Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte 18)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

17 de junho de 2015, 10h00

Spacca
Caricatura Otavio Luiz Rodrigues [Spacca]1.Perucas brancas e profissões jurídicas inglesas
As origens das perucas brancas dos magistrados ingleses e membros da Câmara dos Lordes. A introdução do costume de se usar a white wig é atribuída ao rei Carlos II, filho de Carlos I, decapitado por ordem dos rebeldes puritanos de Oliver Cromwell, que reconquistou o trono britânico após a morte do Lord Protector, o título oficial do ditador da Commonwealth. Imitação de hábitos  franceses ou efeito de uma praga de piolhos que obrigou os londrinos a rasparem a cabeça, não há consenso sobre o que levou Carlos Stuart, que viveu longos anos de exílio em França, a iniciar a moda das perucas. O certo é que, desde a década de 1660, quando acedeu ao trono, até o início do reinado do rei Jorge IV, em 1820, todos os monarcas britânicos mantiveram suas cabeças ornadas com esse adereço. Não é sem razão que esse dress code passou a servir de modelo para a sociedade nesses quase 200 anos.

Abandonado pelos britânicos, o emprego das perucas resistiu no Poder Judiciário e é até os dias de hoje encontrável não só no Reino Unido, mas em diversas ex-colônias e domínios do antigo Império Britânico. Desde 2008, no entanto, as perucas deixaram de ser usadas no cotidiano das principais cortes do Reino Unido. Elas sobrevivem em sessões cerimoniais, nas divisões criminais e algumas situações que podem ser descritas como residuais.

A transformação simbólica do dress code de magistrados, advogados e serventuários judiciais do Reino Unido não foi dissociada das grandes reformas dos anos 1990-2000, de entre as quais estão a criação da Suprema Corte, o fim da Divisão Judicial da Câmara dos Lordes (os antigos law lords), a extinção de dezenas cortes de primeiro grau em todos o país, a ampliação da presença de juízes leigos, o fim da divisão estrita de funções entre barristers e solicitors, a adoção de um Código de Processo Civil e a instituição de uma lei de controle externo dos serviços judiciários e da atividade advocatícia.

As profissões jurídicas inglesas e galesas, para se manter fiel ao escopo desta parte da série de colunas sobre como se forma um jurista em alguns países do mundo, têm sido alcançadas pelas grandes e silenciosas transformações da sociedade britânica dos últimos 20 anos. E é sobre essas profissões o objeto desta coluna, colocando-se ênfase nas particularidades da formação inglesa.  

2.Profissões jurídicas: a centralidade da advocacia
Se na Europa continental  há um direito dos professores, na Inglaterra e em Gales existe um direito dos advogados. A principal e mais prestigiosa das profissões jurídicas é a advocacia. Dela provêm os melhores quadros para a magistratura e muitos advogados tornaram-se grandes professores. Essa realidade é especialmente notável quando se nota que a “profissionalização” da docência jurídica, sob os moldes de um alheamento dos práticos do ambiente universitário, é relativamente recente e não se completou ainda.

O curso de Direito não é pré-requisito para o ingresso nas principais carreiras jurídicas e há uma nítida divisão de funções entre a formação acadêmica e a formação para as profissões jurídicas, cabendo a primeira ao locus universitário e a segunda aos órgãos de classe.[1]

a) Solicitors. Resultado de uma distinção de funções da carreira geralmente conhecida na Europa continental e no Brasil como de “advocacia”, os solicitors são os profissionais que representam judicial e extrajudicialmente as partes no sistema judiciário anglo-galês. Eles são contratados por pessoas naturais ou jurídicas e prestam-lhe serviços como típicos mandatários judiciais (ou extrajudiciais) nos moldes em que um advogado brasileiro normalmente o faria: assinam documentos, recebem intimações, participam de audiências nos graus inferiores de jurisdição, reúnem-se com advogados ou com as partes adversárias. Os solicitors também funcionam como revisores ou redatores de instrumentos negociais, orientam os clientes sobre como agir juridicamente e podem atuar nas empresas. Cabe-lhes ainda a representação pro bono e a atuação em escritórios de assistência judiciária aos necessitados, a maior parte mantido por doações de trusts ou de pessoas individuais.

