800 anos

Magna Carta ainda continua a inspirar liberdades contra o Estado arbitrário

Autor

  • Thiago Rodovalho

    é professor-doutor da PUC-Campinas. Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP com estágio pós-doutoral no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo Alemanha.

15 de junho de 2015, 15h27

Neste dia 15 de junho de 2015, celebram-se os 800 anos da Magna Carta[1], aquele que é considerado o mais importante documento inglês de todos os tempos, e um dos textos mais citados nos debates constitucionais legislativos e judiciais, à exceção apenas da Bíblia, e que teve sua influência espraiada mundo afora, razão pela qual foi chamada por muitos de "o maior produto de exportação da Inglaterra".[2] Nessa data, celebra-se justamente o dia – ainda que com discussões históricas sobre sua exatidão – em que lhe foi aposto o selo monárquico, o que, grosso modo, equivalia à "assinatura" da Lei, traduzindo a aceitação do Rei, dando-lhe, pois, eficácia.

Muito já foi escrito sobre ela, e muito ainda se tem para escrever. Justamente por isso, nessa data, há celebrações sendo feitas por todo o mundo ocidental, inclusive no Brasil.[3]

Sua relevância não se cinge ao direito constitucional inglês, bastando observar que a Suprema Corte estadunidense a usa com certa frequência, havendo mais de 170 decisões em que ela foi citada.[4] A Magna Carta representa, em verdade, para o mundo ocidental, um verdadeiro marco divisório no direito constitucional, tanto que alcunhada por Lord Denning como "o maior texto constitucional de todos os tempos, a fundação da liberdade do indivíduo contra a autoridade arbitrária do governante" (em tradução livre e adaptada),[5] a ponto de um dos quatros exemplares originais da Carta ter sido guardado no Fort Knox (EUA) durante a 2ª Guerra Mundial, para sua proteção.[6]

No direito inglês, por evidente, seu impacto é ainda mais marcante, a ponto de o historiador William Stubbs afirmar que "toda a história constitucional da Inglaterra é um pouco mais que um comentário à Magna Carta" (em tradução livre).[7]

Elaborada numa peça única, em 3,5 mil palavras escritas em latim medieval, sem a divisão em artigos ou cláusulas como atualmente conhecida (com preâmbulo e sessenta e três cláusulas), que vieram posteriormente,[8] a Magna Carta, como sói acontecer, não é um documento perfeito, havendo disposições condenáveis ou que pouco sentido fariam nos dias atuais.[9] Contudo, foi o primeiro documento do mundo ocidental que estabeleceu os princípios dos direitos individuais do cidadão contra o Estado, marcando a submissão de todos, inclusive e especialmente dos detentores do poder, à Lei, inaugurando, assim, o que depois se denominou de Rule of Law, ou Estado de Direito (État de Droit ou Rechtsstaat),[10] em especial com sua célebre cláusula 39, em tradução livre: “Nenhum homem livre será detido ou preso, nem privado se seus bens, banido ou exilado ou, de algum modo, prejudicado, nem agiremos ou mandaremos agir contra ele, senão mediante um juízo legal de seus pares ou segundo a lei da terra”, que posteriormente passou a ser conhecida como a cláusula do due process of law (conforme, ainda, cláusulas 1, 61 e 63).

Ela não nasceu magna. Inicialmente, denominada apenas de Carta de Liberdades, passou a ser conhecida como Magna Carta (ou Magna Charta Libertatum, no começo com o "h", em latim medieval, que se perdeu depois)[11] no ano de 1218, para se diferenciar da carta menor, a Carta da Floresta (Charter of the Forest), de 1217.

A Magna Carta não foi produto do acaso, mas o resultado de uma longa luta na busca de controle dos arbítrios dos monarcas, que encontrou terreno fértil no reinado de João Sem-Terra (John Lackland), assim apelidado por ser o mais jovem dos oito filhos do então Rei Henrique II, o que lhe diminuía as expectativas de herdar terras ou de lhe suceder ao trono.[12] Quis o destino, contudo, que, com o falecimento de seu irmão, Ricardo Coração de Leão, João Sem-Terra assumisse o trono. Sem o carisma do irmão, João teve um reinado marcado pela tirania. E foi justamente nesse reinado tirânico, num momento de fragilidade do rei, envolto em brigas com a Igreja Católica e fortemente endividado em razão de guerras que travou e perdeu para a França, precisando de mais dinheiro dos Barões, que estes conseguiram, após rebelarem-se e tomarem cidades inglesas, como Londres, negociar e obter a chancela do selo real na Magna Carta. Alguns dos termos negociados vieram a público muito tempo depois, por ocasião da descoberta da Carta Desconhecida (Unknown Charter), que continha termos negociados com o então rei Henrique I, e que depois vieram a ser aceitos por João Sem-Terra.[13]

A versão original da Magna Carta teve, entretanto, pouco efeito prático e curtíssima vigência. Logo, o rei João Sem-Terra apelou ao Papa Inocêncio III, alegando ter sido coagido pelos Barões. O Papa, então, aceitando a alegação do rei, nulificou a Magna Carta em 24 de agosto de 1215, ou seja, dez semanas depois, de modo que a vigência original da Carta não chegou a três meses.

