Direito Comparado

Como se produz um jurista? O modelo norte-americano (Parte 23)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

29 de julho de 2015, 10h00

Spacca
1.Críticas e refutações ao modelo norte-americano: Llewellyn e Kennedy
Nas últimas três colunas sobre o ensino jurídico norte-americano teve-se a oportunidade de contextualizar o leitor sobre as relações entre o Direito e o poder naquele país e também de apresentar a estrutura da formação jurídica nas law schools, com ênfase no método langdelliano e na matriz curricular de Harvard. Não se deixou de salientar a existência de muitas particularidades e diferenças internas no modelo estadunidense, que não se pode entender como um bloco monolítico mas como um mosaico, no qual algumas cores e certos materiais se sobressaem.

A preeminência do método do caso landgelliano não significa que inexistam contestações ou experiências distintas dessa concepção do final do século XIX. O realismo jurídico de Karl Nickerson Llewellyn tentou reagir ao método de Langdell na segunda metade do século XX e até hoje seus sucessores têm formulado críticas e alternativas ao que consideram um excesso de tecnicismo e pragmatismo na educação dos jovens juristas. Duncan Kennedy escreveu, em vários trabalhos, uma série de refutações ao modo como as escolas de Direito dos Estados Unidos se organizam e formam seus alunos. Para ele, a lógica capitalista superou as preocupações de caráter pedagógico e, ao contrário da aparente cientificidade e da isonomia que aparentam as universidades, existe um ambiente marcado pelas camarilhas e por meios escusos de valoração do mérito acadêmico.

Karl Nickerson Llewellyn (1893-1962) foi um dos líderes do movimento conhecido como realismo jurídico. Sua vida pessoal é muito curiosa: encontrava-se estudando na Universidade de Paris-Sorbonne quando a Primeira Guerra Mundial teve início em 1914. Ele se alistou no Exército da Prússia, um dos corpos militares do Império alemão, embora não tenha renunciado à cidadania norte-americana e jurado fidelidade ao Kaiser. Condecorado e ferido em batalha, quando os Estados Unidos entraram em combate, ele foi liberado pelos alemães para retornar à pátria e lá tentou se alistar no Exército norte-americano, no que foi rejeitado por haver lutado pelos alemães anteriormente. Ele lecionou em Columbia e Chicago e se colocou na proa do movimento do realismo jurídico, que se negava a entender o Direito como uma ciência dedutiva – como defendia Langdell – e que se deveria valorizar o elemento fático e a investigação das consequências das decisões judiciais.

Do realismo jurídico derivaram escolas ou movimentos jurídicos norte-americanos na segunda metade do século XX. Um deles nasceu em Harvard e ficou conhecido como critical legal studies, cujos maiores expoentes são Roberto Mangabeira Unger e Duncan Kennedy.[1]  Este último, nascido em 1942, é professor na Harvard Law School e autor de uma monografia que se tornou clássica nos Estados Unidos por suas refutações ao modelo de ensino jurídico estadunidense, cujo título é Legal Education and the Reproduction of Hierarchy, que pode ser encontrada aqui.

2. As revistas jurídicas universitárias norte-americanas
A law school norte-americana é um espaço substancialmente diferente e, em muitos aspectos, insusceptível de comparação simétrica com a faculdade de direito brasileira. Como já acentuado nas colunas anteriores,  nos Estados Unidos os alunos de Direito já receberam formação graduada no college, antes de ingressarem no curso jurídico. Os estudantes na law school são mais velhos que os equivalentes brasileiros. Além disso, o curso estadunidense tem 3 anos de duração, o que é menos do que se exige no Brasil. Mas, se for somado o tempo anterior de college, o norte-americano pode levar 7 anos para concluir seu curso de Direito. Desconhecer ou relevar essas diferenças tão acentuadas tem gerado muitas distorções no debate sobre a reforma do ensino jurídico nacional. 

Um dos pontos nos quais se manifestam tais incompreensões está nos law journals universitários norte-americanos. Para se limitar a duas das mais famosas revistas jurídicas dos Estados Unidos, Yale Law Journal  e Harvard Law Review, é interessante destacar que esses periódicos são editados e geridos por estudantes de Direito e não por docentes de Yale ou Harvard.

Quando se transmite essa informação no Brasil há duas reações. A primeira é a de desqualificar as duas revistas, ante o choque de se saber que seus editores são estudantes de Direito. A segunda é a de valorizar esses periódicos porque são editados por alunos e fazer comparações depreciativas com a falta de respeito às publicações estudantis no Brasil. Ambas as reações se mostram equivocadas. Efetivamente, um periódico jurídico europeu de alto ranking jamais seria gerido por acadêmicos de Direito e muitos professores alemães não compreendem como algumas revistas jurídicas brasileiras podem publicar artigos de não graduados.

