Olhar Econômico

Hipoteca de navio estrangeiro é válida e eficaz no Brasil

Autor

  • João Grandino Rodas

    é sócio do Grandino Rodas Advogados ex-reitor da Universidade de São Paulo (USP) professor titular da Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela Harvard Law School e presidente do Centro de Estudos de Direito Econômico e Social (Cedes).

30 de julho de 2015, 11h59

Spacca
O navio, tanto na doutrina, estrangeira quanto na pátria, é considerado bem móvel. O fato de ser bem móvel sui generis, pois em virtude de seu alto valor submete-se, por vezes, ao regime dos bens imóveis (prova de propriedade por documento formal, impossibilidade de transferência por tradição, e garantia real por hipoteca e não por penhor), não desfigura sua natureza jurídica de bem móvel.

Para o direito positivo brasileiro, igualmente; o navio possui a natureza jurídica de bem móvel. Enquadra-se ele na definição de bem móvel do art. 82 do Código Civil Brasileiro vigente (“São móveis os bens suscetíveis de movimento próprio ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou destinação”); bem como no artigo 478 do Código Comercial Brasileiro[1] (“Ainda que as embarcações sejam reputadas bens móveis, nas vendas judiciais …”).

Sobre hipoteca de navio, há no ordenamento brasileiro vigente, uma lei federal e duas convenções internacionais, cujas disposições merecem ser examinadas e cotejadas.

Os artigos relevantes da Lei Federal 7.652/1988, que dispõe, sobre registro de embarcações e respectivos direitos reais, são:

Art. 2º – O registro da propriedade tem por objeto estabelecer a nacionalidade, validade, segurança e publicidade da propriedade de embarcações.

Art. 3o  – As embarcações brasileiras, exceto as da Marinha de Guerra, serão inscritas na Capitania dos Portos ou órgão subordinado, em cuja jurisdição for domiciliado o proprietário ou armador ou onde for operar a embarcação.

Parágrafo Único – Será obrigatório o registro da propriedade no Tribunal marítimo, se a embarcação possuir arqueação bruta superior a cem toneladas, para qualquer modalidade de navegação.

Art. 6o  O registro de propriedade de embarcação será deferido, (…) a pessoa física residente e domiciliada no País ou a entidade pública ou privada sujeita às leis brasileiras.

Art. 12. O registro de direitos reais e de outros ônus que gravem embarcações brasileiras deverá ser feito no Tribunal Marítimo, sob pena de não valer contra terceiros.

§ 1º Enquanto não registrados, os direitos reais e os ônus subsistem apenas entre as partes…

§ 2º Os direitos reais e os ônus serão registrados em livro próprio, averbados à margem do registro de propriedade e anotados no respectivo título, devendo o interessado promover previamente o registro das embarcações ainda não registradas ou isentas”.

Pela sistemática dessa lei, o registro concede a nacionalidade da embarcação, não podendo a embarcação estrangeira ter registro de propriedade no Brasil, a menos que seu proprietário seja pessoa jurídica brasileira ou pessoa física residente e domiciliada no Brasil. Por consequência, fica impedida de efetivar registro e averbação de hipoteca no Brasil, tanto mais que a lei determina, minuciosa e cartorialmente, que a averbação da hipoteca seja feita à margem do registro de propriedade.

Na prática, o Tribunal Marítimo somente registra hipoteca e demais ônus sobre embarcações brasileiras, não sendo possível o registro de hipoteca de embarcações estrangeiras, notadamente quando, por força da impossibilidade de atendimento dos requisitos legais, não for possível efetivar no Brasil o registro de propriedade marítima da embarcação.

As convenções internacionais são as seguintes.

A Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras Relativas aos Privilégios e Hipotecas Marítimas, adotada em Bruxelas, por ocasião da Conferência Internacional de Direito Marítimo, em 1926, estabelece em seu artigo 1º, que as hipotecas “…sobre navios regularmente estabelecidos segundo as leis do Estado contratante a cuja jurisdição o navio pertencer, e inscritos em um registro público, tanto pertencente à jurisdição do porto de registro, como de um ofício central, serão considerados válidos e acatados em todos os outros países contratantes.”

Essa convenção, após o cumprimento dos trâmites internos, entre os quais a ratificação, foi promulgada no Brasil, pelo Decreto nº 351/1935, continuando a vigorar presentemente.

A Convenção de Direito Internacional Privado, mais conhecida como Código de Bustamante, adotada em Havana, em 1928, quando da Sexta Conferência Internacional Americana, em seu artigo 278, reza:

“… A hipoteca marítima e os privilégios e garantias de caráter real, constituídos de acordo com a lei do pavilhão, têm efeitos extraterritoriais, até nos países cuja legislação não conheça ou não regule essa hipoteca ou esses privilégios”.

Após os trâmites, em que se inclui a ratificação, tal convenção foi promulgada no Brasil, por força do Decreto 18.871/1929, e continua em vigor.

Aparentemente há contradição entre duas disposições legais vigentes no Brasil; entre as disposições da lei federal e as disposições concordes das duas convenções internacionais. Entretanto, análise e exegese cuidadosa demonstram que tal não ocorre e não pode ocorrer.

