Limite Penal

A dispensabilidade do Ministério Público diante do juiz-faz-tudo

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

19 de junho de 2015, 11h31

Spacca
Quando entrou em vigor a Reforma do Código de Processo Penal de 2008, a nova redação do artigo 212[i] foi bastante comemorada por aqueles que lutavam por um processo penal acusatório, pelo abandono do ranço inquisitório e o fim do protagonismo do juiz na coleta da prova. Já tratamos exaustivamente dessa tensão entre os sistemas inquisitório e acusatório em diversas oportunidades[ii], sempre reforçando que a mera separação inicial das funções de acusar e julgar é insuficiente, sendo imprescindível que assim se mantenha ao longo de todo o processo e, principalmente, que a gestão da prova[iii] esteja nas mãos das partes (e não do juiz-ator-inquisidor).  Com a reforma de 2008, o que se pretendia era que o juiz deixasse de ter o papel de protagonismo na realização das oitivas, para ter uma função completiva, subsidiária. Não mais, como no modelo anterior, poderia ter o juiz aquela postura proativa, de fazer dezenas de perguntas, esgotar a fonte probatória, para só então passar a palavra às partes, para que, com o que sobrou, complementar a inquirição.

Muitos juízes rapidamente assimilaram a nova estrutura do “cross-examination” e passaram a abrir a audiência, compromissando (ou não, conforme o caso) a testemunha e passando a palavra para a parte que a arrolou (Ministério Público ou defesa), para que produzisse a prova e depois a outra parte, sucessivamente, sendo o juiz — neste momento — o fiscalizador do ato, filtrando as perguntas ofensivas, sem relação com o caso penal, indutivas ou que já tenham sido respondidas pela testemunha. O juiz, como regra, questionará ao final, perguntando apenas sobre os pontos relevantes não esclarecidos. É, claramente, uma função completiva e não mais de protagonismo. Tal cenário está muito longe de colocar o juiz como uma “samambaia” na sala de audiência, como chegaram a afirmar alguns, no pós-reforma, demonstrando a virulência típica daqueles adeptos da cultura inquisitória e resistentes à mudança alinhada ao sistema constitucional acusatório. Nada disso. O juiz preside o ato, controlando a atuação das partes para que a prova seja produzida nos limites legais e do caso penal. Ademais, poderá fazer perguntas sim, para complementar os pontos não esclarecidos, nos limites da controvérsia suscitada. Jamais se disse que o juiz não poderia perguntar para as testemunhas na audiência, apenas deveria fazê-lo após as partes e com caráter excepcional, complementando algum ponto dúbio ou não esclarecido, desde que não abra novas linhas narrativas.

Mas é claro que a cultura inquisitória está arraigada e muitos não conseguiram fazer a virada constitucional programada pela reforma e mantiveram a mesma postura de ativismo e protagonismo. Inicialmente, o Superior Tribunal de Justiça afirmou que a violação do artigo 212 constituía nulidade absoluta[iv] e anulou as instruções feitas em desacordo com a ordem estabelecida pelo dispositivo. Infelizmente, com o tempo, o entendimento jurisprudencial retrocedeu e passou a entender que a inobservância da ordem estabelecida pelo artigo 212 geraria uma nulidade relativa[v], ou seja, uma não-nulidade, condenando o artigo 212 a ineficácia. Como já denunciamos aqui na ConJur (aqui), a categoria das nulidades relativas é uma errônea importação do processo civil e que, aliada ao arremedo de teoria do prejuízo (o que é prejuízo? Uma cláusula genérica, vazia de sentido e que se presta ao decisionismo), constitiu uma fraude processual a serviço do punitivismo e da estrutura amorfa do sistema inquisitório. Em suma, ao afirmar que a violação do artigo 212 constitui nulidade relativa e que a defesa deveria demonstrar ‘prejuízo’, não mais haverá nulidade…Esquecem os adeptos da superada teoria geral do processo, que no processo penal forma é garantia e limite de poder. O amorfismo é típico de modelos autoritários (aqui).

