Ideias do Milênio

"Ocidente vive um vazio, mas não sabe o que está faltando"

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5 de junho de 2015, 6h55

Alexis Duclos/Site oficial
Alexis Duclos/Site oficial

Entrevista concedida pelo escritor francês Michel Houellebecq à jornalista Elizabeth Carvalho, para o programa Milênio, da GloboNews.

O Milênio é um programa de entrevistas, que vai ao ar pelo canal de televisão por assinatura GloboNews às 23h30 de segunda-feira. É reapresentado em horários alternativos, às terças-feiras (11h30 e 17h30), quartas-feiras (5h30), quintas-feiras (6h30 e 19h30) e domingos (7h05).

A quarta-feira de 7 de janeiro de 2015 abriu uma chaga na França e também na vida de Michel Houellebecq. Nesse dia, o acaso fez que seu último romance chegasse às livrarias quase no mesmo momento em que oito jornalistas do semanário Charlie Hebdo morriam metralhados por dois jovens muçulmanos radicais inconformados com a forma com que o profeta Maomé era tratado nas charges do jornal.

Antes mesmo de nascer para o grande público, Submissão, que acaba de chegar ao Brasil, já provocava polêmica nos círculos intelectuais de Paris. Houellebecq foi acusado por alguns de xenófobo e, por outros, de dar suporte à forte presença do Islã na França.

A história se passa em 2022, com a chegada ao poder de Mohamed Ben Abbes, um político moderado do partido da irmandade muçulmana que vai governar em coalizão com os principais partidos da França. Seu primeiro ministro é o centrista François Bayrou, personagem real da vida política.

A trágica sincronicidade do atentado ao Charlie Hebdo com o lançamento do livro o transformou imediatamente em um sucesso de vendas. Desde então Houellebecq se retraiu, mas não abandonou o personagem que interpreta de si mesmo. Houellebecq segue fazendo o tipo sombrio, angustiado, depressivo, sem muito gosto pela vida, que observa com indiferença o que se passa a sua volta. Se a França de fato atravessa uma crise existencial, como querem crer algumas de suas cabeças mais conceituadas, Houellebecq é, em última instância, sua melhor ilustração.

Elizabeth Carvalho — Gostaria de começar com algumas citações. “Procuramos sempre entre os romancistas um fragmento da verdade deste mundo, em que somos jogados e que nos angustia.” Foi o que escreveu seu amigo Bernard Maris, jornalista e economista que foi morto com seus amigos na redação do jornal Charlie Hebdo em 7 de janeiro. E que escreveu Houellebecq Economista, um livro que me ajudou bastante a entender o conjunto de sua obra.  Então, eu o convido antes de mais nada a falar disso, dos fragmentos de verdade que a gente pode encontrar em Submissão, que acaba de ser lançado no Brasil.
Michel Houellebecq —
Não foi escrito exatamente para descrever o que vai acontecer, na verdade. Tem mais a ver com o que as pessoas temem que aconteça. Se você pensar nisso, pegar os livros premonitórios mais conhecidos, Admirável mundo novo, 1984, são livros muito conhecidos, o autor não tenta exatamente prever o que vai acontecer, mas sim descrever o medo das pessoas de sua época sobre o que pode acontecer. Aqui é parecido.

Elizabeth Carvalho — Mas não tenho a impressão que temos medo, quando lemos o seu livro. Temos uma constatação, muito séria, por exemplo, quando falamos do declínio da Europa…
Michel Houellebecq —
Sim, tem gente que tem medo. Que tem medo do Islã. Na França e na Europa em geral. Tem medo de serem dominados pelo Islã. Então é um medo real.