Conforme dados da Solicitors Regulation Authority (SRA), em maio de 2015, havia 132.520 solicitors na Inglaterra e no País de Gales. Em 2009, esse número era de 115.487 solicitors.[2] Esses profissionais atuam sozinhos ou por meio de firmas advocatícias.

O impedimento a que os solicitors atuassem nos tribunais superiores foi abolido graças às reformas dos serviços jurídicos iniciadas com o Courts and Legal Services Act 1990. No entanto, ainda persiste o hábito de os solicitors indicarem os barristers para essa atuação. Como se verá a seguir, cabe aos barristers a elaboração de pareceres e a redação de peças processuais de maior importância. Há outra interessante divisão de trabalho aqui: os solicitors obtém provas, dialogam com os clientes sobre os fatos, investigam elementos de fato que podem ser úteis ao julgamento, conversam com testemunhas e “preparam” o caso para a redação de petições pelos barristers.

A Law Society é o órgão que congrega e representa os solicitors. Fundada em 1825, ela atua como órgão de regulação e de representação da classe. Com a reforma dos serviços jurídicos, as funções regulatórias são exercidas por intermédio da Solicitors Regulation Authority,  com funções que hoje extrapolam o mero interesse corporativo e alcança o interesse público, a Justiça e os direitos dos consumidores de serviços jurídicos. A parte disciplinar cabe ao Office for Legal Complaints, órgão com atribuições de ouvidoria e de recepção de queixas de usuários dos serviços advocatícios.

Pode-se tornar um solicitor por duas vias principais: a obtenção do título de bachelor of laws (denominado  de bachelor of arts em Cambridge e Oxford até hoje), após a conclusão de uma graduação em Direito, ou outro curso não jurídico (vide coluna anterior), seguido da aprovação no Common Professional Examination (para não graduados em Direito) e de um curso de prática jurídica, além de um estágio profissional de 2 anos em um escritório dirigido por solicitors mais antigos.

A etapa final de ingresso na profissão jurídica de solicitor é a “admissão ao rol” (admission to the roll). Os dados da SRA permitem conhecer os nomes dos admitidos no rol dos solicitors em 2015 (clique aqui). Não é um número muito expressivo, considerando-se que a relação compreende toda a Inglaterra e o País de Gales. A leitura dos nomes é também reveladora do grau de diversidade das origens étnicas dos aprovados, o que comprova a afirmação da coluna passada quanto ao multiculturalismo da sociedade inglesa atual.

b) Barristers. A figura clássica do advogado inglês, representada nos filmes do século XX, corresponde ao barrister, com suas becas, seus punhos de renda e as perucas brancas curtas. São os barristers, ao lado dos solicitors, que compõem a carreira advocatícia inglesa e galesa.  Seu nome deriva da barra dos tribunais, expressão também comum nos Estados Unidos, que tem a American Bar Association.    

Os barristers perderam o monopólio da atuação oral perante os tribunais superiores, embora ainda sejam eles que preponderam nessa função nos dias de hoje. Conquanto já se discuta a abolição desta regra, é típico da profissão de barrister não se organizar em firmas, mas de modo individual ou em grupos, mas por razões de divisão de espaço ou de estrutura dos escritórios. Cabe-lhes a produção de peças, recursos, pareceres. As partes não contratam diretamente o barrister. Em geral, ele é indicado por um solicitor, em razão de sua notória especialidade na matéria ou sua credibilidade e experiência. As conversas com os clientes dão-se com a participação dos solicitors.

Em termos de prestígio, os barristers colocam-se em posição diferenciada dos solicitors, o que também é explicado pelo fato de haver um número bem menor daqueles em comparação com estes: há 15.000 barristers na Inglaterra e no País de Gales.

Por simetria com os solicitors, que se organizam sob a Law Society, os barristers subordinam-se ao General Council of the Bar, também conhecido por Bar Council. A regulação profissional e seu controle externo está a cargo do  Bar Standards Board (BSB), formado por leigos e não leigos. 

