Administração Pública

Conceito de Direito Administrativo não pode deturpar sua finalidade

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16 de junho de 2015, 6h17

Precisar o surgimento do Direito Administrativo é tarefa impossível, pois a Ciência do Direito analisa objeto cultural baseada na imputação e no subjetivismo humano. Não há relação de causalidade, existe sim a atribuição de consequências e valores aos fatos individuais e sociais relevantes.

O aparecimento de um fenômeno estudado pelas ciências naturais pode ocorrer em um preciso e exato momento. Por exemplo, os terremotos acontecem em data exata, não sendo necessária grande atividade intelectual para precisar a manifestação de tal fenômeno na natureza.

O Direito Administrativo é, segundo a ótica subjetiva, um conjunto de normas que regem as relações endógenas da Administração Pública e as relações exógenas que são travadas entre ela e os administrados.

Já o conceito objetivo leva em conta não os atores da relação, mas, sim, como o próprio nome diz, o objeto da relação jurídica travada.

Sob a ótica objetiva, o Direito Administrativo é o conjunto de normas que regulamentam e regulam a atividade da Administração Pública de atendimento ao interesse público.

Ramón Mateo e Juan Sánchez[1] definem o Direito Administrativo da seguinte forma: “El Derecho Administrativo sería pues, aquel Derecho que disciplina un conjunto de actividades eficazmente dirigidas al atendimento de los intereses públicos y para las cuales el ordenamento concede potestades sigulares”[2].

Para Lombard, o Direito Administrativo atual é definido como um conjunto de regras aplicáveis à Administração Pública cuja inobservância pode ser sancionada por julgadores independentes [3].

O conceito de Lombard remete à tripartição de Poderes encetada formalmente por Montesquieu[4], com a ideia subliminar de limites ao Poder Absoluto. Lombard mostra claramente que divide a história do Direito Administrativo em duas fases, quais sejam, a moderna e a antiga.

O seu conceito pode ser sotoposto à fase moderna, que dispersa o Poder entre mais de um órgão, e que tem como expressão de maior importância a seguinte: “Estado de Direito”.

O aparecimento do Estado não se confunde, porém, com o surgimento do Estado de Direito, e o Direito Administrativo, ainda que qualificado como antigo, surgiu com o aparecimento do Estado.

Limitar o conceito com a exigência de órgãos independentes para assegurar a sua observância significa limitar o seu período de existência e terminar por limitar o seu estudo à existência de um Estado Constitucional Moderno.

Não havia Administração Pública na França pré-constitucional?

É claro que havia, pois existia um poder estatal central que estava dividido em órgãos e que travava relações contratuais ou estatutárias com os administrados.

Tanto nas relações internas quanto nas relações externas existia desproporção, como há no atual Estado de Direito: um dos atores sobrepunha-se aos demais.

A Administração Pública sempre será onipotente, e o administrado, ou os seus elementos internos, será sempre hipossuficiente, pois, para atingir a finalidade pública, a Administração deve ser dotada de poderes e recursos extraordinários.

No Direito Administrativo antigo, tais poderes não sofriam as limitações do atual Estado de Direito.

O Estado representa a sociedade política dotada de certa organização, devendo ficar bem claras as formas de aquisição, exercício, manutenção, perda do Poder e de fixação das normas de convivência entre os seus membros.

Há três posições fundamentais sobre o surgimento do Estado[5], são elas:

  1. a primeira considera o Estado como a própria sociedade, confundindo-se com a organização social dotada de poder para regulamentar o comportamento de todo o grupo;
  2.  a segunda considera que pode existir sociedade sem a existência de um Estado ainda que durante determinado período de tempo, sendo que depois, a depender do nível de evolução da sociedade e das suas necessidades, pode surgir um Estado;
  3. a terceira somente considera criado o Estado se presentes certas características muito claras e específicas. Os adeptos desta teoria afirmam, inclusive, que podem precisar com grau de certeza a data do surgimento de um determinado Estado.

As afirmações de Dallari[6] mostram que as duas primeiras teorias sobre o surgimento do Estado são compatíveis com a classificação bipartite de Estado (antigo e moderno). A terceira mostra que pode haver um marco temporal exato para o surgimento do Estado, consubstanciado em um fato histórico preciso.

