Antonio de Oliveira Salazar e o oximoro
do constitucionalismo autoritário
26 de julho de 2015, 8h01
Ilustro esse (falso) problema com as percepções que Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970), que esteve à frente do Estado Novo (regime ditatorial de Portugal) de 1933 a 1974, a par de outras intervenções políticas ainda na década de 1920. Salazar é identificado nos livros de história, na memória coletiva e na reminiscência política do século XX, como um obstinado ditador português. Há farta literatura sobre sua trajetória[1].
Ainda no tema da relação dos intelectuais com o poder, registre-se que Salazar era especialista em ciência das finanças, professor catedrático em Coimbra, nome importante na construção do direito público português de feição conservadora. Nacionalista, ligado a grupos católicos, Salazar é figura emblemática na direita política do curto século XX, marcado — entre outros — por uma radical polarização ideológica. O enfrentamento entre comunistas e integralistas no Brasil é da assertiva um exemplo local. Mas, questiono: pode-se julgar um homem e suas ideias fora de seu contexto histórico, de sua época e sem o benefício do retrospecto, o qual escrutinado não possuía?
Entrevistado em 1958, pelo jornal Le Fígaro, Salazar respondeu que não se considerava um ditador[2], insistindo que não era e que nem poderia se considerar como tal[3]; porquanto “não é [era] essa a situação política nem o direito constitucional”[4], justificando que não chefiava um governo ditatorial, simplesmente porque:
“O poder legislativo está dividido entre uma Assembleia Nacional, eleita por sufrágio direto dos cidadãos eleitores, e o Governo, no qual desta forma também pode legislar. Praticamente o estabelecimento dos grandes princípios gerais pertence à lei, ou seja, à competência da Assembleia. O desenvolvimento desses princípios faz-se em decretos-leis, de autoria do Governo. A iniciativa da lei pertence à Assembleia e ao Governo, mas aquela raramente a utiliza. As leis têm hoje um tal grau de tecnicidade que é ilusório supor que os deputados desprovidos do concurso dos serviços podem ter a iniciativa das leis. O poder legislativo das assembleias diminui por esse motivo por toda a parte. O decreto por autorização da Câmara, o decreto-lei, o decreto regulamentar tomam o primeiro lugar. Reduzida a função parlamentar, por exigência das coisas, à discussão dos grandes problemas políticos, e à fiscalização da administração pública, compreende-se que não se imponha o seu funcionamento permanente (…)”[5].
A passagem acima transcrita é absolutamente reveladora do ideário constitucional (sic) autoritário. Revelam-se como elementos discursivos e táticos desse autoritarismo a observação do entrevistado, para quem o legislativo raramente utilizava a iniciativa de confecção de leis, a quem criticou por que este poder não deteria conhecimentos técnicos de serviços para que pudesse satisfatoriamente legislar, bem como compreender que não se impunha a este poder um funcionamento permanente, com a consequente exaltação do decreto-lei, instrumento normativo mais incidente na imposição da vontade política autoritária.
Nessa mesma entrevista Salazar enfatizou o autoritarismo que inspirava sua atuação, explicitando que “em face das dificuldades da vida contemporânea e de Estados cuja organização lhes dá notável poder de decisão e execução das deliberações tomadas – muitas contra o Ocidente – ou há que ceder e desistir ou há que procurar formas de conseguir governos fortes, capazes de definirem uma posição e responderem com os seus povos por um compromisso internacional”[6]. Entre uma imaginária desistência e um efetivo governo forte o ditador português seguiu a lógica do bruxo florentino, apontando fins que justificariam os meios.
Constituições somente seriam entendidas como tais na medida em que justificadas por um compromisso democrático ou, no limite, o seriam simplesmente porque organizam as instituições políticas? Nessa pequena questão, a perdição e a redenção do aspartame jurídico reinante, na medida em que confrontado com o pragmatismo ideológico historicamente dominante. Um constitucionalismo autoritário nos revela um oximoro, figura de linguagem que nos dá conta de significados excludentes, mas realçados pela ambivalência que revelam; essa figura também é conhecida por paradoxismo.
Em tempo, Salazar exerceu grande influência sobre Marcelo Caetano[7], juspublicista que viveu no Brasil, aqui chegando após o triunfo da revolução democrática portuguesa, e sobre quem essa coluna tem muito a problematizar, como indicativo de chave compreensiva para o autoritarismo que recorrentemente tem matizado o direito público, nomeadamente o direito administrativo.
[1] Conferir, por todos, entre os mais recentes, Meneses, Filipe Ribeiro de, Salazar- Biografia Definitiva, São Paulo: Leya, 2011. Tradução de Teresa Casal.
[2] Excertos da entrevista foram publicados em Henriques, Mendo Castro e Mello, Gonçalo de Sampaio (organizadores), Salazar- Pensamento e Doutrina Política, Lisboa: Verbo, 2007, pp. 211 e ss.
[3] Cf. Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[4] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[5] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., loc. cit.
[6] Salazar, Antonio de Oliveira, in Henriques, Mendo Castro, cit., p. 212.
[7] Neste caso, Caetano, Marcello, Minhas Memórias de Salazar, Lisboa: Verbo, 2006.
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