Prestação jurisdicional

Expansão da Defensoria Pública tem que sair dos planos e ser concretizada

Autores

  • Maria Fernanda Ghannage Barbosa

    é advogada e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba/FADI. Foi aprovada no II Concurso de Provas e Títulos para o cargo de Defensor Público do Estado do Paraná.

  • Mariela Moni Marins

    é advogada e bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Sorocaba/FADI. Foi aprovada no II Concurso de Provas e Títulos para o cargo de Defensor Público do Estado do Paraná.

25 de julho de 2015, 7h30

O século XX foi marcado pela reconstrução dos direitos humanos, período em que vivemos aquilo que Bobbio chamou de “era dos direitos humanos”[1]. Com a sua positivação internacionalista e a elevação da dignidade da pessoa humana como fundamento de todo o ordenamento jurídico, o grande desafio do século XXI passou a ser a verdadeira concretização desses direitos.

No Brasil, a partir de 1988, abandonou-se a ideia de Constituição como carta política de intenções, fortalecendo-se a ideia de Constituição como norma soberana e como fundamento de validade das demais normas jurídicas, emanando direitos com eficácia direta e aplicabilidade imediata (artigo 5º, §§1º e 2º). Em razão da redemocratização do país, a ordem constitucional brasileira passou a ser amplamente conhecida pelo avanço de suas normas no que tange a proteção e tutela de direitos e garantias fundamentais. Assim, temos uma ordem jurídica que cumpre fielmente a missão de normatização de direitos humanos que, para a Escola Positiva do século XIX até meados do século XX, só seriam exigíveis se prescritos em normas internas (positivação nacionalista[2]).

Contudo, ainda é grave a deficiência na concretização dos inúmeros direitos nominalmente previstos e é notória a crônica doença brasileira: a desigualdade social.

A triste verdade é que o Brasil é fortemente marcado pela colonização de suas instituições e pela cordialidade na condução da coisa pública, como bem apontado por Sérgio Buarque de Holanda[3]. O poder é exercido tendo como pauta a emoção e os interesses pessoais, ao arrepio da efetivação dos objetivos a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil, em especial os de construir uma sociedade livre, justa e solidária, de erradicar a pobreza e a marginalização, de reduzir as desigualdades sociais e regionais e de promover o bem de todos sem quaisquer preconceitos (artigo 3º da Constituição Federal).

A colonização política se desfez com a proclamação da independência, mas a comunidade luso-brasileira fez perpetuar a colonização social, que é instituto contemporâneo, representado por uma sociedade com abissais fendas de desigualdade e alijamento de direitos.

A boa notícia é que o Constituinte de 1988 foi sensível a este “mal de origem” e deu vida a uma instituição estatal com a missão precípua de lutar pela efetivação de direitos e consequente defesa da cidadania e do regime democrático: a Defensoria Pública.

Trata-se, a rigor, de um órgão estatal independente e não vinculado a nenhum dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), cuja atuação é voltada para defesa e promoção de direitos da população econômica e socialmente vulnerável. Ou seja, aquela colonização social constitui o front de batalha da Defensoria Pública, pois, apesar de existir a positivação de direitos de um lado, há forte resistência na sua efetivação de outro.

Nesse ponto, o Brasil é, infelizmente, reconhecido pela sua dificuldade em implementar os direitos que estão expressamente delineados no corpo constitucional, bem como em tratados devidamente ratificados junto à comunidade internacional. Não são raros episódios de graves violações de direitos humanos que geram, inclusive, responsabilização internacional.

Com efeito, somente o estado do Paraná deu causa a duas condenações do Brasil no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos, por desrespeito a garantias individuais fundamentais expressamente previstas na Constituição da República e na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).

Em novembro de 2009, a Corte Interamericana condenou o Brasil em razão de interceptações telefônicas ilegalmente autorizadas por juiz de direito da Comarca de Loanda/PR, em afronta aos direitos de privacidade e sigilo de comunicações das associações de trabalhadores rurais ligadas ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no Paraná.[4]

Mais grave ainda são os fatos ocorridos em novembro de 1998, quando durante a desocupação extrajudicial de um acampamento do MST, no município de Querência do Norte, também pertencente à comarca de Loanda/PR, o trabalhador rural Sétimo Garibaldi foi morto por pistoleiros encapuzados, sem a investigação e consequente responsabilização dos autores, fato que também motivou a responsabilização internacional do Brasil por meio de sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana.[5]

Infelizmente, o histórico de violação de direitos fundamentais persiste em solo paranaense. Há pouco, o Brasil assistiu atônito ao exercício arbitrário do poder em face de professores que protestavam no dia 29 de abril de 2015, fato que ganhou a triste alcunha de “batalha do Centro Cívico”[6] ou “massacre de 29 de abril”[7] e ficou conhecido pela opressão às liberdades de reunião e manifestação, bem como pelo uso desproporcional da força policial.

