Direito comparado

Como se produz um jurista? O modelo inglês (Parte 16)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

3 de junho de 2015, 13h34

Spacca
1. Uma história insular
O ano de 1066 é sempre considerado como o marco efetivo do nascimento da monarquia britânica. Em 14 de outubro desse ano, o duque normando Guilherme (1035-1087), cujo agnome é “o conquistador”, venceu as tropas anglo-saxãs do rei Harald, iniciando o longo domínio normando sobre as ilhas britânicas e refundando a história daquele país. O conflito ocorreu no velho Sussex e passou à posteridade como Batalha de Hastings. Com Guilherme vieram nobres franco-normandos que constituíram a elite nacional por séculos e, até os dias de hoje, a referência a alguma antepassado que chegou às ilhas “com o Conquistador” é algo que confere enorme status.

A derrota de Harald em Hastings foi consequência de vitória, em 25 de setembro de 1066, na Batalha de Stamford Bridge. O rei anglo-saxão perdeu homens demais e não teve como resistir ao desembarque normando três semanas depois após a sangrenta batalha ocorrida na região de Yorkshire. Em Hastings, Harald confrontou-se com Haroldo Hardrada, o Manto Cinzento, rei dos noruegueses, que também postulava o trono da Inglaterra. Ao lado de Hardada encontrava-se o conde Tostig Godwinson, irmão e traidor do rei Harald. Tostig, após o desembarque, a mando de Hardrada, procurou o irmão e lhe propôs um acordo. O rei Harald, indignado com o irmão traidor, deu uma resposta que passou à História: “Diga a Haroldo Hardrada, rei dos noruegueses, que ele só terá direito a sete palmos da boa terra inglesa e nada mais do que isso”.[1]

Ao final do dia, Haroldo Hardadra e o conde Tostig receberam a terra prometida pelo rei Harald, onde até hoje descansam juntamente com os 8 mil soldados noruegueses mortos, dos 9 mil que entraram em ordem de batalha.

Em 1940, a frase de Harald seria repetida. Não em uma conversa ao pé da batalha, mas em um discurso no Parlamento britânico, proferido pelo recente primeiro-ministro Winston Churchill, após a queda da França e a conquista de quase toda Europa pelos alemães. A uma proposta de Hitler para que fizessem um acordo de paz, Churchill disse no Parlamento: “A mesma promessa feita nos campos de Hastings, há quase mil anos, está de pé. Ao Sr. Hitler, só posso oferecer sete palmos da boa terra inglesa. E nada mais!”

Esses dois episódios simbolizam o caráter insular da História das ilhas britânicas, para não se referir ao próprio povo, embora se rejeite esse tipo de explicação estruturalista. Essa insularidade revela-se em quase tudo e, no Direito, com maior intensidade ainda.

2. Um direito inglês e as raízes de sua autonomização
Se, até agora, nossa série de colunas se ocupou de “modelos” de ensino jurídico e de formação dos juristas em países das Europa continental, hoje se inicia o estudo desse tema na Inglaterra e no País de Gales. Tal delimitação geográfica já é, de per si, muito peculiar. Não se vai examinar o ensino jurídico britânico, mas anglo-galês, pois não existe um direito britânico e sim um direito inglês, um direito escocês e um direito irlandês. As diferenças entre esses são tão acentuadas que não é correto dar-lhes um tratamento uniforme.

Outro aspecto digno de nota especial: a expressão “sistema”, “família” ou “tradição” romano-germânica serve para caracterizar o Direito continental europeu e de todos os países não europeus que assim se filiam. Segundo Dario Moura Vicente, a “autonomização da família jurídica de Common Law”, cujas raízes estão no Direito inglês, deveu-se a uma série de fatores, tais como: a) o fracasso das tentativas de se promover a recepção do Direito produzido no Império Romano, na Idade Média, pelo clero católico, que ocupou importantes postos na burocracia do Reino da Inglaterra; b) a rejeição do Direito de tradição romana pelos tribunais ingleses, com posterior apoio dos monarcas; c) o receio de que a introdução do Direito produzido em Roma, especialmente nas fases finais do Dominado, mitigasse ou eliminasse o sistema consuetudinário inglês e a tradição de liberdades individuais; d) a ausência de rupturas institucionais como a Revolução Francesa. Mesmo nas guerras civis ou rebeliões como a Revolução Gloriosa e a Revolução Puritana, conservou-se intacta a estrutura de poder no país, a despeito da eliminação de parte dos membros da elite dominante; f) a forte influência da filosofia utilitarista e liberal na formação de uma consciência coletiva de pertencimento a um Estado de Direito fundado nas liberdades fundamentais; g) a possibilidade retroalimentação e renovação do sistema por meio de sua expansão para as colônias e pela crescente influência da língua inglesa, que se tornou o idioma franco internacional.[2]    

Dario Moura Vicente, cujo livro é a melhor obra em língua portuguesa sobre Direito Comparado (equiparável aos grandes clássicos de René David), transcreve uma passagem da aula inaugural de Blackstone, em 1758, na Universidade de Oxford, que é explicativa sobre as causas dessa singularidade do Direito inglês: “Não devemos preferir o edito do pretor ou o rescrito do imperador romano aos nossos costumes imemoriais ou às leis de um Parlamento inglês; a não ser que prefiramos também a monarquia despótica de Roma e Bizâncio, para cujas populações os primeiros foram gizados, à Constituição livre da Grã-Bretanha, que os últimos estão aptos a perpetuar”.[3]