Ocorre que é preciso lembrar que os law journals estadunidenses não são editados graduandos, mas por alunos de Direito que já cursaram estudos de graduação e, em uma comparação pouco rigorosa, seriam alunos de pós-graduação. Finalmente, mesmo que gerenciadas por estudantes, as revistas têm publicado trabalhos de professores, juízes e pesquisadores. Essa realidade é objeto de críticas muito fortes nos dias de hoje, ao exemplo de um artigo de 2004, escrito por Richard A. Posner, no qual ele lamenta que o principal veículo para publicação de escritos acadêmicos nos Estados Unidos sejam as revistas editadas por estudantes, muitos deles influenciados por professores e sem o necessário isolamento intelectual sobre os temas. Desse modo, segundo Posner, as revistas jurídicas acadêmicas têm prestigiado “assuntos da moda”, com forte engajamento ideológico mas com pouca utilidade para a solução de problemas jurídicos que precisam de auxílio doutrinário para sua resolução.[2] O artigo de Posner gerou enorme polêmica e foi objeto de um artigo no qual se tentou refutar as críticas publicadas na revista Legal Affairs.[3] 

Quem dera tivéssemos esse tipo de debate no Brasil sobre a qualidade das revistas jurídicas, editadas principalmente por professores, e os critérios utilizados para sua qualificação nos indexadores oficiais de qualidade editorial. 

3. As law schools norte-americanas
Quando A. Almeida Júnior realizou sua visita aos Estados Unidos, no último trimestre de 1946, ele encontrou um país com 130 milhões de habitantes e 150 escolas de Direito, ao passo em que o Brasil, na mesma época, tinha uma população de 45 milhões e 21 faculdades de Direito. Segundo o professor do Largo São Francisco, o Brasil “precisaria, para igualar essa proporção, criar mais 25 institutos da mesma espécie”, além dos que já possuía. E concluía Almeida Júnior: “Em outras palavras, encarado como fenômeno estatístico de escolas, o bacharelismo norte-americano é mais do que o dobro do nosso bacharelismo”.[4]

No ano de 2015, o Brasil tem 1.298 faculdades de Direito[5] e uma população de 204.503.718 habitantes.[6]  Em 2015, a população dos Estados Unidos é de 325.194.844 habitantes[7] e existem 205 instituições de ensino superior aprovadas pela American Bar Association para oferecer o grau de Juris Doctor, além de 1 escola aprovada para oferecer o grau de oficial jurídico, um militar com funções jurídicas, que é a US Army Judge Advocate General’s School.[8]  

Em síntese, no Brasil, de 1946 a 2015, houve um aumento de 1.277 faculdades de Direito. Nos Estados Unidos, em igual período, foram criadas 55 novas escolas de Direito.

Há diversos rankings das escolas de Direito nos Estados Unidos. Um dos mais famosos é o U.S. News Best Grad Schools, no qual estão assim dispostas as 10 melhores escolas de Direito norte-americanas em 2015: 1) Yale University; 2) Harvard University; 3) Stanford University; 4) Columbia University e Chicago University;  6) New York University; 7) Pennsylvania  University; 8) Duke University, University of California-Berkeley e University of Virginia.[9]

Na melhor das instituições do  ranking do U.S. News, a anuidade, a tempo integral, na Escola de Direito de Yale é de 56.200 dólares norte-americanos, o que corresponde, na cotação do dólar comercial de 9-7-2015, a 179.840 reais. A mensalidade do melhor curso jurídico norte-americano seria, portanto, de 14.986 reais. É de se recordar que Yale é uma universidade pública e que o custo das anuidades recai sobre os alunos, embora exista um sistema de bolsas de estudo. Em último lugar da classificação está o South Texas College of Law, cuja anuidade é de 28.680 dólares norte-americanos.[10]   Muitas escolas de Direito possuem páginas nas quais expõem de modo detalhado os custos diretos e indiretos (habitação, alimentação, seguros, creche, aquisição de computadores) da formação do aluno em seu triênio na universidade.[11]

Esses valores estão no centro da polêmica sobre a crise do ensino jurídico, que se tornou mais saliente após 2008, quando a economia mundial entrou em recessão após o escândalo dos fundos subprime, que arruinou várias instituições financeiras centenárias e milhares de pessoas nos Estados Unidos.   Paul Campos, ao tratar desta questão, anotou que, ao se matricular na Escola de Direito de Michigan, em 1986, pagou uma anuidade para o curso de tempo integral no valor de 4.420 dólares, equivalentes, ao câmbio de 2011, a 9.000 dólares. A matrícula equivalente para o ano de 2012-2013 corresponderia a 48.012 dólares, o que implicou um aumento 10 vezes o valor original no período de 1986 a 2012.[12]

A obtenção do grau de Juris Doctor por uma das 14 melhores universidades norte-americanas implicava um alto nível de empregabilidade, seja no serviço público, seja para as grandes firmas de advocacia. Exemplos desse status diferenciado não faltam. Barack Obama é egresso da Harvard Law School e foi editor-chefe de sua revista acadêmica quando aluno da instituição. O 19º presidente dos Estados Unidos,  Rutherford B. Hayes, também se formou em Harvard. 11 procuradores-gerais, 35 senadores e 15 justices da Suprema Corte foram diplomados em Direito por Harvard.  A Escola de Direito de Yale ostenta de entre seus egressos os presidentes Bill Clinton e Gerald Ford. 9 procuradores-gerais, 25 senadores e 10 magistrados da Suprema Corte dos Estados Unidos.