Diante desse cenário de grave violação de direitos e tomando como premissa a missão constitucional atribuída à Defensoria Pública, onde estava/está a instituição quando o povo paranaense gritou/grita sufocado por seus direitos? Aqui entra mais um triste capítulo na história de direitos (ou melhor, de não direitos) do estado do Paraná.

O Paraná foi o penúltimo estado a instituir a Defensoria Pública, fazendo-o somente em 2011, com mais de 20 anos de atraso (lembre-se que a Constituição, já em 1988, impôs aos Estados o dever de implementar a Defensoria Pública). Os primeiros defensores concursados somente iniciaram suas atividades no segundo semestre do ano de 2013, em razão das deficiências estruturais e orçamentárias que, diga-se, persistem até hoje.

Só no primeiro semestre deste ano de 2015 já foi necessário o ajuizamento de duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade[8] e uma Reclamação[9] junto ao Supremo Tribunal Federal para assegurar a autonomia e sobrevivência da instituição, que teve suas atividades sufocadas por falta de repasse de verbas públicas pelo governo do Estado[10], o que ensejou, inclusive, a impetração de mandado de segurança perante o Tribunal de Justiça do Estado[11]. No final do mês de março deste ano, 12 das 22 sedes da Defensoria Pública do Paraná foram fechadas por ausência de pagamento de dívidas envolvendo serviços básicos como segurança, limpeza e iluminação[12].

As dificuldades não param por aí. Atualmente, há em todo o estado apenas 76[13] defensores públicos para atender a população estadual que hoje atinge a marca de 11 milhões de habitantes, segundo dados do IBGE[14]. Desses 11 milhões de habitantes, pouco mais de 70% são potenciais usuários de serviços da Defensoria Pública[15], considerando a renda média familiar no Estado.

Assim, em uma rápida conta verifica-se que hoje no Paraná existe apenas 1 defensor público para cada 100 mil habitantes, em média.

Os números se tornam ainda mais assustadores quando confrontados com o Mapa da Defensoria Pública no Brasil[16] que aponta um déficit de 834 defensores públicos no Estado do Paraná[17].

Este cenário se tornou mais insustentável com o advento da Emenda Constitucional 80/2014, que promoveu uma nova formatação constitucional à Defensoria Pública, reafirmando o seu compromisso com a promoção dos direitos humanos[18], além de estabelecer um prazo de 8 anos para que todas as unidades jurisdicionais tenham defensores públicos em número compatível com a efetiva demanda e população, atendendo, prioritariamente, as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.[19]

No estado Paraná, além da falta de defensores, faltam servidores, estrutura de trabalho, repasse adequado de verbas, enfim, falta a efetiva concretização da autonomia da Defensoria Pública e dos direitos de toda população hipossuficiente, o que afronta a Constituição da República, especialmente após a promulgação da Emenda Constitucional 80/2014. A carência é generalizada: tanto da população quanto da própria instituição.

Não falta, porém, vontade de reverter esses dados. Os defensores públicos lutam diariamente (e duramente) para cumprir a sua missão constitucional, para concretizar direitos e para mudar a realidade social do Estado. É um trabalho de conta-gotas, mas que já acumula vitórias[20].

É evidente, portanto, a importância da consolidação da Defensoria Pública no território paranaense.

A Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) já publicou inúmeras resoluções apontando a importância de uma Defensoria Pública estruturalmente forte e independente, a fim de viabilizar a realização de direitos e o acesso à justiça.[21]

Por sua vez, a Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei 12.528/2011 com a finalidade apurar graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos e ocorridas entre 1946 e 1988, recomendou ao Estado brasileiro, em seu Relatório Final publicado em dezembro de 2014, o fortalecimento das Defensorias Públicas.[22]

Enfim, já lutamos pela normatização dos direitos, pela sua reconstrução com fundamento na dignidade da pessoa humana e, ainda, pela sua positivação internacionalista (alcançando todos os seres humanos, sejam eles nacionais de um Estado ou não). Mas a luta está longe de chegar ao fim. Agora, lutamos pela efetiva consolidação desses direitos. E não há consolidação de direitos sem Defensoria Publica.

Lutemos juntos, então, pela concretização daquilo que já está previsto internacionalmente, na nossa Constituição e nas leis.

Lutemos juntos, pois a população brasileira e a necessidade de efetivação dos direitos fundamentais não podem mais esperar.

Lutemos, enfim, para dar um basta à colonização social e à herança de violência e abandono recebida desde a origem.

Não podemos mais fechar os olhos a um sistema promotor da segregação e desigualdade sociais e aceitar o uso simbólico da Constituição, fazendo prevalecer seu significado político-ideológico em detrimento do seu sentido normativo-jurídico.[23]

Não bastam existir planos e projeções para expansão da Defensoria Pública[24], é preciso concretizar. Hoje. Agora. E sempre.

[1] Bobbio, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 2004.

[2] Ramos, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. Saraiva, 2014, pág. 83.

[3] Botelho, André; Schwarcz, Lilia Moritz. Um enigma chamado Brasil: 29 intérpretes e um país. 1ª edição, 2009. Ed. Companhia das Letras.