A terceira teoria desconsidera o Direito como um objeto em plena evolução de acordo com os valores escolhidos pela sociedade da época, fixando marcos estáticos para o surgimento de ideias, algo impensável no campo das ciências sociais.

Fato é que o Estado surge com a sociedade organizada para a satisfação do bem comum ou geral, sendo certo que não há como precisar o momento exato de organização da sociedade. É lógico que, para a sua existência, é indispensável um conjunto mínimo de regras consolidado e cognoscível aos seus membros.

O conceito de Direito Administrativo enceta também como elemento próprio um regime jurídico diferenciado, pois, em regra, as relações travadas pela Administração Pública ilustram claro desequilíbrio entre as partes.

As relações estatutárias, ou seja, baseadas somente nas normas gerais, implicam impossibilidade de alteração do conteúdo da relação jurídica, sendo facultada, normalmente, apenas a adesão. As relações contratuais são firmadas com cláusula geral de poderes exorbitantes para a Administração Pública, pois, em alguns casos, podem ser alteradas ou pode ser rescindido o contrato administrativo unilateralmente.

A finalidade deste regime jurídico diferenciado, mitigador da relação equitativa entre as pessoas envolvidas, é a satisfação do interesse público, sendo certo que, para o Poder Constituinte Originário, tal interesse é valor tão caro que pode afastar o Princípio Constitucional da igualdade insculpido no caput do artigo 5º da CF/88.

O conceito menos impreciso de Direito Administrativo é o seguinte: conjunto de normas, regras e princípios, que regem as relações endógenas da Administração Pública e as relações exógenas que são travadas entre ela e os administrados, sob um regime jurídico diferenciado, para a satisfação do interesse público.

O Direito pode ser conceituado, sob a ótica sociológica moderna, como conjunto de normas, regras e princípios, formado por expectativas de comportamentos humanos que o seu criador tem convicção de que não serão atendidas.

A frustração ilustra contradição aparente, pois representa um problema para o Direito e, ao mesmo tempo, nada mais é do que a sua razão de existir.

A convicção do atendimento das expectativas de comportamentos humanos torna desnecessário e inútil o conjunto normativo. Se os criadores das normas regulassem condutas pautadas na inexistência de opção contrária, a norma não seria cumprida em virtude da vontade do indivíduo, mas por não haver outra conduta possível.

Deve ficar claro que o não atendimento às expectativas esperado pelo criador do Direito deve sempre ser planejado como exceção, pois se fosse regra a norma gerada careceria de consensualismo e de heteronomia e a conduta contrária à norma seria desejo da sociedade.

Todavia, os desejos da maioria da sociedade não são absolutos. Caso contrário nada impediria a maioria de exterminar a minoria. Não se deve confundir democracia com ditadura da maioria, pois os direitos fundamentais mostram-se limitadores claros e consistentes dos desejos da sociedade. O mais caro valor fundamental no Estado Democrático de Direito substancial é o direito de existência da minoria.

Hipoteticamente, pode ser dado como exemplo, para ilustrar a ausência de opção, norma jurídica que determinasse a todos os seres humanos a adoção da respiração como prática para sua sobrevivência.

Há como ser diferente?

É claro que não, pois existiria como objeto da norma uma descrição causal que não se processa de outra maneira, não havendo opção. Assim, deve haver, ao menos, a potencialidade real de frustração da expectativa do criador da norma, a fim de que seja vislumbrada a sua necessidade e a sua utilidade, vide “Curso de Direito Administrativo, 2ª ed., Saraiva: 2015, Reinaldo Couto”.

Observe-se, porém, que os conceitos variam de acordo com o seu autor e de acordo com as referências que são usadas na sua elaboração. Não há conceito correto ou conceito incorreto dentro do consensualismo mínimo.

Fernando Correia[7], professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, afirma que o Direito Administrativo é o sistema de normas jurídicas, distintas das do direito privado, que regulam a organização e o funcionamento da Administração Pública e, bem assim, a função ou atividade materialmente administrativa dos órgãos administrativos.

É sistema de normas jurídicas, pois apresenta-se como conjunto de normas dotadas de lógica interna, inspirado por princípios comuns e que constituem algo de homogêneo e específico.