Não obstante isso, com o falecimento do Papa e do Rei no ano seguinte, a Magna Carta foi reafirmada no direito inglês, em diversas oportunidades, em especial, nos anos 1217 e 1225, em versões com modificações, e ainda em 1297. Ainda hoje, quatro cláusulas da Magna Carta permanecem vigentes no direito inglês (quatro cláusulas da versão original, ou três cláusulas inteiras e uma parcialmente na versão de 1225).[14]

Contudo, sua nulificação pelo Papa Inocêncio III e sua celebração mesmo passados 800 anos mostram, historicamente, que a Magna Carta falhou como pacto de paz entre o Rei e os Barões, mas sobreviveu perenemente como um símbolo de liberdade. Sobreviveu não como documento estático, e, sim, como princípio e símbolo, sendo considerada por muitos a gênese das constituições ocidentais modernas.

E 800 anos depois, a Magna Carta ainda continua a inspirar as liberdades dos homens contra arbitrariedades do Estado e de seus Governantes. Vida eterna à Magna Carta, instrumento de liberdade!


[1] As informações e referências deste artigo foram extraídas principalmente de duas excelentes obras, escritas justamente em homenagem aos 800 anos da Magna Carta: Daniel B. Magraw et allii (Eds.). Magna Carta and the Rule of Law, Chicago: ABA, 2014, passim; e Nicholas Vincent (Ed.). Magna Carta – The Foundation of Freedom 1215-2015, London: Third Millennium Publishing, 2014, passim.

[2] Nicholas Vincent (Ed.). Magna Carta – The Foundation of Freedom 1215-2015, London: Third Millennium Publishing, 2014, p. 13.

[3] Na Inglaterra, por exemplo, há uma exibição especial na British Library com os quatro exeplares originais da Magna Carta, junto com exemplares de documentos por ela influenciados, como a Declaração de Independência e a Bill of Rights dos Estados Unidos. No Brasil, é de registrar-se o recente Seminário Internacional Os 800 Anos da Magna Carta, organizado por Cesar Guimarães Pereira e Gilberto Giusti, em parceria com o Instituto dos Advogados de São Paulo, ocorrido no último dia 9 de junho, no escritório Pinheiro Neto Advogados.

[4] Daniel B. Magraw et allii (Eds.). Magna Carta and the Rule of Law, Chicago: ABA, 2014, pp. 10/11.

[5] Nicholas Vincent (Ed.). Magna Carta – The Foundation of Freedom 1215-2015, London: Third Millennium Publishing, 2014, p. 13; no original: "The greatest constitutional document of all times – the foundation of the freedom of the individual against the arbitrary authority of the despot".

[6] Daniel B. Magraw et allii (Eds.). Magna Carta and the Rule of Law, Chicago: ABA, 2014, p. 4.

[7] Nicholas Vincent (Ed.). Magna Carta – The Foundation of Freedom 1215-2015, London: Third Millennium Publishing, 2014, p. 103; no original: "the whole of the constitutional history of England is little more than a commentary on Magna Carta".

[8] Fábio Konder Comparado. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 67: “Embora o texto tenha sido redigido sem divisões nem parágrafos, ele é comumente apresentado como composto de um preâmbulo e de sessenta e três cláusulas”.

[9] A começar pelo uso da expressão free man na cláusula 39, o que excluía a maior parte da população da época. Outros exemplos são a discriminatória cláusula 10 ("If anyone has taken a loan from Jews, great or small, and dies before the debt is paid, the debt is not to incur interest for as long as the heir is under age, whoever he may hold from. And if the debt comes into our hands, we will take only the principal recorded in the charter") e a cláusula 54 ("No man is to be arrested or imprisoned on account of a woman’s appeal for the death of anyone other than her own husband"). Sobre o tema, cfr. Daniel B. Magraw et allii (Eds.). Magna Carta and the Rule of Law, Chicago: ABA, 2014, pp. 15/16.

[10] Thiago Rodovalho. Abuso de direito e direitos subjetivos, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, n. 2.1, p. 41.

[11] Como pontua Fábio Konder Comparato, assim era a forma escrita do latim clássico, com o “ch”, mas foi usado durante toda a idade média sem o “h”. A nomenclatura completa era: “Redigida em latim bárbaro, a ‘Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliae” (Fábio Konder Comparado. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 67). V., ainda, Daniel B. Magraw et allii (Eds.). Magna Carta and the Rule of Law, Chicago: ABA, 2014, p. 9.