Mas uma situação ainda precisava ser enfrentada: e quando o MP não está presente na audiência de instrução, poderia o juiz questionar no seu lugar? Tomar o assento do acusador para produzir a prova que este não produziu? E ainda, quando diante de uma testemunha arrolada pelo MP a defesa nada perguntar, como deve proceder o juiz? Afinal, se nada foi perguntada, não existe a possibilidade de fazer perguntas ‘completivas’, de (excepcionalmente) ‘complementar a inquirição’ como prevê o parágrafo único do artigo 212…

O problema é que um juiz-inquisidor não se conforma com a inércia (estranho não é? Afinal a inércia é da essência da jurisdição! Desde o jardim de infância jurídico aprendemos o ‘ne procedat iudex ex officio’, mas esquecemos quando nos convém…) e, se ninguém perguntar, ele faz toda a inquirição e a inquisição. Ao final, condena com base na prova.  Mas na prova produzida por quem? Por ele mesmo…

Nesta situação, a nulidade é inafastável, como bem decidiu a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.259.482, relator ministro Marco Aurélio Bellizze. O STJ anulou, desde a audiência de instrução, o processo contra um acusado de tráfico de drogas no qual o Ministério Público estava ausente na audiência e o juiz o substituiu, formulando desde o início as perguntas. Destarte, violou o caráter complementar da sua inquirição. O processo já tinha sido anulado pelo TJ-RS por violação do artigo 212 e houve recurso do Ministério Público, alegando que a nulidade é relativa e não teria ocorrido demonstração do prejuízo. O ministro Bellizze entendeu que a nulidade é relativa, mas neste caso “a inquirição pelo juiz não se deu em caráter complementar, mas sim principal.” O descumprimento da ordem de inquirição do juiz não levou à nulidade, mas a violação de seu caráter complementar, diante da ausência do Promotor. A sentença, ainda, condenou o acusado com base nestas testemunhas arroladas pelo MP e para as quais o juiz formulou todas as perguntas. Diante disso, afirmou o Ministro que “configura indisfarçável afronta ao sistema acusatório e evidencia o prejuízo efetivo”. O ministro disse, ainda, que a anulação do processo não seria necessária caso a sentença condenatória tivesse se baseado em outros elementos de prova (Fonte: Assessoria de Imprensa do STJ em 18/10/2011).

Mas, novamente, o STJ começa a dar sinais de retrocesso civilizatório com a adoção do sistema de nulidades a la carte, rendendo-se ao vale tudo inquisitório e rasgando de vez o art. 212 (e a Constituição, por evidente). A situação é agravada pela fragilidade do deslocamento argumentativo realizado. Vejamos o que ocorreu no Agravo em Recurso Especial Nº 547.295 – RS (2014/0163160-9), relator ministro Néfi Cordeiro:

“No que pertine à afronta ao artigo 212 do Código de Processo Penal, observo que o entendimento do Tribunal de origem está em dissonância com a jurisprudência desta Corte, no sentido de que a ausência do membro do Ministério Público em audiência, por se tratar de nulidade relativa, não enseja, por si só, ocorrência de ilegalidade ou de nulidade do feito, sendo necessária a demonstração do efetivo prejuízo. Ademais, cabe consignar que em tema de nulidade no processo penal, é dogma fundamental a assertiva de que não se declara nulidade de ato se dele não resulta prejuízo para a acusação ou para a defesa ou se não houver influído na apuração da verdade substancial ou na decisão da causa (RSTJ 140/576). Em acréscimo ao acima exposto, extrai-se dos autos que a defesa apenas suscitou a suposta ocorrência de nulidade quando da interposição do apelo especial, e, ainda, sem demonstrar prejuízo advindo da ausência do Ministério Público em audiência. Assim, seguindo o princípio pas de nullité sons grief, adotado pelo Código de Processo Penal, em seu artigo 563, não comprovado qualquer prejuízo ao réu, não há que se declarar a nulidade do processo.”

