Regras do jogo

STF se deu cheque em branco para controlar mudanças em projetos públicos

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17 de junho de 2015, 6h53

Em tempos de crise econômica é natural esperar ajustes e reduções no orçamento público, afetando serviços e políticas públicas. Para que tais mudanças sejam lícitas, elas precisam respeitar, principalmente, o direito adquirido e a segurança jurídica. O problema é que não há orientação jurisprudencial clara sobre o que são realmente essas garantias. Nossos tribunais não têm estabelecidos padrões ou critérios capazes de orientar a conduta de agentes públicos e privados; mesmo quando assessorados pelos mais competentes juristas. Com o recente julgamento sobre a mudança de regras para obtenção do Fies (ADPF 341), o Supremo Tribunal Federal deu mais um passo na direção do obscurantismo e do arbítrio judicial; tudo isso em um cenário no qual, segundo o ministro Gilmar Mendes, “certamente vamos ter debates aqui sobre medidas do chamado ajuste fiscal envolvendo as ações do governo e do Congresso”.

Não há dúvidas de que o Governo tem o poder de alterar licitamente as regras para a concessão do benefício ao Fies, ou de qualquer outra política publica. O que estava em jogo — e que gerou divergência entre os ministros — diz respeito ao quanto de previsibilidade deve existir nesse processo de alteração e quais direitos precisam ser respeitados e de quem. Em termos abstratos, todos os ministros concordaram com a noção de que não se pode mudar as regras do jogo quando ele já começou, mas diferem muito do que isso significa em termos concretos.

A Portaria 10/2014 do MEC fixou novos critérios para a obtenção do Fies, aumentando as exigências de desempenho no ENEM. Contudo, como a Portaria foi publicada após a realização do Exame em 2014, foi prevista uma regra de transição, permitindo que o financiamento poderia ser pleiteado de acordo com as regras antigas até o final de março de 2015. Sendo assim, a princípio, poderia-se argumentar que a jurisprudência do Supremo não garante direito adquirido a regime jurídico; e foi justamente esse o caminho trilhado pelo ministro relator Luís Roberto Barroso. Porém, o voto-vista do ministro Dias Toffoli trouxe à tona duas complexidades relevantes. Em primeiro lugar, questionou se o tribunal estava realmente discutindo um regime jurídico ou se o caso dizia respeito à alteração de uma política pública e que, por esse motivo, merecia uma apreciação de forma distinta. Em segundo lugar, abriu um flanco de discussão a respeito de qual é o momento aquisitivo de um direito adquirido.

Mais especificamente, o ministro Barroso asseverou, de um lado, que não há que “se falar em direito adquirido à obtenção de financiamento, com base em regime jurídico anterior sobre os requisitos a serem preenchidos para acesso ao Fies”, já que a jurisprudência do STF “é pacífica no sentido de não reconhecer o direito adquirido a regime jurídico”. Além disso, considerou que o fato aquisitivo do direito é a inscrição no Fies, e não a mera realização do Enem; a realização do Exame seria uma condição necessária, mas não suficiente, para se obter o financiamento.

Enquanto isso, por outro lado, o ministro Toffoli afirmou que houve uma séria quebra da segurança jurídica ao se frustrar a expectativa e a confiança depositada pelos estudantes na política pública governamental após terem cumprido a primeira etapa até então estabelecida para obter o Fies, isso porque políticas públicas teriam um caráter prestacional por parte do Estado. Com base nesse argumento, sustentou que os estudantes não estariam submetidos a regime jurídico; de modo que não se aplicaria a jurisprudência anterior do STF. Além disso, defendeu que a realização do Enem seria uma primeira etapa do Fies e que a mera realização do Exame gerava ganho da expectativa de obter uma prestação estatal no futuro. Uma vez posta essa contraposição, essas distinções receberam pouca atenção dos demais ministros que se perderam completamente após os ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes engajarem em um debate agressivo sobre a possível politização do julgamento.

Como resultado, a maioria dos ministros seguiu o posicionamento do ministro relator Barroso, mas uma sensação de mal estar permaneceu. Havia um consenso sobre a necessidade de respeitar as regras do jogo, mas não chegaram a esclarecer quais regras são protegidas, a partir de que momento, de que modo, e em quais jogos. Com isso, se concretiza uma perigosa ironia. Sob o discurso de preservação das regras do jogo, o próprio Supremo Tribunal Federal dá para si mesmo um cheque em branco para controlar a mudanças em grandes projetos públicos, sem criar uma regra clara que permita antecipar, ou ao menos controlar, suas futuras decisões. Nesse sentido, o STF abdica de criar regras por meio de suas decisões e, desse modo, não há rigorosamente jurisprudência. Há sim, voluntarismo político, que não respeita em nada as regras do jogo democrático.

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