Diário de Classe

O manobrador-geral da República e a metáfora do Behemoth, de Thomas Hobbes

Autores

  • André Karam Trindade

    é doutor em Direito professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel e sócio do escritório Streck & Trindade Advogado Associados.

  • Marcelo Cattoni

    é professor Titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) mestre e doutor em Direito pela UFMG pós-doutorado com bolsa da Capes em Teoria do Direito pela Universidade de Roma III e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (1D).

6 de junho de 2015, 8h00

Esta coluna é sobre um artigo que ainda não foi escrito. Talvez por isso possa ser considerada uma espécie de pequeno ensaio — quiçá apenas um (bom) insight —, uma vez que não atenderia, para alguns, quem sabe, as exigências de um artigo, isto é, uma dissertação argumentativamente justificada, com base em referencial teórico suficientemente explicitado, sobre determinado tema.

Pois o mês de maio deste ano começou com a Emenda da Bengala e terminou com a aprovação, em primeiro turno, na Câmara dos Deputados, da proposta de emenda constitucional que autoriza o financiamento empresarial das campanhas eleitorais. A primeira, advinda de uma já velha ideia de se passar a aposentadoria compulsória dos Ministros das cortes superiores, em especial do Supremo Tribunal Federal, de 70 para 75 anos, é usada com a intenção política — repetida e repetida aos quatro ventos — para impedir que a Presidente Dilma, agora em seu segundo mandato, indique mais nomes ao Senado para compor o STF. A segunda, por sua vez, resulta da reapresentação e aprovação (na mesma sessão legislativa) do financiamento empresarial de campanha, após 84 deputados, de um dia para o outro, literalmente, terem mudado de ideia.

“Fraude!”, gritaram os juristas, mesmo que alguns não tenham se dado ao trabalho de explicar o que seja “Fraude à Constituição”. “Manobra!”, gritaram os jornalistas. E, na falta de maior ou de nenhuma explicação, prevaleceu até agora “manobra”.

“Manobra”, portanto, foi a palavra do mês de maio. E, para isso, basta contar quantas vezes essa palavra apareceu no noticiário. O curioso é que, ao menos no mês de maio, ela esteve frequentemente acompanhada de um protagonista: “Após manobra de Cunha, Câmara aprova em segundo turno a PEC da Bengala” (O Globo); “Manobra de Cunha leva reforma política ao plenário nesta terça-feira” (Correio Brasiliense); “Após manobra de Cunha, deputados aprovam financiamento de partidos por empresas” (CBN); “Cunha manobra e Câmara vota novamente financiamento privado” (Folha); e, mais recentemente, “Supremo dá 48h para Cunha se explicar sobre manobra em votação da reforma política (Estadão).

Na verdade, se o leitor lançar “manobra” no Google ficará, realmente, surpreendido com as inúmeras referências à palavra e à personagem em questão: lá está, mais uma vez, o Presidente da Câmara, manobrando, pondo mãos à obra.

Mas a que mãos, mas a que obra? “Manobrar”, todo mundo sabe, não é simplesmente por mãos à obra. Há sempre um certo, ou incerto, modo de fazer isso. Manobra aqui não é apenas dirigir ou mesmo governar. Manobra é empregar determinados meios para se alcançar os fins desejados. Ora, manobra é, assim, astúcia. Mais que habilidade, é artimanha. E o último mês de maio foi o mês da manobra. O Presidente da Câmara, Deputado Eduardo Cunha, é, pois, o “manobrador-geral da República”.

Triste República. E “República de bananas” se, a esta altura, nada fizer o STF em relação a tudo isso. Ou se também nós, cidadãos, nada fizermos em relação a esse “estado de coisas”. Pois esse senhor deputado e a sua entourage (in)visível correm o sério risco de se tornarem aquele monstrengo a que, metaforicamente, o filósofo Thomas Hobbes se referiu. Leviatã? Não, não: Behemoth, o mostro bíblico que Hobbes escolheu para simbolizar o “Longo Parlamento”, tomado por lutas religiosas entre aqueles que, em (des)razão da intolerância entre seus diversos credos religiosos, levaram a Inglaterra de meados do século XVII à “guerra de todos contra todos”. Difícil, apesar da advertência de Renato Janine em seu prefácio à tradução brasileira, não ser aqui anacrônico.

Afinal, nada mais perigoso para a política que a pretensão a verdades absolutas, como já dizia Hannah Arendt, talvez aqui inspirada em Hobbes e num espírito profundo de antiplatonismo sempre benéfico. Nada mais perigoso do que a crença de se ter acesso privilegiado a verdades absolutas. Eis que isso sempre coloca em risco — totalitário — a igualdade, que é o selo maior da cidadania, do direito (de todos e de qualquer um) a ter direitos; da cidadania que só se constrói republicanamente entre aqueles que se reconhecem como iguais, com sua diversidade de opiniões, cuja base institucional repousa sempre no respeito às leis e à Constituição.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!