Da leitura dos dispositivos da lei ora em exame, depreende-se, claramente, que ela tem por finalidade apenas regular o registro da propriedade marítima, dos direitos reais e demais ônus sobre embarcações brasileiras. Não se aplicando, consequentemente, às embarcações estrangeiras. Essa conclusão deriva do próprio texto da lei, bem como das considerações abaixo.

Pelo fato de a Convenção de Bruxelas ter sido adotada em uma conferência internacional de caráter global, infere-se que tenha procurado espelhar direito internacional público universal. Tendo em vista que a adoção do Código Bustamante o foi em conferência regional americana, refletiu ele direito internacional regional americano. Apesar disso, o teor de ambas, no que concerne à validade e a eficácia da hipoteca de navio, é semelhante, garantindo que a hipoteca marítima regularmente constituída será válida e eficaz extraterritorialmente, acrescentando enfaticamente o Código, mesmo nos “países cuja legislação não conheça ou não regule essa hipoteca.” 

Face aos compromissos internacionais assumidos, tanto no âmbito global, quanto no americano, seria razoável admitir que o Brasil não reconhecesse a validade e a eficácia dos direitos reais de garantia existentes sobre embarcações estrangeiras surtas em águas nacionais, que tenham sido regular e formalmente constituídos segundo a lei do pavilhão, em países reconhecidos pelo Brasil e com os quais mantenha relações diplomáticas?

Seria lógico que navios estrangeiros, nos transitórios períodos de permanência em águas brasileiras (que podem ser longos) restassem imunes à excussão dos direitos reais de garantia, legalmente constituídos e registrados de acordo com o direito do pavilhão, em países reconhecidos pelo Brasil e com os quais mantenha relações diplomáticas?

A resposta às duas interrogações acima é obviamente não!

Não se pode perder de vista que a constituição de direitos reais de garantia sobre navios (especialmente de hipotecas) é prática corriqueira em todo o globo, sendo empregada com frequência como instrumento hábil a permitir o financiamento da construção das embarcações ou o financiamento das atividades de seus armadores e/ou operadores a qualquer título. Considerando que tais embarcações estão dispersas ao redor do mundo, pelas mais variadas razões, a averbação das garantias no local do registro da propriedade da embarcação é o único meio de permitir a publicidade da existência de gravames.

Finalmente, tendo o Brasil vinculado-se, há décadas, a duas convenções internacionais vigentes, não se poderia interpretar a citada lei federal diferentemente, sob pena de o país ser responsabilizado internacionalmente por descumprimento de tratados, com todas as cominações decorrentes, inclusive de natureza econômica. Não se esqueça, ademais que, entre duas interpretações possíveis, o intérprete deve acolher aquela que não faça o país incorrer em responsabilização internacional.

Recorde-se que essa conclusão é cristalina, primeiramente por estar o Brasil, por costume, obrigado à norma pacta sunt servanda — fundamento do direito internacional público —, e, também, tendo em vista artigos (principalmente o art. 26: “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa fé”) da Convenção de Viena sobre Direitos dos Tratados, de 1969, que o Brasil negociou, concluiu, assinou, ratificou e promulgou[2]:

O regime legal vis-à-vis às embarcações estrangeiras, encontra-se disciplinado pelas convenções internacionais acima referidas. Tais convenções vinculam os países e teriam uma abrangência ainda maior, no caso de se ter desenvolvido nas quase nove décadas, desde a conclusão das convenções, uma regra costumeira internacional universal. Em suma, para as embarcações brasileiras aplica-se a sistemática da Lei Federal 7.652/1988, enquanto que para as embarcações estrangeiras, nacionais dos países partícipes das convenções, os dispositivos das convenções.

Apesar de serem vetustas, as convenções refletiram e refletem as necessidades do mundo dos negócios, tendo sido a maneira como regularam o reconhecimento da hipoteca marítima, acolhida pela lei interna de muitos países, entre os quais o Reino Unido, os Estados Unidos da América e a Holanda. O contrário se diga da lei federal em tela, que, conforme seja interpretada, contribui para aumentar o “custo Brasil”.


[1] Como o artigo 2045 do Código Civil Vigente revogou apenas a Parte Primeira do Código Comercial, a Parte Segunda, que trata de Direito Marítimo, em que se inscreve o artigo 478, continua vigendo, tanto mais que não há evidência de ter sido revogado por lei especial.

[2] A promulgação deu-se por meio do Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, de 1969, resultante em grande parte da codificação de vetustos princípios costumeiros, entrou em vigor, em 1980. Entretanto, já era tida como vigente em razão de ter-se tornado obrigatória costumeiramente. Mas, mesmo sem se levar em conta esse fato, o Brasil que havia assinado a convenção estava jungido a ela em virtude de seu art. 18: “Um Estado deve abster-se da prática de atos que frustrem o objeto e a finalidade de um tratado: a) se assinou ou trocou instrumentos constitutivos do tratado, sob reserva de ratificação, aceitação ou aprovação, enquanto não manifestar sua intenção de não se tornar parte no tratado; ou b) se expressou seu consentimento em obrigar-se por um tratado, no período que precede a entrada em vigor, e com a condição de que esta não seja indevidamente retardada”.

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    é decano dos professores titulares da Faculdade de Direito da USP, juiz do Tribunal Administrativo do Sistema Econômico Latino-Americano e do Caribe (SELA) e sócio do escritório Grandino Rodas Advogados.

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