Um número bem menor de barristers integra o Queen’s Counsel (QC), embora haja alguns solicitors indicados após a reforma que lhes deu o direito de atuar em tribunais superiores. É uma posição de enorme prestígio e que permite a incorporação ao nome do profissional das letras QC, geralmente entre parêntesis, como se fosse um título de nobreza ou de professor catedrático. Embora não mais de modo exclusivo, é do QC que saem as principais autoridades judiciárias do país e são esses profissionais que atuam nos processos de maior complexidade.

c) Magistratura e Ministério Público. Atendendo a uma tradição medieval de que a magistratura era uma atribuição delegada pelo rei aos nobres, a qual foi paulatinamente alterada, de modo especial após o Act of Settlement de 1701, a magistratura inglesa e galesa não apresenta número expressivo de juízes de carreira e a maioria de seus membros foi selecionada de entre os advogados. Os juízes também compartilham parte de seus misteres com o júri popular e com  juízes de tempo parcial, juízes de paz e de pequenas causas.   

A maior autoridade judicial da Inglaterra e do País de Gales  é o Lord Chief Justice, em substituição  ao papel exercido pelo Lord Chancellor, equivalente britânico a um ministro de Estado da Justiça.

A Inglaterra e o País de Gales desconhecem uma instituição com o perfil do Ministério Público brasileiro. Existe a Procuradoria da Coroa, conhecida como Crown Prosecution Office, de caráter independente, mas que se vincula ao Poder Executivo, que detém a representação do Estado em questões criminais, ao lado de particulares e de outros órgãos públicos, dado que inexiste o monopólio da ação penal.  Nos tribunais superiores, cabe aos advogados representar a Coroa, o que é surpreendente para os padrões brasileiros. Existe um procurador-geral da Coroa, que é responsável perante o Parlamento britânico. De entre suas funções está a judicialização dos casos investigados pela Polícia inglesa e galesa.

Desde o Constitutional Reform Act 2005 (CRA 2005), os juízes dos  tribunais superiores e das cortes especializadas são nomeados pela rainha por indicação da Judicial Appointments Commission (JAC), um órgão independente que recruta os candidatos à magistratura em funções nos órgãos indicados no anexo 14 do CRA 2005.  

A Comissão de Nomeações Judiciais escolhe os juízes por meio de candidaturas dos interessados, que se submetem a exames de currículo, apreciação da experiência profissional e entrevistas. Não há nada parecido com o concurso público brasileiro e o sistema prestigia a experiência e o equilíbrio do candidato, além da demonstração de conhecimento dos precedentes. Nos últimos anos, fatores como diversidade étnica e social têm pesado nas escolhas.

d) Notários. Antigos, tradicionais e muito prestigiosos são os notários. Eles são recrutados por meio de um processo específico, com exames nacionais próprios e devem ter cursos de pós-graduação em atividades notariais,  geralmente conduzidos por universidades de prestígio, como Cambridge.

3. Conclusões
As carreiras jurídicas inglesas e galesas são marcadas pela diferenciação de funções e pelos rígidos controles das respectivas corporações. No campo da magistratura, a seleção faz-se geralmente de entre os profissionais da advocacia, com preferência a elementos com a experiência em sua especialidade jurídica.

O acesso à Justiça é caro. Entrar nas malhas do aparato judicial custa e não existe o espírito de “aventurar-se” em questões, dadas as consequências economicamente pesadas para os perdedores. As últimas reformas judiciárias tendem a ampliar a independência do Poder Judiciário, mas não romperam com a ausência de centralidade da burocracia judicial, que ainda é pequena e compartilha muitas funções com os leigos. Nem juízes, nem professores, são os advogados na Inglaterra e no País de Gales a ocupar a centralidade das carreiras jurídicas.


[1] Parte dos dados desta seção foram extraídos do Portal Europeu de Justiça: https://e-justice.europa.eu/content_legal_professions-29-ew-pt.do. Acesso em 14-6-2015.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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