Embargos Culturais

Antonio de Oliveira Salazar e o oximoro
do constitucionalismo autoritário

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

26 de julho de 2015, 8h01

Spacca
Há uma máxima do constitucionalismo clássico que nos dá conta de que onde não há divisão de poderes não há constituição. A afirmação remete-nos a um problema de fundo meramente especulativo, no sentido de que se possa questionar se nos regimes ditatoriais, nos quais se tenha a hipertrofia do executivo, haveria (ou não) uma constituição. Se negativa a resposta, nosso texto de 1937, chancelado por Getúlio Vargas e redigido por Francisco Campos, se qualificaria como documento político de mera organização; o que, reconheça-se, nos levaria a uma contradição em termos, porque constituições também (e substancialmente) se prestam para fixar os arranjos institucionais da sociedade.

Ilustro esse (falso) problema com as percepções que Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970), que esteve à frente do Estado Novo (regime ditatorial de Portugal) de 1933 a 1974, a par de outras intervenções políticas ainda na década de 1920. Salazar é identificado nos livros de história, na memória coletiva e na reminiscência política do século XX, como um obstinado ditador português. Há farta literatura sobre sua trajetória[1].

Ainda no tema da relação dos intelectuais com o poder, registre-se que Salazar era especialista em ciência das finanças, professor catedrático em Coimbra, nome importante na construção do direito público português de feição conservadora. Nacionalista, ligado a grupos católicos, Salazar é figura emblemática na direita política do curto século XX, marcado — entre outros — por uma radical polarização ideológica. O enfrentamento entre comunistas e integralistas no Brasil é da assertiva um exemplo local. Mas, questiono: pode-se julgar um homem e suas ideias fora de seu contexto histórico, de sua época e sem o benefício do retrospecto, o qual escrutinado não possuía?

Entrevistado em 1958, pelo jornal Le Fígaro, Salazar respondeu que não se considerava um ditador[2], insistindo que não era e que nem poderia se considerar como tal[3]; porquanto “não é [era] essa a situação política nem o direito constitucional”[4], justificando que não chefiava um governo ditatorial, simplesmente porque:

“O poder legislativo está dividido entre uma Assembleia Nacional, eleita por sufrágio direto dos cidadãos eleitores, e o Governo, no qual desta forma também pode legislar. Praticamente o estabelecimento dos grandes princípios gerais pertence à lei, ou seja, à competência da Assembleia. O desenvolvimento desses princípios faz-se em decretos-leis, de autoria do Governo. A iniciativa da lei pertence à Assembleia e ao Governo, mas aquela raramente a utiliza. As leis têm hoje um tal grau de tecnicidade que é ilusório supor que os deputados desprovidos do concurso dos serviços podem ter a iniciativa das leis. O poder legislativo das assembleias diminui por esse motivo por toda a parte. O decreto por autorização da Câmara, o decreto-lei, o decreto regulamentar tomam o primeiro lugar. Reduzida a função parlamentar, por exigência das coisas, à discussão dos grandes problemas políticos, e à fiscalização da administração pública, compreende-se que não se imponha o seu funcionamento permanente (…)”[5].

 A passagem acima transcrita é absolutamente reveladora do ideário constitucional (sic) autoritário. Revelam-se como elementos discursivos e táticos desse autoritarismo a observação do entrevistado, para quem o legislativo raramente utilizava a iniciativa de confecção de leis, a quem criticou por que este poder não deteria conhecimentos técnicos de serviços para que pudesse satisfatoriamente legislar, bem como compreender que não se impunha a este poder um funcionamento permanente, com a consequente exaltação do decreto-lei, instrumento normativo mais incidente na imposição da vontade política autoritária.

Nessa mesma entrevista Salazar enfatizou o autoritarismo que inspirava sua atuação, explicitando que “em face das dificuldades da vida contemporânea e de Estados cuja organização lhes dá notável poder de decisão e execução das deliberações tomadas – muitas contra o Ocidente – ou há que ceder e desistir ou há que procurar formas de conseguir governos fortes, capazes de definirem uma posição e responderem com os seus povos por um compromisso internacional”[6].  Entre uma imaginária desistência e um efetivo governo forte o ditador português seguiu a lógica do bruxo florentino, apontando fins que justificariam os meios.

Constituições somente seriam entendidas como tais na medida em que justificadas por um compromisso democrático ou, no limite, o seriam simplesmente porque organizam as instituições políticas? Nessa pequena questão, a perdição e a redenção do aspartame jurídico reinante, na medida em que confrontado com o pragmatismo ideológico historicamente dominante. Um constitucionalismo autoritário nos revela um oximoro, figura de linguagem que nos dá conta de significados excludentes, mas realçados pela ambivalência que revelam; essa figura também é conhecida por paradoxismo.

Em tempo, Salazar exerceu grande influência sobre Marcelo Caetano[7], juspublicista que viveu no Brasil, aqui chegando após o triunfo da revolução democrática portuguesa, e sobre quem essa coluna tem muito a problematizar, como indicativo de chave compreensiva para o autoritarismo que recorrentemente tem matizado o direito público, nomeadamente o direito administrativo.


[1] Conferir, por todos, entre os mais recentes, Meneses, Filipe Ribeiro de, Salazar- Biografia Definitiva, São Paulo: Leya, 2011. Tradução de Teresa Casal.
[2] Excertos da entrevista foram publicados em Henriques, Mendo Castro e Mello, Gonçalo de Sampaio (organizadores), Salazar- Pensamento e Doutrina Política, Lisboa: Verbo, 2007, pp. 211 e ss.
[3] Cf. Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[4] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[5] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[6] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., p. 212.
[7] Neste caso, Caetano, Marcello, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa: Verbo, 2006.

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