 451 (Bradbury), V de vingança (Alan Moore e David Lloyd), Zardoz (Boorman), entre outras –, nas quais os livros surgem como objeto de censura. E por que isso? Porque eles fazem as pessoas pensar. Os livros podem ser a pior de todas as armas.

Pois bem. No dia 9 de junho, ao julgar o HC 312.486/SP, de relatoria do ministro Sebastião Reis Júnior, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de remição da pena pela leitura, através de uma interpretação extensiva do artigo 126 da Lei de Execução Penal, que estabelece a redução da pena por estudo (leia aqui).

Na verdade, a referida decisão fundamenta-se na Recomendação 44, do Conselho Nacional de Justiça (que dispôs acerca das atividades educacionais complementares para fins de remição da pena pelo estudo e estabeleceu critérios para a admissão pela leitura), publicada na esteira da Nota Técnica Conjunta 125/2012, expedida pelos Ministérios da Justiça e da Educação, e da Portaria Conjunta 276/2012, editada pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Departamento Penitenciário Nacional para regulamentar o projeto “Remição pela Leitura”, implantado nas penitenciárias federais, a partir da experiência levada a cabo em Catanduvas desde 2009.

Em suma: de um projeto-piloto no Paraná, passamos à institucionalização nos presídios federais; depois, alguns estados da federação aderiram à ideia por meio de lei estadual — o problema da inconstitucionalidade formal já foi denunciado por Juliana Hermes Luz (leia aqui). Agora, a jurisprudência do STJ respalda a iniciativa.

Como já registrei em outra oportunidade (leia aqui), inicialmente o projeto me pareceu progressista e, sobretudo, simpático. Nunca tive dúvidas acerca do potencial humanizador da literatura. Em um importante ensaio (intitulado O Direito à Literatura), Antônio Cândido esclarece: “Entendo aqui por humanização […] o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais, como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”. Bingo! Essa é a razão pela qual o projeto não deve ser abandonado (e, inclusive, chamou a atenção da comunidade internacional!).

Entretanto, já faz alguns anos que aprendi com Ernildo Stein a também me preocupar com os “problemas das soluções”. E, em relação ao projeto da Remição pela Leitura, algumas questões permanecem, a meu ver, intransponíveis. Por sinal, sigo aguardando informações que solicitei formalmente à Divisão de Reabilitação do Depen para embasar a pesquisa que estou desenvolvendo a respeito do tema no Kathársis — Centro de Estudos em Direito e Literatura da Imed.

Aliás, no final de maio, participei da XI Jornada de Direito e Psicanálise — Interseções e Interlocuções a partir de “Laranja Mecânica”, realizada na Universidade Federal do Paraná, sob a coordenação do professor doutor Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, ocasião em que se discutiu ao longo de três dias o filme de Stanley Kubrick e, sobretudo, o livro de Anthony Burgess, cujo último capítulo faz toda a diferença.

E por que estou contando isso? Simplesmente porque, em meu painel, abordei o problema dos limites da intervenção estatal na (re)formatação do apenado. A questão (teórica) de fundo diz respeito à função da literatura. Como se sabe, essa é uma discussão que atravessa os séculos e chega aos dias de hoje. Na verdade, ela já estava posta em Horácio, para quem a poesia é doce e útil. Aqui, vemos bem duas dimensões: uma é estética; outra, social.

Outra função atribuída à literatura (sobretudo em regimes pouco democráticos) é a transmissão e a difusão dos valores instituídos. Trata-se, nesse caso, de um papel nitidamente prescritivo. As fábulas ilustram bem essa instrumentalização da literatura, cuja principal função é preconizar determinada moral. Outro exemplo bastante conhecido dessa literatura planificada (ou dirigida) é o célebre Auto de São Lourenço (Pe. Anchieta), escrito em tupi, castelhano e português, que era encenado pelos indígenas e visava a catequisar com base na exaltação dos valores cristãos. Os anjos e santos eram sempre portugueses, enquanto os demônios eram indígenas.

Em suma: qual (dis-)função a literatura vem exercendo no projeto Remição pela Leitura? Ainda tenho minhas dúvidas. É preciso tomar cuidado com o fantasma da “laranja mecânica”. Uma coisa é a literatura como condição de possibilidade para a emancipação do sujeito. Aqui, não há espaço para qualquer compromisso/patrulhamento ideológico. Outra, bem diversa, é o seu uso para a conformação de determinada realidade a partir da instituição de pretensa moralidade. Numa palavra: não acredito na ideia convencional de uma literatura que edifica segundo os padrões oficiais. Como destaca Antônio Cândido (sempre ele!), a Literatura “não corrompe nem edifica, portanto; mas, trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver”.

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