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STF dá lição de constitucionalismo em defesa da segurança jurídica

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3 de junho de 2015, 8h02

“Ficar doente, ser atropelado, ter um enfarte ou coisa pior, ficar maluco, tropeçar e quebrar a perna, um gordo pular da janela e cair sobre a sua cabeça, posso ficar horas citando situações perigosas.”

Voltei para casa pensando, então viver é isso? Correr riscos? Perigos?

Fiquei na cama sem conseguir dormir. Viver é uma merda, pensei.

Fui para a cozinha preparar um cafezinho. Quando acendi o gás, o fogão explodiu.

Rubem Fonseca, “Viver” [1].

Perdeu playboy!

Com essas palavras são anunciados os assaltos na cidade do Rio de Janeiro. Ouvi-las significa para alguns que se perdeu a carteira, o celular, a bolsa, a bicicleta; para outros que se perdeu a vida e para todos os que ficaram que se perdeu a esperança.

À perda da esperança soma-se o medo. Medo de morrer barbaramente esfaqueado quando nos exercitamos num dia qualquer, como sucedeu com o médico Jaime Gold; medo das fatalidades da vida, como a explosão do apartamento do alemão Markus Muller, que acabou não resistindo aos ferimentos e morreu.

Essa última notícia fez-me lembrar de conto do recém-lançado livro de Rubem Fonseca, cuja passagem final se transcreve na epígrafe. Viver é correr riscos, isso é certo, mas quais os riscos que estamos dispostos a correr enquanto sociedade organizada? O que são fatalidades que não podem ser evitadas e o que são agressões contra as quais precisamos de proteção?

Pertenço a uma geração que nasceu nos anos do regime militar, que acompanhou o processo de abertura política e que pode eleger seus representantes civis. Uma geração que passou pelos anos 1980, uma década perdida, marcada pela hiperinflação e por planos econômicos heterodoxos. Uma geração que se regozijou com o fim da hiperinflação e o início de um processo de estabilização da moeda, proporcionados pelo Plano Real, no início dos anos 90 do século passado. Uma geração que confiou na alternância de poder como um sinal de amadurecimento institucional, afinal os frutos da estabilidade seriam colhidos por toda sociedade, com os governos futuros trabalhando para promover uma distribuição de renda mais justa, para promover melhorias na saúde e na educação públicas, para fortalecer a economia, gerindo adequadamente setores estratégicos como a indústria do petróleo, que experimentava seu auge com a descoberta das novas fronteiras do pré-sal.

Essa geração hoje está dividida, raivosa, frustrada e, sobretudo, triste. Tem filhos para criar e não consegue mais projetar um futuro, fazer planos, sentir-se segura. A todo o instante, quando se revelam os incontáveis escândalos de corrupção, os descalabros da gestão da coisa pública, o fracasso das políticas sociais, a decadência econômica, soa o decreto fatal: Perdeu playboy!

Perdeu playboy é o que se diz ao cidadão quando agentes públicos desviam verbas em esquemas de corrupção que permeiam as entranhas do poder.

Perdeu playboy é o que se diz ao cidadão quando o governo pratica atos de gestão temerária da coisa pública, com políticas fiscalmente irresponsáveis, financiadas por uma das maiores cargas tributárias do planeta e, certamente, a mais complexa.

Perdeu playboy é o que se diz ao cidadão quando esse mesmo governo se vê forçado a aumentar impostos para remediar o descalabro que fez com as contas públicas por irresponsabilidade, corrupção e incompetência.

Esses decretos não são consequências de meras fatalidades, mas de verdadeiras agressões ao patrimônio público e à propriedade privada que não podem passar incólumes. A maturidade institucional que se diz (e se quer) presente no Brasil significa o respeito dos governantes aos limites postos pela Constituição.

A interpretação desses limites nos é dada pelo Supremo Tribunal Federal (“STF”). E a 1ª Turma do STF, no acórdão proferido do Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 564.225/RS, deu uma lição de constitucionalismo moderno, imprimindo nova dimensão e alcance ao postulado da segurança jurídica quando aplicou a garantia do princípio da anterioridade aos aumentos oblíquos de tributos, promovidos pela majoração das respectivas bases de cálculo, mesmo no contexto da redução de benefícios fiscais.

Especificamente, em referido processo discutia-se a constitucionalidade de decretos expedidos pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul[2], que implicavam no aumento da base de cálculo do ICMS devido por prestadores de serviços de televisão por assinatura, que vigoraria no mesmo exercício da sua publicação, isto é, sem observar o princípio da anterioridade, seja na sua formulação geral, constante da alínea “b” do inciso III do artigo 150 da CF/88, seja na modalidade nonagesimal, constante da alínea “c” do mesmo artigo.

O Ministro Marco Aurélio negou seguimento ao Recurso Extraordinário 564.225/RS por entender correta a decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul que afastou a aplicação desses decretos estaduais para o próprio ano de 1999, por considerar que referidos “(…) atos infralegais implicaram aumento indireto do imposto, porquanto revelaram redução de benefício fiscal vigente, devendo ser observado, também nesses casos, o princípio da anterioridade”.

No julgamento do agravo regimental, o ministro relator reiterou seu entendimento no sentido de que as normas estaduais impugnadas importaram em aumento indireto de imposto e que sua linha de entendimento seguiria a ótica contemporânea adotada pelo Supremo, de que é exemplo a decisão tomada na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.325/DF a respeito de lei complementar que postergou a utilização de créditos tributários então permitidos.