No entanto, o cenário pós-crise de 2008 não é mais tão róseo para os egressos das escolas de Direito norte-americanas. Não há mais tantas vagas para jovens advogados e, com isso, eles não têm como pagar os custos de sua universidade, o que gera um círculo vicioso de inadimplemento com efeitos retroativos. E essa realidade finalmente começou a tocar os alunos das melhores law schools[13] e, se nada for feito, em breve muitos cursos terão de fechar porque suas receitas não estão a ser alimentadas pelos egressos, que não conseguem se colocar no mercado de trabalho. A ideia de que a formação em Direito seria uma forma sensata de se investir o dinheiro é um mito prestes a ser desmascarado[14].

Provavelmente em razão desse quadro, muitas escolas de Direito norte-americanas de porte médio têm procurado atrair alunos brasileiros para cursos de média ou curta duração ou ainda para seus cursos de LLM (Master of Laws) ou JSD (Juridical Science Doctor), que são frequentados majoritariamente por estrangeiros, dado o pouco interesse do norte-americano por esses títulos, até porque não são obrigatórios para o ingresso na carreira docente superior da grande maioria das universidades.[15] 

Como o sistema norte-americano é liberal em termos regulatórios, a American Bar Association – ABA exerce um papel de órgão credenciador das escolas de Direito. Não se trata de uma prerrogativa legalmente reconhecida, mas o credenciamento existe desde 1923 e ele é conferido às escolas que atendam aos requisitos da ABA. Os efeitos jurídicos do não-credenciamento são variáveis conforme cada Estado-membro. Em alguns deles, não é possível ser admitido como advogado na ABA se o inscrito houver se formado em uma instituição sem credenciamento.

***

Na próxima semana, ter-se-á a penúltima coluna da série sobre o modelo norte-americano. Seu objeto será o estudo das carreiras jurídicas de advogado, juiz e promotor nos Estados Unidos.


[1] Há vasta literatura em língua portuguesa sobre o realismo jurídico norte-americano e o movimento cls. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é um dos grandes divulgadores do tema no Brasil e recomenda-se a leitura dos seguintes textos de sua autoria: O Critical legal studies movement de Roberto Mangabeira Unger: um clássico da filosofia jurídica e política. Revista Jurídica (Brasília), v. 8, p. 49-63, 2007; Introdução ao movimento critical legal studies. 1. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2005; Introdução ao realismo jurídico norte-americano. 1. ed. Brasília: Edição do autor/Uniceub, 2013.

[2] POSNER, Richard A. Against the Law Reviews: Welcome to a world where inexperienced editors make articles about the wrong topics worse. Legal Affairs, dec. 2004.

[3] COTTON, Natalie. The competence of students as editors of Law Reviews: A response to judge Posner

University of Pennsylvania Law Review. v. 154, n.4,p. 951-982, apr. 2006.

[4] ALMEIDA JÚNIOR, A. A propósito do ensino de direito nos Estados Unidos. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v.42,  p.125-159, 1947. p. 125-126.

[5] Dados de 9-7-2015, conforme: http://emec.mec.gov.br/. Acesso em 9-7-2015.

[6] Dados de 9-7-2015, conforme: http://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/. Acesso em 9-7-2015.

[7] Dados de 9-7-2015, conforme: http://www.worldometers.info/world-population/us-population/. Acesso em 9-7-2015.

[11] Veja-se um exemplo nesta página:  https://www.nesl.edu/admissions/financial_aid_budgeting.cfm. Acesso em 10-7-2015.

[12] CAMPOS, Paul. The crisis of the american law school. University of Michigan Journal of Law Reform.

v.46, Issue 1, p. 177-223, Fall, 2012.p. 179.

[13] CAMPOS, Paul. Op. cit. p. 197.

[14] CAMPOS, Paulo. Op. cit. p. 222-223.

[15] Sobre o desinteresse nos cursos de LLM e JSD por norte-americanos e sua não exigência para a docência superior: SAMPAIO, Rômulo Silveira da Rocha. Breve panorama do ensino e sistema jurídico norte-americano. Disponível em http://direitorio.fgv.br/sites/direitorio.fgv.br/files/file/Breve%20Panorama%20do%20Ensino%20e%20Sistema%20Jur%C3%ADdico%20Norte-Americanos.pdf. Acesso em 9-7-2015); GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Direito e educação jurídica nos Estados Unidos. Revista Seqüência, n.º 48, p. 29-40, jul. de 2004. p.37.

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    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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