[4] Caso Escher e Outros vs Brasil. Sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 20 de novembro de 2009. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_208_por.pdf

[5] Caso Garibaldi vs Brasil. Sentença condenatória proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 23 de setembro de 2009. Disponível em: http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_203_por.pdf

[6]http://www.gazetadopovo.com.br/vida-publica/mp-acusa-richa-de-improbidade-pela-batalha-do-centro-civico-5gfvlw5d7in40fus6lkz7zku5

[7]http://emporiododireito.com.br/massacre-de-29-de-abril-de-2015-excecao-no-estado-do-parana-ou-parana-como-estado-de-excecao-por-priscilla-placha-sa/

[8] ADI 5217: busca a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da LCE 180/2014 que retira a autonomia institucional. Houve o deferimento de liminar para suspender os dispositivos questionados. Acompanhamento processual disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4695828

ADI 5218: busca a declaração de inconstitucionalidade do artigo 16 da Lei Estadual nº 18.409/14 que admitia a possibilidade de remanejamento unilateral por ato do Poder Executivo do orçamento aprovado para a Defensoria Pública. Também houve o deferimento de liminar para suspender a eficácia do dispositivo questionado. Acompanhamento processual disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4695877

[9] Reclamação (RCL) 19669: A liminar proferida nos autos da ADI 5218 não foi cumprida pelo governo do Estado, que continuou a remanejar e fazer cortes no orçamento da Defensoria Pública de forma unilateral, motivando o ajuizamento de reclamação constitucional que também obteve o deferimento de medida liminar para assegurar a autonomia da instituição. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4712742

[10] Aliás, o tema da vinculação do orçamento da Defensoria Pública ao Executivo constitui outro grave episódio na luta institucional por autonomia, tema que demanda profunda análise do arcabouço constitucional e da lei de responsabilidade fiscal e que, por isso, fica reservado para outro trabalho.

[11] http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2015/03/justica-determina-que-governo-do-parana-repasse-r-11-mi-defensoria.html

[12]  http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/defensoria-vai-reabrir-sedes-fechadas-por-falta-de-servicos-terceirizados-5t6vsyszgzv4fqpcffun74m37

[13] O II concurso para ingresso na carreira de defensor público do estado do Paraná, finalizado desde 19 de março de 2015, homologou a aprovação de 58 novos defensores públicos. Entretanto, ainda não há data certa para a efetiva nomeação.

[14] http://www.ibge.gov.br/estadosat/perfil.php?sigla=pr#

[15] Em geral, são potenciais usuários dos serviços da Defensoria Pública a população com renda de até 3 salários mínimos, excetuados os casos de âmbito criminal e execução criminal, além de outras situações de vulnerabilidade em que não há aferição do critério econômico.

[16] Estudo promovido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pela Associação Nacional de Defensores Públicos (ANADEP), disponível em: http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria

[17] http://www.ipea.gov.br/sites/mapadefensoria/deficitdedefensores

[18] CF, Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 80, de 2014)

[19] ADCT, Art. 98. O número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população.

§1º No prazo de 8 (oito) anos, a União, os Estados e o Distrito Federal deverão contar com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais, observado o disposto no caput deste artigo.

§2º Durante o decurso do prazo previsto no § 1º deste artigo, a lotação dos defensores públicos ocorrerá, prioritariamente, atendendo as regiões com maiores índices de exclusão social e adensamento populacional.

[20] É salutar o trabalho realizado pela Defensoria Pública do Paraná no ano de 2014, junto as áreas criminal, execução criminal, ações coletivas, infância e juventude, saúde e moradia, além da atuação em prol da população vulnerável. Para mais detalhes, basta acessar a retrospectiva 2014 no próprio website da DPPR, disponível em:

http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=271

http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=270

http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=269

http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=268

[21] Resoluções 2656/11; 2714/12; 2801/13; 2821/14, todas editadas pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), proclamando a necessidade de fortalecimento e autonomia das Defensorias Públicas como garantia de acesso à justiça e concretização de direitos.

[22] O texto ressaltou que “No contexto das graves violações de direitos humanos investigadas pela CNV, sobressaiu a percepção de que a dificuldade de acesso dos presos a Justiça facilitou grandemente a possibilidade de que fossem vitimas de abusos, por ação ou omissão da administração pública. Como esse quadro subsiste nos dias de hoje, recomenda-se o fortalecimento das Defensorias Publicas, criadas constitucionalmente para o atendimento da população de baixa renda e revestidas das condições institucionais para propiciar maior proteção as pessoas detidas. O contato pessoal do defensor publico com o preso nos distritos policiais e no sistema prisional e a melhor garantia para o exercício pleno do direito de defesa e para a prevenção de abusos e violações de direitos fundamentais, especialmente tortura e maus-tratos”. Disponível em http://www.cnv.gov.br

[23] NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

[24] http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/arquivos/File/Institucional/EC_80_ANEXO_1.pdf

http://www.defensoriapublica.pr.gov.br/arquivos/File/Institucional/EC_80_ANEXO_2.pdf

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