Em sentido contrário ao relator votou o Ministro Dias Toffoli, por entender que a modificação da base de cálculo operada pelos decretos em causa, no caso concreto, seriam meras reduções de um benefício fiscal, com natureza de revogação parcial de isenção, insuscetível da proteção do princípio da anterioridade. O voto-vista do Ministro Dias Toffoli invoca diversos precedentes do STF, “(…) proferidos sob a égide da Carta anterior, (que) apontavam que a isenção fiscal cingia-se ao regime da legislação ordinária e que o instituto retratava dispensa de pagamento de tributo devido e não hipótese de não incidência. Assim, com a revogação da isenção, entendia-se não haver instituição ou majoração de tributo (ou extensão de sua incidência), uma vez que a exação já existia e persistia, embora com dispensa legal de pagamento”.

Na sequência votou o Ministro Luís Roberto Barroso que acompanhou o Ministro Marco Aurélio, em voto conciso e, doutrinariamente, preciso, assente numa concepção teleológica do princípio da anterioridade, ou seja, forte em sua finalidade de garantir segurança jurídica aos particulares, como revela a passagem abaixo transcrita:

“6.          A ocasião é oportuna para revisitar a jurisprudência da Corte, que foi muito bem retratada pela divergência. A concepção de anterioridade que me parece mais adequada é aquela afeta ao conteúdo teleológico da garantia. O princípio busca assegurar a previsibilidade da relação fiscal ao não permitir que o contribuinte seja surpreendido com um aumento súbito do encargo, confirmando o direito inafastável ao planejamento de suas finanças. O prévio conhecimento da carga tributária tem como fundamento a segurança jurídica e como conteúdo a garantia da certeza do direito.

7.            Deve ser entendida como majoração do tributo toda alteração ocorrida nos critérios quantitativos do consequente da regra-matriz de incidência. Sob tal perspectiva, um aumento de alíquota ou uma redução de benefício relacionada à base econômica apontam para o mesmo resultado: agravamento do encargo. O que não é a diminuição da redução da base de cálculo senão seu próprio aumento com relação à situação anterior.”

Seguidamente, votou a ministra Rosa Weber, acompanhando a divergência inaugurada pelo Ministro Dias Toffoli, cabendo o voto de desempate ao Ministro Luiz Fux que didaticamente diferenciou as situações de revogação de isenção, em que a jurisprudência tradicional do STF, inclusive sumulada[3], considera inaplicável a garantia da anterioridade, das situações de aumento de base de cálculo, em que se está indiscutivelmente diante de uma majoração de tributo, protegida pela garantia da anterioridade.

Aliás, que a modificação de base de cálculo importa majoração de tributo já dizia com todas as letras o Código Tributário Nacional, quando relaciona, no seu artigo 97, as matérias submetidas à reserva de lei (princípio da legalidade), e acrescenta, no parágrafo 1º que “equipara-se à majoração do tributo a modificação da sua base de cálculo, que importe em torná-lo mais oneroso”.

O acórdão exemplar do STF recebeu a seguinte ementa:

“IMPOSTO SOBRE CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS E SERVIÇOS – DECRETOS Nº 39.596 E Nº 39.697, DE 1999, DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL – REVOGAÇÃO DE BENEFÍCIO FISCAL – PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE – DEVER DE OBSERVÂNCIA – PRECEDENTES. Promovido aumento indireto do Imposto Sobre Circulação de Mercadorias e Serviços –ICMS por meio da revogação de benefício fiscal, surge o dever de observância ao princípio da anterioridade, geral e nonagesimal, constante das alíneas “b” e “c” do inciso III do artigo 150, da Carta. Precedente – Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.325/DF, de minha relatoria, julgada em 23 de setembro de 2004. (…)”.

A discussão entre os ministros da Suprema Corte bem revela que é chegada a hora de reforçar as garantias dos contribuintes. O abuso dos poderes públicos com a propriedade privada chegou ao limite do tolerável. Não é admissível no Brasil do século XXI que se permitam manobras oblíquas para aumentar tributos; não é admissível que a conta dos descalabros da má gestão da coisa pública seja financiada pelo aumento da carga tributária, mas se assim for (e é o que parece que irá ocorrer) que esses aumentos obedeçam rigorosamente às garantias conquistadas pelos cidadãos, permitindo-lhes um mínimo de planejamento.

Há 800 anos, em 15 de junho de 1215, os barões ingleses se revoltaram contra o poder absoluto do rei João Sem-Terra e conquistaram a Magna Carta. No fecho de seu voto, o ministro Barroso recorda esse marco histórico do direito constitucional:

“A proteção ao contribuinte remonta à origem do próprio constitucionalismo, quando passou a constar da Carta ao Rei João Sem-Terra que o povo é quem determina a medida do seu esforço. As garantias contra o poder de tributar evoluem e hoje o povo tem o poder de decidir e o direito de se preparar”.

Os contribuintes brasileiros merecem serem tratados melhor pelo poder público, merecem ter seus direitos reconhecidos com seriedade, altivez e sem qualquer vacilo, como fez a maioria dos ministros da 1ª Turma do STF nesse acórdão exemplar, que é uma lição de constitucionalismo moderno.

Nessas horas em que podemos confiar na palavra final do STF, que nos reconhece o poder de decidir e o direito de se preparar, perdemos um pouco do medo e recuperamos a esperança.


[1] Cfr. Histórias Curtas, Ed. Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2015, p. 50.

[2] Decretos n.ºs 39.596/99 e 39.697/99.

[3] No caso foi citada a Súmula 615, editada sob a égide da Constituição anterior, segundo a qual “O princípio constitucional da anualidade não se aplica à revogação da isenção do ICM”. 

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