É distinto do Direito Privado por tratar-se, nas palavras de Correia, de corpo de normas de Direito Público, cujos princípios, conceitos e institutos afastam-se do Direito Privado, sendo que as especificidades das normas de Direito Administrativo manifestam-se no reconhecimento à Administração Pública de prerrogativas sem equivalente nas relações jurídico-privadas e na imposição, em virtude do princípio da legalidade, de limitações de atuação mais estritas do que as que atingem os negócios particulares.

O Direito Administrativo busca o equilíbrio entre as exigências da ação administrativa na persecução do interesse público e as exigências de respeito aos direitos e interesses legítimos dos administrados.

As normas que formam o Direito Administrativo disciplinam a organização e o funcionamento da Administração Pública, definindo os entes e as entidades públicas que a compõem e as suas atribuições, os respectivos órgãos e competências e a estrutura dos serviços públicos, bem como o seu modo de agir específico, e regulam a função ou a atividade materialmente administrativa.

Correia entende que somente com o surgimento do Estado de Direito e com o acolhimento do princípio da separação dos poderes é que se pode falar em Direito Administrativo.

Outro conceito de Direito Administrativo qualifica-o como o ramo do Direito Público que tem por objeto os órgãos, agentes e pessoas jurídicas administrativas que integram a Administração Pública, a atividade jurídica não contenciosa que exerce e os bens de que se utiliza para a consecução de seus fins de natureza pública.

Oswaldo Aranha Bandeira de Mello[8] afirma, com precisão, em seu conceito analítico, que o Direito Administrativo juridicamente ordena a atividade do Estado, quanto à organização, ou seja, quanto aos modos e aos meios da sua ação, e quanto à forma da sua própria ação, ou seja, legislativa e executiva, por meio de atos jurídicos normativos ou concretos, na consecução do seu fim de criação de utilidade pública, em que participa, de maneira direta e imediata, bem como das pessoas de direito que façam as vezes do Estado.

Tais atos jurídicos envolvem a ação na disciplina, na fiscalização, na garantia e na publicidade dos atos jurídicos dos particulares; no fomento das atividades livres dos particulares; nas limitações à liberdade, à igualdade e propriedade deles em favor do bem comum; na execução de obras públicas e na efetivação de serviços públicos de oferecimento de comodidades de coisas e prestações; e na exigência de encargos análogos aos particulares, para atender ao interesse do todo social.

A busca por um conceito completo de Direito Administrativo não é recente, pois Albert Dicey[9] afirmava que “droit administratif, or administrative law, has been defined by French authorities in general terms as the body of rules which regulate the relations of the administration or of the administrative authority towards private citizens[10].

Dicey apresentava um conceito subjetivista baseado nos atores das relações tratadas pelo Direito Administrativo, deixando de considerar os elementos regime jurídico diferenciado e satisfação do interesse público.

A Administração Pública deve, entretanto, buscar a satisfação do interesse público como um todo, pois a sua natureza somente resta preservada quando deixa de existir como fim em si mesmo para existir como instrumento de realização do bem comum, independentemente do conceito de Direito Administrativo escolhido.


[1] Manual de Derecho Administrativo. 26ª ed., Navarra: Thomson Aranzadi, 2007.

[2] “O Direito Administrativo seria aquele Direito que disciplina um conjunto de atividades eficazmente dirigidas ao atendimento dos interesses públicos e para as quais o ordenamento concede potestades singulares.”

[3] Martine Lombard. Droit Administratif. 4ª. Ed., Paris: Dalloz, 2001.

[4] O espírito das leis 2ª. ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000.

[5] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 26ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.

[6] Op. cit.

[7] Alguns Conceitos de Direito Administrativo. 2ª. ed., Coimbra: Almedina, 2001.

[8] Princípios Gerais de Direito Administrativo. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979.

[9] Introduction to the study of The Law of the Constitution. 8th. ed., London: Macmillan, 1915.

[10] “Direito Administrativo, ou leis administrativas, tem sido definido pelas autoridades francesas, em termos gerais, como o corpo de normas que regula as relações da administração ou das autoridades administrativas com os cidadãos.”

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