Elizabeth Carvalho — Eu o vejo um pouco como um excelente cronista do nosso tempo. Seus personagens circulam em um mundo real, os atores reais da política, da vida pública, da sociedade, estão todos aí. No entanto, você conta uma história do ponto de vista de um observador, um personagem que me parece indiferente ao que acontece à volta dele.
Michel Houellebecq —
Ah sim, ele não quer saber de política. Nada. Não o interessa. Tem muita gente assim. Para ele, tanto faz. Mas o que acontece é que a política se interessa por ele. Quer dizer, acontecimentos históricos reais terão um impacto na vida dele. Mas a primeira reação dele é ficar estupefato, indignado que a história possa influenciar a vida dele.

Elizabeth Carvalho — Esse personagem é totalmente fictício ou talvez tenha fragmentos de verdades suas?
Michel Houellebecq —
Não só minhas, são muitas as pessoas que não têm nenhum interesse por política, que não ligam, que não votam, [com a visão de que política] não os interessa, não é problema deles.

Elizabeth Carvalho — Você vota?
Michel Houellebecq —
Não.

Elizabeth Carvalho — Faz quanto tempo?
Michel Houellebecq —
Acho que nunca votei.

Elizabeth Carvalho — De todo jeito, vi algumas entrevistas suas antes do lançamento do seu livro, em que você falava de um vazio muito forte da religião, que as pessoas experimentam no Ocidente hoje. É verdade?
Michel Houellebecq —
Sim, mas não dá para detalhar, porque a gente não sabe o que está faltando. Quero dizer, o algo mais. Se é a ideia de vida após a morte, se é só um coletivo…

Elizabeth Carvalho — Os valores? Humanistas?
Michel Houellebecq —
Não pensei nisso primeiramente, mas talvez. A sensação de algo coletivo, que é oferecido pela religião. Pode ser o medo da morte, ou pode ser muito mais concreto. O fato de que a vida seja organizada, com rituais a cumprir, todos os dias, todas as semanas, que haja uma estrutura de vida.

Elizabeth Carvalho — Dá um sentido à vida?
Michel Houellebecq —
É um pouco demais. Digamos que organiza.

Elizabeth Carvalho — Acabo de descobrir um intelectual francês que me pareceu compartilhar a ideia de que há na França uma crise existencial devida à retração da religião. É o historiador e demógrafo Emmanuel Todd. Acabo de ler um debate sobre o pós-Charlie, onde Todd desconstrói a imagem de uma unanimidade na manifestação de 11 de janeiro, que foi sobretudo a maior manifestação já vista na França. Como você descreveria esse 11 de janeiro? Marcou você?
Michel Houellebecq —
Menos do que o 7 de janeiro.

Elizabeth Carvalho — Como o 7 de janeiro marcou você?
Michel Houellebecq —
Primeiro, perdi um amigo, e todos os que estavam ali… Você sabe que eram pessoas muito conhecidas que foram assassinadas? Bernard Maris menos, mas Cabu e Wolinsky eram os dois cartunistas mais famosos da França.

Elizabeth Carvalho — Sim, sei disso.
Michel Houellebecq —
Então, todo mundo entendeu bem o que estava acontecendo. Eles foram mortos pelos desenhos que fizeram e para proibir outros do tipo. As pessoas participaram porque há uma ligação com a liberdade neste país. O que chamamos de liberdade de expressão. Acho que a liberdade de expressão nunca foi atacada de forma tão selvagem na história da França.

Elizabeth Carvalho — Isso o obrigou a uma releitura do que você tinha escrito no livro Submissão?
Michel Houellebecq —
Digamos que o livro talvez seja de um otimismo exagerado, porque mostra uma situação em que um político, dotado de uma verdadeira genialidade política, o muçulmano Ben Abbes, consegue controlar os extremistas. Consegue controlar…

Elizabeth Carvalho — E ser apoiado por todos os partidos, pelos dois partidos na França.
Michel Houellebecq —
Isso não é o mais difícil na verdade. O mais difícil é, na contracorrente, conseguir criar uma espécie de união entre os muçulmanos. Aí, nada indica que alguém assim possa surgir. Então é bem possível que o futuro seja bem mais sombrio do que eu escrevi no meu livro. Além disso, não sei se o islamismo vai se multiplicar mesmo, o que pode acontecer. Os extremistas querem provocar uma guerra civil. Podem conseguir. Mas ninguém pode dizer ao certo o que vai acontecer, mas não existe uma personalidade federativa no Islã.