Contemporaneamente, esse Direito tão particular há recebido fortes influxos do Direito europeu. Esclareça-se: não me refiro ao direito continental europeu, que tem sentido diverso do direito europeu, a saber, aquele produzido pelos órgãos da União Europeia. Em diversas colunas, tive a oportunidade de tratar dessas evoluções mais recentes do Direito inglês, ao exemplo das seguintes: a) retirada das funções jurisdicionais e a mudança de papel da Câmara dos Lordes, que caminha para sua extinção ou para sua conversão em uma espécie de Senado, embora ela seja hoje — nos moldes atuais — um órgão legislativo mais plural e representativo da sociedade do que muitas casas congêneres, cujos membros são eleitos por sufrágio universal; b) a criação da Suprema Corte do Reino Unido, que começa a desempenhar funções próximas a de um “supremo tribunal de justiça” europeu; c) o impacto do Tratado Europeu de Direitos Humanos sobre a tradição de Common Law e a busca dos juízes locais por um caminho que preserve as características tradicionais de seu Direito; d) os conflitos institucionais da jurisdição interna com a jurisdição europeia e os sinais de que Londres irá denunciar o Tratado Europeu de Direitos Humanos; e) a inflação legislativa britânica dos últimos 100 anos, que compromete a noção clássica de um país fundado majoritariamente em direito costumeiro.   

3. Um direito de juristas ou um direito de juízes?
Se o Direito alemão é um “direito dos professores”, na Inglaterra tem-se um “direito dos juízes”. Embora não se encontre na Inglaterra uma realidade na formação jurídica como a norte-americana, o modelo inglês diferencia-se fundamentalmente de seus congêneres continentais pela ausência de centralidade do professor. Os ingleses atribuem essa posição de preeminência ao juiz e ao advogado, neste último caso, mais precisamente, aos barristers, que “são geralmente juristas altamente qualificados, gozando de grande prestígio social” e que “constituem a elite da profissão e é entre eles que são recrutados os juízes dos tribunais superiores”.[4]

Essa diferenciação reflete-se na remuneração e no caráter relativamente recente da estrutura dos cursos jurídicos ingleses, que são integrados a um modelo de formação jurídica cuja parte profissional é compartilhada com as corporações de classe, as quais não exigem o bacharelado em Direito para o exercício de funções jurídicas. Tal modo de se organizar o sistema de formação jurídica na Inglaterra soma-se às diferenças de composição curricular e de estrutura das disciplinas, o que acentua a dificuldade de conversão dessas estruturas para modelos ligados à tradição romano-germânica. Essa assimetria é notável quando se percebe a baixíssima influência do Direito inglês em áreas clássicas como Direito Civil, o Direito Penal e o Direito Administrativo. No Direito Constitucional, o cenário é diferente, por óbvias razões históricas, da mesma maneira como na Filosofia do Direito, na Teoria do Direito e em ramos mais modernos como o Direito das Comunicações e do Entretinimento.    

A grande vantagem “competitiva” do Direito inglês está na língua inglesa, o latim de nosso tempo. Esse avanço do inglês gerou consequências importantes como a aproximação cada vez maior de juristas alemães às universidades inglesas, como é emblemático o exemplo de Reinhard Zimmermann. No entanto, as distinções permanecem acentuadas, ao exemplo da inexistência de um “Direito Civil” abrangente como se tem na tradição romano-germânica, cujo equivalente inglês são disciplinas específicas como Torts, Contracts ou Family law. Até mesmo a tradução de Direito Civil por Civil law é equívoca, dado que Civil law tem um sentido específico de contraponto a Common law, embora hoje, até por persistência no erro, essa nomenclatura se haja tornado frequente.

A formação jurídica inglesa fica, portanto, a meio caminho do que ocorre nos Estados Unidos, onde os cursos de Direito não são graduações no sentido continental, e o que se opera na Europa. Essas diferenciações têm enorme relevância para qualquer estudo nesse campo.

4. A falta e o excesso de centralidade do Direito na sociedade inglesa
Na Inglaterra e no País de Gales, o Direito é central e não é central. Este paradoxo explica-se. A consciência dos direitos individuais, a tradição de defesa desses direitos em face do Estado e a presença efetiva do aparato judiciário-penal na vida cotidiana convertem a sociedade inglesa em um espaço tipicamente jurídico. O Direito permeia a sociedade e foi nele inserido de maneia suave e imperceptível. Ele se tornou parte da estrutura social e as pessoas o encaram como algo próprio de suas vidas. Por outro lado, não há uma percepção social diferenciada em relação aos juristas e ao Direito, como se ele fosse responsável por dizer a última palavra nos conflitos e nos impasses políticos ou econômicos. Reserva-se ainda um espaço saudável para a ágora político-partidária. O Parlamento é o centro da vida política e não a Suprema Corte. Os conflitos são expostos em outros cenários que não os tribunais. Ir à Justiça não é algo barato e não se concebe um “amplo acesso à função jurisdicional” com algo inerente à cidadania e que deva ser exercitado sem elevados ônus financeiros em relação a advogados e custas judiciais realmente caras.

5. Nas próximas colunas
A sequência sobre ensino jurídico na Inglaterra ocupar-se-á das universidades, dos currículos, das aulas, da remuneração dos docentes e seu recrutamento, além das profissões jurídicas.  

A viagem continua, desta vez com a travessia do canal da Mancha.    

 


[1] O episódio é narrado em: CHURCHILL, Winston S. Uma história dos povos de língua inglesa. Edição condensada dos quatro volumes por Henry Steele Commager. Tradução de Vera Giambastiani, Antonio Sepulveda e Gleuber Vieira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, Univercidade, 2009. p.45-46.

[2] MOURA VICENTE, Dario. Direito comparado. 3 ed. Coimbra: Almedina, 2014. v.1 p.225-228.

[3] MOURA VICENTE, Dario. Op. cit. p.226.

[4] MOURA VICENTE, Dario. Op. cit. p.251.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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