A decisão do ilustre ministro, com toda a vênia e respeito que por ele nutrimos, é completamente equivocada e faz um deslocamento do ponto nevrálgico do problema, para focar em questão completamente periférica: se a ausência do MP na audiência é uma nulidade absoluta ou relativa (ou seja, se é nulo ou não). Mas disso não temos dúvida alguma! Não é caso de nulidade! Se o MP foi intimado para audiência e não compareceu, nenhuma nulidade ocorreu. Simples assim.

Mas o ponto da discussão é outro, bem mais complexo e não enfrentado pela decisão citada. Não se trata de discutir se a ausência do MP na audiência gera nulidade ou não, mas sim de saber se pode juiz substituir o MP na instrução e assumir a iniciativa e gestão da prova da acusação para depois condenar com base nessa prova, produzida por ele e não pela parte acusadora.

É disso que se trata a discussão e cujo problema foi tergiversado e deslocado para questão periférica irrelevante.

O problema não está na ausência do MP na audiência, mas sim em questionar-se qual foi a postura do juiz neste cenário. Se o juiz manteve juiz ou se sentou na cadeira de acusador para inquirir e voltou para sua cadeira de juiz (inquisidor) para julgar.

Como dissemos no início e em diversos outros escritos, o juiz-ator-inquisidor viola toda a estrutura acusatória-constitucional, colide com o devido processo legal substancial (aqui), mata o contraditório (tratamento igualitário) e, principalmente, fulmina a imparcialidade (o imenso prejuízo que decorre dos pré-juízos, pois quem procura, procura algo…ou seja, decide primeiro e depois vai atrás dos argumentos que justificam a decisão já tomada, etc.). Sem falar no que já conhecemos de pré-julgamento a partir da teoria da dissonância cognitiva (também já falamos sobre isso na ConJur, aqui).

Enfim, o problema é outro, para muito além da mera discussão sobre se a ausência do MP na audiência gera nulidade absoluta ou relativa. O núcleo da questão é outro, e muito, mas muito mais complexo.

Ao admitir-se essa (im)postura do juiz, golpeia-se a Constituição e a Convenção Americana de Direitos Humanos; sepulta-se todo o projeto de um processo penal democrático e acusatório; e, em última análise, uma vez mais fazemos mudanças legislativas para que tudo se mantenha como sempre esteve… Perceba-se que mudamos a lei. Certo ou errado, concordemos ou não. A magistratura deu de ombros, mantendo o que sempre fez. Cada vez mais a perversão na aplicação da lei no Brasil se faz presente.

Infelizmente o reducionismo da discussão faz com que se mantenha hígida a cultura inquisitória e se dê o golpe final no artigo 212. Não precisamos mais sequer de acusadores, já temos um juiz-faz-tudo. Resta perguntar: ele faz-tudo para quê? Não poderíamos acabar com o Ministério Público e gastar somente com um personagem no processo, afinal de contas, ele pode tudo. Os limites democráticos não aceitam, mas quem deveria controlar, simplesmente faz ouvidos moucos.


 


[i] Art. 212. As perguntas serão formuladas pelas partes diretamente às testemunhas, não admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.

Parágrafo único. Sobre os pontos não esclarecidos, o juiz poderá complementar a inquirição.

[ii] Entre outros, nas obras “Direito Processual Penal” e “Fundamentos do Processo Penal” de Aury Lopes Jr. (Editora Saraiva) e “Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos” e “Decisão Penal – a bricolage de significantes” de Alexandre Morais da Rosa (Editora Lumen Juris).

[iii] Neste terreno, imprescidível a leitura dos diversos trabalhos publicados por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, a referência no tema.

[iv] Reputando como absoluta a nulidade pela inversão da ordem de inquirição, veja-se a decisão proferida pela 5ª Turma do STJ, relatoria do Min. FELIX FISCHER, no HC 153.140/MG, julgado em 12/08/2010.

[v] Nesse sentido, entre outros, citamos a decisão proferida pelo STJ no HC 151.357 – RJ (2009/0207290-1), Rel. Min. Og Fernandes (julgamento em 21/10/2010).

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • Brave

    é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!