[12] Cfr. Fábio Konder Comparado. A afirmação histórica dos direitos humanos, 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2001, p. 67 et seq.; e Thiago Rodovalho. Do Direito Constitucional à Ampla e Efetiva Defesa na Assistência Judiciária Gratuita na Esfera Criminal, in Revista Direitos Fundamentais & Democracia – Unibrasil, v.4, 2008, p. 1/22.

[13] Nicholas Vincent (Ed.). Magna Carta – The Foundation of Freedom 1215-2015, London: Third Millennium Publishing, 2014, p. 33.

[14] São elas, na versão original de 1215:

(Cláusula 1) We have first of all granted to God, and by this our present charter confirmed, for ourselves and our heirs in perpetuity, that the English Church is to be free, and to have its full rights and its liberties intact, and we wish this to be observed accordingly, as may appear from our having of our true and unconstrained volition, before discord arose between us and our barons, granted, and by our charter confirmed, the freedom of elections which is deemed to be the English Church’s very greatest want, and obtained its confirmation by the lord pope Innocent III; which we will ourselves observe and wish to be observed by our heirs in good faith in perpetuity. And we have also granted to all the free men of our kingdom, for ourselves and our heirs in perpetuity, all the following liberties, for them and their heirs to have and to hold of us and our heirs (In primis concessisse Deo et hac praesenti carta nostra confirmasse, pro nobis et haeredibus nostris in perpetuum, quod Anglicana ecclesia libera sit, et habeat jura sua integra, et libertates suas illaesas; et its volumus observari; quod apparet ex eo quod libertatem electionum, quae maxima et magis necessaria reputatur ecclesiae Anglicanae, mera et spontanea voluntate, ante discordiam inter nos et barones nostros motam, concessimus et carta nostra confirmavimus, et eam obtinuimus a domino papa Innocentio tertio confirmari; quam et nos observabimus et ab haeredibus nostris in perpetuum bona fide volumus observari. Concessimus etiam omnibus liberis hominibus regni nostri, pro nobis et haeredibus nostris in perpetuum, omnes libertates subscriptas, habendas et tenendas, eis et haeredibus suis, de nobis et haeredibus nostris).

(Cláusula 13) And the city of London is to have all its ancient liberties and free customs, both on land and water. Moreover we wish and grant that all other cities, boroughs, towns and ports are to have all their liberties and free customs (Et civitas Londoniarum habeat omnes antiquas libertates et liberas consuetudines suas, tam per terras, quam per aquas. Praeterea volumus et concedimus quod omnes aliae civitates, et burgi, et villae, et portus, habeant omnes libertates et liberas consuetudines suas).

(Cláusula 39) No free man is to be arrested, or imprisoned, or disseised, or outlawed, or exiled, or in any other way ruined, nor will we go against him or send against him, except by the lawful judgment of his peers or by the law of the land (Nullus liber homo capiatur, vel imprisonetur, aut dissaisiatur, aut utlagetur, aut exuletur, aut aliquo modo destruatur, nec super eum ibimus, nec super eum mittemus, nisi per legale judicium parium suorum vel per legem terrae).

(Cláusula 40) We will not sell, or deny, or delay right or justice to anyone (Nulli vendemus, nulli negabimus, aut differemus, rectum aut justiciam).

Na versão de 1225, que sofreu modificações em relação à redação original:

(Cláusula 1) In the first place we grant unto God, and by this our present Charter we have confirmed for us, and for our heirs for ever, that the English Church shall be free, and shall have her whole rights and her liberties inviolable. We have also granted to all the free-men of our kingdom, for us and for our heirs for ever, all the under-written liberties to be had and held by them and by their heirs, of us and of our heirs.

(Cláusula 9) The City of London shall have all it’s ancient liberties, and it’s free customs, as well by land as by water. Furthermore, we will and grant that all other cities, and burghs, and towns, and the barons of the Cinque Ports, and all ports, should have all their liberties and free customs.

(Cláusula 29) No free-man shall be taken, or imprisoned, or dispossessed, of his free tenement, or liberties, or free customs, or be outlawed, or exiled, or in any way destroyed; nor will we condemn him, nor will we commit him to prison, excepting by the legal judgment of his peers, or by the laws of the land. To none will we sell, to none will we deny, to none will we delay right or justice.

(Cláusula 37, parcialmente) Scutage from henceforth shall be taken as it was accustomed to be taken in the time of King Henry our grandfather. Saving to the archbishops, bishops, abbots, priors, Templars, Hospitallers, earls, barons, and all others, as well ecclesiastical as secular persons, the liberties and free customs which they have formerly had.

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  • Brave

    é doutorando e mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht em Hamburgo, Alemanha. Membro da Lista de Árbitros da CAM-FIEP, do CAESP, da CARB, da CAE, CBMAE, do CEBRAMAR, e da ARBITRANET.

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