Elizabeth Carvalho — E você se arrepende de ter escrito esse livro?
Michel Houellebecq —
Não. Nada. No geral, nunca se falou tanto sobre religião quanto agora. Há apenas dez anos não se falava nada sobre o Islã na França, o assunto não existia. Agora, só se fala nisso praticamente. Ou seja, as coisas mudam.

Elizabeth Carvalho — No entanto, o Islã teve um papel importante na história colonial francesa.
Michel Houellebecq —
Sim, mas as pessoas não sabem disso. A história colonial francesa. Eu nem sabia que tínhamos colônias. E não estou brincando quando digo isso.

Elizabeth Carvalho — Você não fazia ideia?
Michel Houellebecq —
Vagamente. Na verdade, quero dizer, nunca pensei muito nisso. Na verdade nunca tinha pensado nisso na vida. E não penso nisso quase nunca.

Elizabeth Carvalho — O que é que te interessa?
Michel Houellebecq —
Muita coisa, mas isso não. Não é mesmo um tema. Acho que há muçulmano na França faz tempo, desde os anos 50, mas há dez anos não se falava disso. Talvez, não sei, talvez praticassem a religião isolados. Talvez tenham se afastado pouco a pouco do Islã e tenham voltado a ele recentemente. Não sei. Mas o fato é que era um problema que não existia há apenas dez anos.

Elizabeth Carvalho — Mas hoje está presente.
Michel Houellebecq —
Hoje está muito presente.

Elizabeth Carvalho — E como é que você enxerga isso?
Michel Houellebecq —
Eu constato que está muito presente, assusta as pessoas. No geral, na minha vida não devemos considerar as coisas como explicáveis. Sobretudo as coisas humanas. Dá para observá-las, mas interpretá-las. No geral, as interpretações são terríveis. O ser humano é imprevisível. Não existe teoria capaz de prever o comportamento. Nem psicológica, nem sociológica. É tudo cascata, tudo isso é cascata. Falta respeito intelectual para levar a sério essa gente. Não tenho respeito intelectual por um sociólogo, um economista ou um psicólogo.

Elizabeth Carvalho — E por quem você tem respeito?
Michel Houellebecq —
Pelos físicos, as pessoas sérias. Os matemáticos são gente séria.

Elizabeth Carvalho — Deus? Você acredita em Deus?Michel Houellebecq — Depende do dia.

Elizabeth Carvalho — Hoje, por exemplo?
Michel Houellebecq —
Hoje não. É um dia sem.

Elizabeth Carvalho — Hoje é um dia sem Deus?
Michel Houellebecq —
Ainda que hoje de manhã tive um breve instante de crença em Deus, estava assistindo a um programa sobre a teoria das cordas. Bastante impressionante. Você sabe, dentro da teoria do universo, tem a teoria das cordas, com muitos universos paralelos, é fascinante.

Elizabeth Carvalho — E aí, você acha que Deus existe?
Michel Houellebecq —
Sim, dá pra achar que deve haver um Deus, porque é tudo muito bem organizado. A complexidade do conjunto é admirável.

Elizabeth Carvalho — E isso é algo que seu personagem, no livro, diz sobre o universo, sobre um mundo redigido.
Michel Houellebecq —
Sim, ele lembra que o mundo, a hipótese de um mundo sem criador.

Elizabeth Carvalho — É a partir daí que começa a conversão dele.
Michel Houellebecq —
Sim, mas sempre foi o argumento maior e o mais poderoso, das pessoas que querem nos converter. Dizer “Você realmente acha que isso tudo é um caos e que se formou por acaso?” Aí mostram o mundo e tudo, e realmente, a estrutura é impressionante, a organização impressiona. É o argumento do deus relojoeiro, que permanece um argumento forte, que não se mexeu ao longo dos séculos.

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