Defesa do consumidor

É preciso manter veto à arbitragem privada de consumo

Autor

  • Claudia Lima Marques

    é professora e diretora da Faculdade de Direito da UFRGS doutora pela Universidade de Heidelberg mestre em Direito pela Universidade de Tübingen (Alemanha) advogada relatora-geral da Comissão de Juristas e ex-presidente do Brasilcon.

9 de junho de 2015, 6h58

É preciso manter o veto ao  parágrafo 3° do artigo 4° da nova Lei de Arbitragem (Lei 13.129/2015) que permitiria a arbitragem de consumo quando o ‘consumidor concordar expressamente’. Todos sabem e também os especialistas em arbitragem e processo civil que agora pedem a derrubada do veto — que a arbitragem privada é para iguais.

Assim foi criada nos mercados italianos na idade média e evolui no mundo do comércio internacional. A arbitrabilidade das questões de consumo é exceção no mundo, sempre a posteriori, non binding (não vinculante) ou só para casos internacionais!

Muitas verdades não estão sendo ditas para os parlamentares sobre a arbitragem privada prevista na lei de arbitragem modificada pela Lei 13.129/2015. Sim, alguém já falou que se retirado o veto, a arbitragem de consumo poderá ser por equidade (por força do artigo 2° da Lei 9.307/96), isto é, uma arbitragem sem aplicação do Código de Defesa do Consumidor (CDC), uma decisão só por princípios gerais do direito (bancário… por exemplo!).

Alguém já avisou que o árbitro não precisa seguir a regra da inversão do ônus da prova a favor do consumidor? Sim, a arbitragem é para iguais, assim o árbitro único (diga-se de passagem!) é soberano quanto ao processo arbitral… e assim tantas outras conquistas do CDC aos consumidores ficarão à sombra e no silêncio (sim, a arbitragem privada é sigilosa!) da decisão arbitral, que não faz jurisprudência! Pior, se derrubado o veto ao parágrafo 3° do artigo 4°, a arbitragem de consumo poderá ser contra analfabetos e analfabetos funcionais (artigo 1 da lei), tão presentes no Brasil, idosos, doentes, superendividados, enfim todos os maiores, e sua decisão será vinculante mesmo que seja com apenas um árbitro (artigo 18 da lei).

O escândalo do NAF (National Arbitration Forum) nos Estados Unidos ensinou que em apenas 1% dos casos decididos por árbitros únicos o consumidor vencia, pois estes árbitros privados eram financiados indiretamente pelos fornecedores através de ligação com escritórios de advocacia! Alguém já mencionou que nada assegura no texto da nova lei de arbitragem — derrubado o veto — que esta arbitragem de consumo deverá utilizar as vitórias das ações coletivas. Ao contrário, a interpretação será que aceitando “expressamente” a arbitragem em contrato de adesão (em negrito como prevê o parágrafo 2° do artigo 4°, também vetado desta nova lei de arbitragem e cuja derrubada ora se cogita…) estará o consumidor abrindo mão das vitórias conseguidas nas ações coletivas!

Sim, os especialistas que agora defendem a derrubada do veto omitem estas verdades. O impacto de não assegurar as conquistas coletivas é tão grande na proteção do consumidor que no Quebéc (Canadá) a lei de proteção do consumidor teve de ser mudada em 2006 para proibir cláusulas que estipulem a arbitragem “que limitem o direito … de participar de uma ação coletiva ou de ser parte de um grupo que  se beneficia de uma decisão positiva em uma ação coletiva” (artigo 11.1).

Omitem também os defensores da derrubada do veto que a nova lei da arbitragem não é clara como o consumidor vai ‘aceitar expressamente” a arbitragem privada por contrato de adesão e em negrito (o vetado  parágrafo 2° do artigo 4°) e se com isso estará abrindo mão de seus direitos consolidados em súmulas e decisões judiciais em repetitivos!

Os que pedem a derrubada do veto afirmam que esta arbitragem privada e por árbitro único — sem nenhuma segurança no texto da lei! — seria uma ‘boa opção’, mas pergunta-se porque o texto vetado é tão curto e nada assegura de garantias normais no direito comparado aos consumidores brasileiros[1]… que em verdade ficariam na total dependência do mercado e da ‘boa vontade’ dos fornecedores, experts e multinacionais, acostumadas à arbitragens multimilionárias!

A verdade é que as normas vetadas e a nova lei não protegem os direitos conquistados dos consumidores em 25 anos de CDC! No ano que o Código de Defesa do Consumidor completa 25 anos, o Parlamento brasileiro ainda não aprovou o projeto de atualização do CDC (PLS 281 e 283 de 2012), que inclui novo capítulo sobre comércio eletrônico e sobre prevenção do superendividamento e quer derrubar um veto instituindo a arbitragem de consumo sem limites e para todos os temas de consumo (da compra no supermercado, do bem imóvel, do automóvel, nos serviços de planos de saúde, de cartão de crédito, de contrato bancário!) e através de um ‘misero’ parágrafo na lei de arbitragem permitindo a arbitragem privada por árbitro único!

Há verdades que precisam ser ditas: quem quer regular uma opção nova ao consumidor deve fazer com cuidado e sem retrocesso, até porque o tema da proteção do consumidor é constitucional (artigo 5º, inciso XXXII da CF/88). O veto à arbitragem de consumo deve ser mantido, pois a redação do artigo 4 é ruim e fragiliza em muito a defesa do consumidor no Brasil!

Esperamos que o Parlamento seja sensível à verdade de que a norma vetada não foi clara e não é suficiente para proteger os consumidores e que somente o veto — se mantido — protege os direitos dos consumidores. Parabenize-se o veto e aqueles parlamentares que sabem escutar o clamor das ruas, pois sequer um limite será imposto no Brasil à arbitragem privada de consumo, assim se o veto a este texto do parágrafo 3 do artigo 4 não for mantido, idosos, analfabetos e todos, em breve, estaremos não mais recorrendo a procons, juizados especiais e sim submetidos à arbitragens privadas, inclusive sobre serviços públicos, sempre em contratos de adesão!

É preciso manter o veto e as conquistas de proteção aos consumidores! Aprovar, sim, a atualização do CDC que todos os consumidores brasileiros clamam!


[1]Minha sugestão de redação seria a seguinte: “Art. …Na relação de consumo fica proibida  a cláusula que imponha a arbitragem ao consumidor, ou lhe retire o direito de recorrer ao Judiciário individualmente ou em ação coletiva, assim como de se beneficiar de decisões em ações coletivas.  § 1º O consumidor pode, se há um litígio após a conclusão de um contrato, concordar expressamente em  instituir uma arbitragem, se gratuíta para ele e se houverem sido dadas garantias de imparcialidade da instituição arbitral escolhida, cujos árbitros devem aplicar as normas do Código de Defesa do Consumidor, inclusive quanto à inversão do ônus da prova, assim como as demais leis de ordem pública, que garantam direitos aos consumidores, sob pena de poder o consumidor em 15 dias após o laudo pedir sua anulação no Judiciário. § 2º O consumidor analfabeto e em estado de superendividamento não poderá se submeter à arbitragem privada. § 3º O consumidor de 60 anos ou mais somente poderá se submeter à arbitragem privada acompanhado de advogado. § 4º Fica proibida a arbitragem frente a consumidores em materia de serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários, inclusive nos planos de saúde.”  (MARQUES, Claudia Lima. Estudo sobre a vulnerabilidade dos  analfabetos na sociedade de consumo: o caso do crédito consignado a consumidores analfabetos, in Revista de Direito do consumidor 95).

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